A
Alvorada e o Império de São Pedro
Alvorada 1.ª metade do
século XX Alvorada 2007
Império de São
Pedro: Império de São Pedro:
Rabo de Peixe………………
Fenais da Ajuda
1. Alvorada
ou Arvorada? Cavalhada
ou Carvalhada?
No primeiro
documento conhecido que chama um nome à coisa, diz-se assim: ‘(…) cavalhada,
vulgo, arvorada [sic] de Sam Pedro.’ (1875)
No falar ouvido pelas ruas
da sua terra de berço e área de influência, diz-se tudo ao dizer-se
simplesmente: Arvorada ou Alvorada de São Pedro.
Por ali,
ouvem-se com a mesma facilidade com que se mete ar nos pulmões expressões como:
Vais ver a Alvorada? És o Rei da
Alvorada? Vais na Alvorada? Quantos cavalos foram este ano na Alvorada? A
Alvorada já passou? A Alvorada deste ano mandou peso! Dás sete voltas a São
Pedro como na Alvorada!
Na
linguagem fina - da imprensa escrita, falada ou televisiva -, ou na de
certas pessoas com algumas luzes, a coisa passou a ser conhecida apenas
por Cavalhadas de São Pedro. No falar dos que tanto fazem para puxar
para o político e acabam por se estender ao comprido: Carvalhadas de São Pedro.
Para muita
boa gente, Alvorada ou Arvorada, serão palavras mal ditas por gente sem cultura.
Pior ainda, aqueles dois termos não terão préstimo algum. Tal como Carvalhada.
Não estou bem de acordo com esse juízo. Os nomes não se colam à toa às coisas:
dizem-nos sempre qualquer coisa mais sobre a coisa nomeada. São como que poeiras
cósmicas de estrelas já mortas à espera de serem analisadas com todo o cuidado.
Por
exemplo: Aqui nos Açores (veja-se a recolha de Alvoradas impressas no
Arquivo dos Açores), um dos seus usos (alvorada) mais recorrentes remete logo
para a Festa em Honra e Louvor do Divino Espírito Santo. Mas isto daria pano
para as mangas de outra pesquisa.
Império da Lomba de
Cima Império do Bandejo
2. Hipóteses
Seis
Alvoradas
passadas sobre o último trabalho que dei à luz sobre o assunto, volto não só a
fazer finca pé à ligação ao culto do Divino Espírito Santo,
como afirmo a sua ligação ao Império que se fazia então a São Pedro, no largo
do mesmo nome.
É
seguro afirmar-se que existiu vínculo funcional entre a Alvorada de São Pedro,
da Ribeira Seca, da Ribeira Grande, e o Império de São Pedro na mesma terra. A
documentação conhecida é bastante explícita a este respeito. Se é relativamente
seguro sustentá-lo para 1856, é tanto mais seguro afirmá-lo para 1875 e 1877.
Tal relação parece ainda subsistir na década de 1910 do século XX.
É
razoável afirmar-se que o uso da Alvorada ao Império de São Pedro terá
começado antes da de 1856. A documentação que admite essa afirmação, contudo,
só nos autoriza uma leitura implícita. Mas quando? Logo em 1671, ano da
fundação do Império? A partir de 1685, ano da construção do seu Teatro? Ou só
depois de 1707, ano em que Sousa Freire põe termo às suas notas? Não se sabe ao
certo (pelo menos eu não sei): nem Sousa Freire, nem Agostinho de Monte
Alverne, nem ninguém que se saiba ou documento conhecido disse algo acerca de
tal costume. Por ser tão banal ao ponto de não haver interesse em relatá-lo? É
uma possibilidade a não pôr de parte. Por não existir pura e simplesmente? É
outra hipótese provável. Com toda a honestidade: não sabemos.
Fosse
como fosse, deve ter seguramente surgido no lapso de tempo de quase dois
séculos que mediou a criação do Império e a nota de 1856. Possivelmente, já
numa altura em que existiriam mais do que um Império na freguesia? Se existe
alguma lógica nas coisas feitas pelos mãos dos homens, pelo menos a essa que
recorro, pelo que vimos escrito em 1877, e referido à Alvorada, ‘(…) costume
sem interrupção desde tempo imemorial,’ é de aceitar-se que tal tenha
acontecido em data afastada de 1856.
