A
Alvorada e o Império de São Pedro
Alvorada 1.ª metade do
século XX Alvorada 2007
Império de São
Pedro: Império de São Pedro:
Rabo de Peixe………………
Fenais da Ajuda
1. Alvorada
ou Arvorada? Cavalhada
ou Carvalhada?
No primeiro
documento conhecido que chama um nome à coisa, diz-se assim: ‘(…) cavalhada,
vulgo, arvorada [sic] de Sam Pedro.’ (1875)
No falar ouvido pelas ruas da sua terra de berço e área de influência, diz-se tudo ao dizer-se simplesmente: Arvorada ou Alvorada de São Pedro.
Por ali,
ouvem-se com a mesma facilidade com que se mete ar nos pulmões expressões como:
Vais ver a Alvorada? És o Rei da
Alvorada? Vais na Alvorada? Quantos cavalos foram este ano na Alvorada? A
Alvorada já passou? A Alvorada deste ano mandou peso! Dás sete voltas a São
Pedro como na Alvorada!
Na
linguagem fina - da imprensa escrita, falada ou televisiva -, ou na de
certas pessoas com algumas luzes, a coisa passou a ser conhecida apenas
por Cavalhadas de São Pedro. No falar dos que tanto fazem para puxar
para o político e acabam por se estender ao comprido: Carvalhadas de São Pedro.
Para muita
boa gente, Alvorada ou Arvorada, serão palavras mal ditas por gente sem cultura.
Pior ainda, aqueles dois termos não terão préstimo algum. Tal como Carvalhada.
Não estou bem de acordo com esse juízo. Os nomes não se colam à toa às coisas:
dizem-nos sempre qualquer coisa mais sobre a coisa nomeada. São como que poeiras
cósmicas de estrelas já mortas à espera de serem analisadas com todo o cuidado.
Por
exemplo: Aqui nos Açores (veja-se a recolha de Alvoradas impressas no
Arquivo dos Açores), um dos seus usos (alvorada) mais recorrentes remete logo
para a Festa em Honra e Louvor do Divino Espírito Santo. Mas isto daria pano
para as mangas de outra pesquisa.
Império da Lomba de
Cima Império do Bandejo
2. Hipóteses
Seis Alvoradas[1] passadas sobre o último trabalho que dei à luz sobre o assunto, volto não só a fazer finca pé à ligação ao culto do Divino Espírito Santo[2], como afirmo a sua ligação ao Império que se fazia então a São Pedro, no largo do mesmo nome.
É seguro afirmar-se que existiu vínculo funcional entre a Alvorada de São Pedro, da Ribeira Seca, da Ribeira Grande, e o Império de São Pedro na mesma terra. A documentação conhecida é bastante explícita a este respeito. Se é relativamente seguro sustentá-lo para 1856, é tanto mais seguro afirmá-lo para 1875 e 1877. Tal relação parece ainda subsistir na década de 1910 do século XX.
É
razoável afirmar-se que o uso da Alvorada ao Império de São Pedro terá
começado antes da de 1856. A documentação que admite essa afirmação, contudo,
só nos autoriza uma leitura implícita. Mas quando? Logo em 1671, ano da
fundação do Império? A partir de 1685, ano da construção do seu Teatro? Ou só
depois de 1707, ano em que Sousa Freire põe termo às suas notas? Não se sabe ao
certo (pelo menos eu não sei): nem Sousa Freire, nem Agostinho de Monte
Alverne, nem ninguém que se saiba ou documento conhecido disse algo acerca de
tal costume. Por ser tão banal ao ponto de não haver interesse em relatá-lo? É
uma possibilidade a não pôr de parte. Por não existir pura e simplesmente? É
outra hipótese provável. Com toda a honestidade: não sabemos.
Fosse
como fosse, deve ter seguramente surgido no lapso de tempo de quase dois
séculos que mediou a criação do Império e a nota de 1856. Possivelmente, já
numa altura em que existiriam mais do que um Império na freguesia? Se existe
alguma lógica nas coisas feitas pelos mãos dos homens, pelo menos a essa que
recorro, pelo que vimos escrito em 1877, e referido à Alvorada, ‘(…) costume
sem interrupção desde tempo imemorial,’ é de aceitar-se que tal tenha
acontecido em data afastada de 1856.
O que acaba
de ser escrito, não põe de parte a possibilidade da existência de outras
Alvoradas, antes ou depois das que lanço como hipótese.
3. Ónus da prova
Continue-se a comparar com
hoje. Vejam a indumentária de então: ‘Esses
cavaleiros vão ornados de muitas fitas de todas as cores e não poucos com
xailes amarelos ou vermelhos pelas costas e vestidos todos de branco. Na cabeça
levam um chapéu de pelo alto todo coberto de cordões e obras de ouro, que pedem
emprestados de ano para ano.’ Organização do evento: ‘Reúnem-se num ponto ajustado e às 11 horas desfilam todos para a
igreja de São Pedro, e aí dão três voltas uns atrás dos outros ao redor do
templo.’ Em 1867, continuam a ir além da área da Ribeira Seca/Santa
Bárbara: ‘Desfilam ali e em frente de
todas as outras igrejas, ermidas, e lugares públicos executam a mesma
cerimónia, acabando este improbo trabalho das três para as quatro horas da
tarde, hora em que se recolhem para descansarem.’ Mas deixam de poder usar
as bandeiras do Espírito Santo: ‘Este ano
foi-lhes proibido conduzirem bandeiras do Espírito Santo, e em seu lugar
levaram algumas de várias cores.’ Porquê? ‘Deve-se a cessação desta abuso ao Sr. administrador do concelho, que
vai desarreigando do povo alguns costumes, que são reprovados pela sã moral.’
