Cavalhadas de São Pedro: Historiador Mário
Moura analisa a origem e evolução desta celebração secular que assinalam hoje o
feriado municipal da Ribeira Grande
Hoje,
29 de Junho, a Ribeira Grande celebra o feriado municipal com as tradicionais
Cavalhadas de São Pedro. O cortejo equestre tem início às 12h00, com
concentração junto ao Solar da Mafoma, na freguesia da Ribeira Seca. A partir
daí, os participantes seguem em desfile até à Igreja de São Pedro, realizando
sete voltas ao redor da igreja, simbolizando os sete dons do Espírito Santo. A
chegada à Câmara Municipal está prevista para as 13h00.
Em
entrevista ao nosso jornal. o historiador Mário Moura analisa a origem e
evolução desta celebração secular, destaca a forte ligação ao culto do Espírito
Santo, com a participação de mordomos e cavaleiros, muitos dos quais ainda hoje
participam por promessa religiosa.
Correio
dos Açores - Qual é a origem histórica das Cavalhadas de São Pedro? Há registos
que nos permitam datar com precisão o seu início?
Mário
Moura (historiador) - Não se sabe. Não se conhecem registos
que permitam datar com precisão o início das Cavalhadas (Alvorada) de São Pedro. O
primeiro relato conhecido é de Junho de 1856, mas o tom com que é
redigido – como se fosse algo já de muito banal, algo enraizado – remete-nos para uma
origem anterior. Quando, exactamente? Tenho uma hipótese: finais do século
XVII, inícios do século XVIII. Refiro-me, por exemplo, a 1671, ano da fundação
do Império de São Pedro. Depois, em 1685, há a construção do Teatro do Espírito
Santo. E, em 1707, temos o relato do padre Sousa Freire, no ‘Livro do Tombo’ da Ribeira Seca. Há também versões
baseadas na tradição oral (algumas são subversões) que recuam (sem quaisquer provas)
ainda mais, até ao século XVI. Falam, por exemplo, da erupção do Pico do
Sapateiro, em 1563, ou da destruição de Vila Franca em 1522, são
interpretações bastante arriscadas. Os estudos feitos no momento em que a Ribeira
Grande se recandidatou às Cavalhadas como festa municipal fazem uso dessas versões, porém, não há provas documentais que as comprovem. Até
investigadores como o professor Carreiro da Costa ou Armando Cortes Rodrigues
consideram que não é possível ir tão longe. Estamos perante um gigantesco salto entre os dados seguros de 1856 e esses especulativos do século XVI.
Uma hipótese plausível é a da sua ligação ao Império a São Pedro em finais do século XVII. A própria
designação popular da festa – Alvorada ou Embaixada a São Pedro – indica uma
ligação forte à celebração do padroeiro, mas também à tradição do Espírito
Santo, que é transversal à cultura açoriana. No fundo, estamos a falar de uma
manifestação popular, com raízes rurais, de cariz religioso e profano, que quando se realizou pela primeira vez, o facto não foi objecto de acta de fundação, de crónica escrita, de relato oral mais tarde transcrito nem precisou de decreto legal para se fazer. Foi-se fazendo. Espontaneamente. É muito difícil fazer história de tradições
populares, porque nascem do uso e da repetição, não da formalização legal.
Sabemos, por exemplo, que existiram Cavalhadas noutras partes dos Açores – como
em Angra do Heroísmo ou em Santo António, além Capelas – e também em Viseu,
onde eram (são) organizada pelos moleiros, enquanto aqui foram organizadas
pelos mordomos do Espírito Santo. Há Cavalhadas até no Nordeste brasileiro. Mas
no caso da Ribeira Grande, o que temos com certeza é 1856. Tudo o resto são
hipóteses com maior ou menor grau de sustentação, mas sem prova documental.
As
Cavalhadas realizam-se no final de Junho, num período em que se cruzam as celebrações
em honra do padroeiro com as festas do Espírito Santo. Que relações históricas
existem entre estas tradições e de que modo se reflectem na configuração deste
cortejo equestre?
Há
uma ligação muito forte e visível entre o culto do Espírito Santo e
aquilo que hoje conhecemos como Cavalhadas de São Pedro. Em 1856, por exemplo,
elas eram organizadas pelos mordomos — ou Imperadores — do Espírito Santo a São
Pedro. Em 1867, mantinha-se. E ainda em 1911. Inicialmente, eram os mordomos
que iam no cortejo, porque a Cavalhada estava integrada nas festas do Espírito
Santo, que se prolongavam até São Pedro. No fundo, São Pedro encerrava o ciclo
do Espírito Santo. Era o ponto final das celebrações. Com o tempo, isso mudou.