Mas, atente-se sempre, o
desfile dos mordomos do Espírito Santo, ou seja ‘dos vários depositários da coroa para o
futuro ano,’ é seguido por outros acontecimentos (Comédias de São
Pedro): ‘Além destes cavaleiros há outros
denodos (sic) recitadores, que
pronunciam certas composições em verso, em que se fazem elogios a São Pedro e a
muitos santos, e alusões gerais mais ou menos picantes; mas que poucos percebem
por lhes dificultar a máscara algum tanto a pronunciação.’ Não terá essa
parte sido mais tarde incorporada na Alvorada? E mais um acontecimento: ‘Houve ainda uma outra cavalhada de mouros e
mouras, cristãos e cristãs, e em que haviam fingidas lutas e casamentos
dificultados pela diferença de religião, mas por fim têm sempre o desejado
desenlace pelo baptismo do herege.’ Há quem hoje misture essa Cavalhada com
a outra. Mesmo entre investigadores. ‘Eis aqui como o povo desta vila festeja o
dia de S. Pedro.’
Não se ficava por ali. Não
eram apenas os mordomos e os demais atrás referidos que faziam a festa, havia
outras mais. ‘Ainda na tarde desse dia
(29), muitas pessoas se mascararam, aparecendo contudo um par de jovens
jarretas, que chamava a atenção de todos. O consorte trajava chapéu de Braga
alto e grosseiro, casaca de pano azul com botões amarelos e calça branca mui
esternida e bengala na mão. A esposa vestia saia de lã cor de café fitas azuis
no chapéu abeiro com farto véu largado e mantilete de seda, só olhando-lhe para
ela fazia rir. Mas o que mais excitava à gargalhada era a tranquilidade com que
essas duas almas iam palmilhando o caminho, justamente em oposição com os
outros máscaras, que se distinguem por saltos e bulha incómoda. Assim acabou
este dia de cansaço e folga para os, para os que se divertem e para os que vêm
assistir.’[1]
Tal como hoje, a festa a São Pedro começava na véspera: ‘Este ano ardeu na véspera um lindo fogo artificial, que foi gozado por inúmera concorrência de povo, e tocando por esta ocasião, a Filarmónica desta Vila várias peças de música. E, ainda tal como hoje, ‘no dia próprio fez-se a função de igreja a instrumental pela Filarmónica e em que missou o Reverendo Mariano José Ferreira, orando o reverendo Manuel César de Oliveira.’ E finalmente tal como ainda hoje: ‘Foram reeleitos os mesmos festeiros, e, por conseguinte, para o ano temos outra vez boa função.’[2] Notável e lapidar esta descrição? Fico a aguardar novas provas. A História é assim. Entretanto, por aqui já se vê o que persiste e o que mudou. Mudou: trajes, bandeiras, comédias, cavalhadas mouriscas, carnaval. Mantém-se: ligação ao Espírito Santo.
4.
De que Império de São Pedro se trataria?
Bandeira arvorada na cobertura
Provando-se a existência de um império a São Pedro no largo de São Pedro e sabendo-se ao certo quando se fundou a festa do Império de São Pedro (1671) e se construiu o Teatro do Império de São Pedro (1685), só por si não prova que esta Alvorada (Cavalhadas para os letrados) tenha começado por aquela altura. Pode muito bem ter surgido antes daquelas datas. Ou até depois. Pode ter-se, por qualquer motivo desconhecido, entretanto, interrompido. Ou ter-se, por outras razões, modificado ao ponto de não ter nada a ver com uma putativa Alvorada primordial.
Seja como for, o facto de conhecermos a data da fundação da festa do Império em 1671 e da construção do seu Teatro em 1685, garante-nos pistas possíveis. Poderá dizer-se com alguma solidez que a Alvorada a São Pedro terá começado em data desconhecida, mas nunca antes da fundação do Império de São Pedro? É possível. Antes de 1671, a ter existido, seria uma alvorada a outra coisa? É também possível.
Segundo vem dito em João de Sousa Freire (Notas para o Tombo da Ribeira Seca: referido em Norberto da Cunha Pacheco, Ribeira Seca: terra das cavalhadas de São Pedro e da Madre Teresa da Anunciada, 2006, p. 45), o Império a São Pedro foi fundado no ano de 1671. Segundo o próprio João de Sousa Freire, à altura pároco daquela comunidade, Freire teria sido não só testemunha do facto como um dos seus cabouqueiros. Freire deixa-nos esta entrada no Tombo (cópia do original) da Ribeira Seca, quinze anos depois da fundação de que fala.