Hoje, já não são os mordomos os principais cavaleiros, no entanto, se algum
for, ou se alguém for em sua representação, tem lugar de destaque no desfile. E
ainda hoje há quem vá cumprir uma promessa ao Espírito Santo, como antigamente.
Tal como nas festas do Senhor Santo Cristo, também aqui há promessas que se
cumprem (não a pé) mas a cavalo.
O
próprio cortejo passava pelas casas dos mordomos. Depois da missa de São Pedro,
seguia-se o desfile, e o percurso incluía várias paragens: nas casas dos
mordomos, nos impérios e locais de referência como a Câmara, a igreja do
Espírito Santo e a de Santo André. Ainda hoje, a Cavalhada pára nos impérios
das cinco freguesias da Cidade da Ribeira Grande: Ribeira Seca, Santa Bárbara,
Matriz, Conceição e Ribeirinha.
Ainda
que a estrutura da festa fosse mudando, a ligação ao Espírito Santo mantém-se.
Muitos dos que vão ainda hoje, fazem-no com base numa promessa feita ao
Espírito Santo. E essa ligação explica, em boa parte, a persistência da
Cavalhada ao longo dos tempos.
A
figura do “Rei” e o conjunto de cavaleiros seguem uma estrutura simbólica muito
própria. Que significados históricos ou sociais podemos associar a esta
composição? Na documentação que temos, está claro que são
dadas sete voltas ao redor da Igreja de São Pedro, associadas aos sete dons do
Espírito Santo.
A
figura do Rei nem sempre teve essa designação. Inicialmente, era apenas o Mordomo
do Império de São Pedro. Também a bandeira sofreu alterações. Até 1867,
usava-se a do Espírito Santo, mas nesse ano o administrador do Concelho
proibiu-a, devido a abusos. A partir daí passou a usar-se uma bandeira vermelha
com as letras SP, de São Pedro.
De
que forma evoluiu o cortejo ao longo do tempo? Há registos de tensões,
interrupções ou reinterpretações da tradição em momentos específicos da
história local? Em 1910, com a implantação da República, as
Cavalhadas (ou melhor a Alvorada) passou a ser a festa celebrativa do Feriado municipal.
Porquê essa se já havia desde o início da Vila outra? A Ribeira Grande tinha (e
ainda mantém) Nossa Senhora da Estrela como padroeira do Concelho. Com a
República pretendeu-se uma festa fora do âmbito da Igreja? É muito provável.
Não esquecer o profundo anticlericalismo da nova elite republicana. No entanto,
a Alvorada era uma festa religiosa dedicada ao Espírito Santo. Como explicar a
sua preferência em detrimento das Estrelas? Talvez porque fosse uma festa
popular. De tradições populares muito fortes. É a partir daqui que se dá mais ênfase
aos aspectos mais populares? E se vai diluindo a ligação ao Espírito Santo? E
se começa a procurar motivos antigos. Tais como 1522 e 1563? Certo é que, a
partir de 1910, a Alvorada deixou de ser organizada exclusivamente pelos
mordomos do Espírito Santo, a Câmara entrou. A municipalização manteve-se até
1948, durante o Estado Novo, devido a uma lei da República que permitia a cada
município escolher uma festa municipal. A Ribeira Grande escolheu então as
Cavalhadas de São Pedro.
Com
esta ligação ao município, foi necessário introduzir mudanças significativas,
porque já desde o século XIX a elite e a classe média não gostavam muito da
forma como decorriam as Cavalhadas, nem do que lhes estava associado. Além do
desfile, existiam representações teatrais, mascaradas e crítica social directa,
semelhante ao que acontece com os bailarinos da ilha Terceira. Estas
manifestações eram consideradas, antes de 1910, reminiscências de um passado
pouco recomendável, que urgia mudar, que urgia civilizar. Mas isso é
característico do espírito progressista do século XIX. Essas manifestações
populares, esses exageros e tudo aquilo que estava ligado à Cavalhada eram
vistos dessa forma.
Em
1948, uma nova lei, já no tempo de António de Oliveira Salazar, tornou mais
rigorosa a escolha das festas municipais, fazendo com que a Alvorada deixasse temporariamente
de ser a festa do município entre o ano de 1948 e o de 1956.
Em 1956, graças às decisões de uma comissão criada pela autarquia, da qual
faziam parte, Dona Maria Mota, Sr. Tibúrcio Machado, Dr. José de Medeiros
Frazão, Dr. Armando Cortes Rodrigues, Dr. Carreiro da Costa, a Alvorada passou
a ser a que hoje vemos. Criaram-se novas regras de vestuário, novo código de
conduta dos cavaleiros, por exemplo, além de se ter então acentuado a tendência
para recuar a sua origem ao século XVI. Às duas catástrofes: 1522 e 1563. Porém,
Carreiro da Costa, após pesquisa, concluiu que faltavam provas. D. Maria Mota
(num pequeno trabalho dactilografado) continua a ligação da Alvorada ao
Espírito Santo.