Foi fruto da iniciativa de um Padre franciscano, natural da Vila, de nome Frei Egídio da Vitória, que ao tempo assistia em casa de uma irmã casada na freguesia. Este frade conseguira entusiasmar algumas pessoas da terra, entre as quais um tal João Brandão. Este João Brandão, acompanhado de outros mais, teria vindo tomar conselho a João de Sousa Freire. Por assim dizer, Freire, devoto do Império, como se prova pela leitura das suas entradas no Tombo, não só bate palmas como entra na festa.
Freire assina um bom naco de prosa em forma de crónica, texto inédito que bem merecia ser publicado sem mais tardar, dedicado ao elogio da festa do Império do Espírito Santo. Por esta mesma altura, um franciscano de nome Frei Agostinho de Monte Alverne, filho da Vila, havia já ou haveria em breve de dedicar um capítulo das suas Crónicas ao Espírito Santo, na Ilha de Santa Maria. Comparando-o porém a Sousa Freire, lendo atentamente um e outro, não me cheira que Monte Alverne tenha sido um entusiasta da festa do Império. Com a mesma ideia fico depois de ler Gaspar Frutuoso. Humanista, ortodoxo, imbuído dos ensinamentos de Trento? A partir de então a festa entra por uns tempos em desgraça. Chegou a ser proibida no tempo dos Filipes. Em meados do século XVIII (1753), haveria o Padre Alberto Pereira Rei de dar à estampa na capital do Reino uma obra de índole laudatória da festa do Império ao Divino Espírito Santo.
Estando já o Império de São Pedro instituído em 1671, em 1685 construiu-se o Teatro do Espirito Santo. Segundo o próprio Sousa Freire, tal facto ter-se-ia ficado a dever ao próprio cronista (seria Provedor da Santa Casa da Misericórdia da Ribeira Grande, fez Passo, terá sido o autor do cadeiral da Matriz e da capela de São Vicente Ferrer, visitador do eclesiástico, se não mesmo Ouvidor do Eclesiástico. Foi contemporâneo de Monte Alverne e parece ter sido uma pessoa influente no seu tempo) e de um devoto que dava pelo nome de André de Fontes.
Este Teatro construído em pedra encontrava-se (não sei quando foi removido, o da Santa Casa da Misericórdia fora demolido para dar amplitude à praça em data próxima de 1769) no lado norte do adro da igreja do Apóstolo São Pedro.
5. Até uma próxima oportunidade
Como terá
surgido a ideia de fazer Alvorada a cavalo? Suponho que alguém, talvez um dos
Imperadores do Império a São Pedro, ter-se-á lembrado, ou porque vira em outro
lugar ou porque ouvira alguém dizer que se fazia assim, ou simplesmente terá
inventado sem mais, entre a sua fundação e 1856, de convidar imperadores
(mordomos ou despenseiros ou outra designação da altura) de outros impérios da
freguesia a correr as casas uns dos outros no dia em que São Pedro fecha com as
suas chaves a festa do Espírito Santo. Visitavam-se, davam-se a conhecer ao
povo e bebiam uns valentes copos em honra do Senhor Espírito Santo. A ideia,
por qualquer razão, terá caído no agrado do povo e ter-se-á repetido a ponto de
se transformar num acto do próprio Império. Tal como o saltar à fogueira o é
para o Império de São João? Provavelmente.
A Alvorada
de São Pedro (Cavalhadas) encerrava não só o Império de São Pedro mas todo o
ciclo festivo anual em louvor do Divino Espírito Santo. Nada de espantar, pois,
que o mesmo continue a suceder na freguesia vizinha de Rabo de Peixe, no
Império de São Pedro, na Cova de São Pedro (descrita por Hermano Teodoro em Estrela Oriental de Agosto de 2001 e
por mim em 2005 e 2007) ou no de São Pedro na freguesia dos Fenais da Ajuda (por
nós estudada em 2005). Não importa discutir se estes últimos apareceram depois, o
primeiro por influência directa do de São Pedro da Ribeira Grande, o segundo
não sei, importa somente reter que em áreas culturais próximas é natural fazerem-se
alvoradas a São Pedro. Para não falar em áreas culturais mais longe, como será
o caso brasileiro.
A terminar, importa dizer-se que já no século XX, o epicentro da Alvorada passara do largo de São Pedro para o Solar da Mafoma, o Império da rua do Biscoito deixou de ter a ver com a Alvorada/Cavalhada, existindo uma mordomia própria encarregada de pôr de pé a festa de São Pedro. Além do mais, as comédias, que hoje se realizam de quando em vez (estes dois últimos anos não houve nada), nada têm a ver com a Alvorada -Cavalhadas.
Mesmo a
terminar: ainda que provável, o que acabo agora de pôr um ponto final, ou de
suspensão, não pretende ser mais do que uma tese com pernas para andar. E um
contributo para o estudo deste ícone de identidade da minha terra natal.
Mário Moura/
2.02.2008 [e 2023]
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