Como
é que vê o lugar das Cavalhadas no património imaterial açoriano e nacional?
Com
todo o direito. Sou de opinião que devem integra-se na Festa mais abrangente do
Espírito Santo.
Na sua leitura, o
que explica a persistência desta prática ao longo dos séculos, mesmo com todas
as transformações sociais e religiosas?
A
Alvorada (Cavalhada) persiste porque teve sucesso desde cedo. Começou por ser
uma festa ligada a um império muito localizado, na freguesia da Ribeira Seca,
mas ganhou proeminência. As pessoas gostaram da festa e de tudo o que ela
envolvia, o que incentivou a sua continuidade. Com o tempo, passou a atrair
também pessoas de outras partes da ilha. Há relatos, já no século XIX, de
excursões organizadas para assistir às Cavalhadas, vindas de localidades como
Ponta Delgada, Lagoa ou Nordeste.
Mais
tarde, a municipalização deu ainda mais força à festa, depois veio o interesse,
primeiro, dos jornais, depois da rádio, da televisão, hoje das redes sociais.
Isso ajudou a não só a manter viva a prática. Mas a fazer crescê-la. Hoje em
dia, o número de cavaleiros aumentou consideravelmente: em 1856 são referidos
dez, em 1886 quinze, e actualmente ultrapassa largamente a centena.
Ao longo do tempo, houve muitas mudanças. O cortejo organizava-se após a missa
de São Pedro e passava pelas casas dos mordomos do Espírito Santo. Atrás iam
centenas de crianças e adultos mascarados, lançando sementes e fazendo crítica
social aberta, até mesmo à porta da Câmara. Essa componente desapareceu, embora
o Museu Municipal tenha tentado reintroduzi-la (com sucesso) durante alguns
anos.
Entre 1950 até sua morte, foi no Solar da D. Maria Mota, proprietária do Solar
da Mafoma, que se organizava a Alvorada. Aí com a ajuda de Tibúrcio Machado, punha-se
de pé aquele cortejo. A partir da década de 1960, Fernando Maré, com 16 anos,
participa activamente, sendo hoje o responsável por mobilizar cavaleiros e
cavalos em toda a ilha.
A Cavalhada infantil também tem um papel importante na continuidade. Antes, as
crianças brincavam com cavalinhos de pau, imitando os adultos. Hoje, essa
brincadeira foi formalizada: no próprio dia da festa, de manhã, realiza-se o
desfile infantil com cavalos de madeira, à semelhança do cortejo principal.
A motivação religiosa continua a ser essencial. Muitos cavaleiros participam
por promessa feita ao Espírito Santo, tal como acontece noutras festas
açorianas. Essa dimensão votiva ajuda a manter a tradição. Mesmo que hoje haja
quem vá por causa da presença da televisão ou da visibilidade pública, ainda há
quem vá por fé. E há quem acredite que não cumprir uma promessa pode ter
consequências.
Tudo isto explica porque razão esta prática nunca desapareceu. Mudou muito,
sim, mas manteve-se.
Em
que medida é que estas tradições podem impactar a economia local?
Há
uma ligação evidente entre os eventos culturais e o movimento económico local. A
uma escala menor, já foi uma festa comparável ao Senhor Santo Cristo, no século
XIX e durante boa parte do século XX. O Santo Cristo ganhou outra dimensão,
sobretudo pelas conexões com a festa do Espírito Santo, mas se fosse feito o
mesmo em relação às Cavalhadas, também elas poderiam crescer. Na altura, havia
pessoas que vinham cá para as Cavalhadas e outras que iam da Ribeira Grande ao
Santo Cristo. Havia também a festa de Nossa Senhora dos Passos e a do Senhor da
Pedra, em Vila Franca. Entre Ponta Delgada, Ribeira Grande e Vila Franca, essas
festas eram as principais e movimentavam muita gente. Isso fazia turismo
religioso. As pessoas vinham e ficavam, porque não se fazia tudo num dia, e não
havia transportes como hoje.
Mesmo
agora, se o dia 29 calha a meio da semana — e é feriado apenas na Ribeira
Grande — é natural que não venha tanta gente de fora. Mas o concelho participa.
E quando o feriado calha num domingo, como acontece este ano, há a procissão de
São Pedro e o cortejo das Cavalhadas. Portanto, este ano há um duplo motivo.
Daniela
Canha
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