O que acaba
de ser escrito, não põe de parte a possibilidade da existência de outras
Alvoradas, antes ou depois das que lanço como hipótese.
3. Ónus da prova
Terminada a missa solene
em honra do Primeiro Papa, homem rude favorecido pelos dons do Divino Espírito
Santo, com o padre a mandar os presentes para casa em latim legítimo, os
‘festeiros’ da primeira dominga do Espírito Santo da Ribeira Seca e de Santa
Bárbara (por muitos anos ainda curato da primeira) reuniram-se no adro da
igreja. Após o que, foram percorrer, segundo as palavras de quem fez a notícia,
todas as freguesias da Vila da Ribeira Grande (não sei quais), ricamente
vestidos, montados em cavalos, e empunhando bandeiras largas (não sei o que
sejam) do Espírito Santo. Atrás deste pequeno cortejo (longe dos 123 cavaleiros
deste ano: então não mais de dez), seguia um número de mascarados (1856: Mário Moura, Estrela Oriental,
Julho de 2001).
Basta uma curta vista de
olhos para se concluir que apesar de nos pôr a claro a relação entre a Alvorada
- Cavalhada e o Espírito Santo, esta descrição de 1856 não nos esclarece preto
no branco acerca da ligação entre o Império de São Pedro, que se realizava no
adro da igreja, e a Alvorada de São Pedro.
A confirmação viria em
1875. À décima nona Alvorada após a descrita em 1856, uma nota de 1875,
estabelece sem deixar margem para quaisquer dúvidas aquela ligação. Trata-se de
uma nota de Licença para Fogo (Fui
alertado para a mesma pelo Dr. Hermano Teodoro, a quem devo a atenção).
Atente-se bem aos
pormenores. Um tal José António Rebelo, lojista, ao que julgo saber, pedia ‘(…)
na qualidade de imperador da primeira dominga do Divino Espírito Santo [repare-se]
do império que se erige [existiria à altura ainda o Teatro de pedra ou
seria já uma estrutura desmontável?] no largo de São Pedro da dita Ribeira
Seca,’ licença para lançar foguetes. Isto para o dia vinte e nove de Junho.
Esteja-se ainda atento. Porque iria: ‘(…) ter lugar a cavalhada, vulgo,
arvorada de São Pedro, que do referido lugar da Ribeira Seca costuma sair e
percorrer várias ruas das freguesias de São Pedro, Conceição e Matriz desta
Vila.’ (AMRG, Livro de
Fogo, Liv. 36, fl. 33)
Dois São Pedro mais à
frente, a nota refere fulano como ‘(…) mordomo da festa de S. Pedro.’ E
destinando-se ao mesmo, licença para lançar fogo, acrescenta que iria ‘(…)
sair em festejo como é costume sem interrupção desde tempos imemoriais a
denominada Alvorada de São Pedro.’ (AMRG, Livro de Fogo, Liv. 36, anexo solto)
Assim o escrevi em 2007/8, agora, 2023, após ter dado
caras há dois anos no jornal da Ribeira Grande O Forúm com uma descrição e crítica (contundente) da Alvorada,
acrescento e confirmo a hipótese inicial. O seu autor é um florentino havia
muito radicado na Ilha e há alguns anos professor na Vila da Ribeira Grande.
Chamava-se (ou melhor deu-se esse nome) Teófilo Ferreira. Amigo e protegido de
Francisco Maria Supico. Amigo também de Teófilo de Braga. Iria longe na
política nacional. Teófilo observa atentamente de forma crítica o que vê e
dá-lhe o título de ‘Novidades.’
Começa por explicar aos leitores do que se trata: ‘A novidade mais nova; mas que para os leitores desta Vila é novidade velhíssima é as recentes cavalhadas de S. Pedro, executadas no dia 29 do mês passado,
em que a Igreja reza deste Santo Apóstolo. Todos os anos é concorridíssima esta
funçanata por pessoas de perto e de longe, que vêem admirar não sabemos o quê. Em todos os desconchavos, que por
ali se figuram, há o ridículo elevado ao seu maior auge, mas o povo folga
bastante e tanto mais nos alegramos pelo seu contentamento, quanto é certo
serem mui poucas as distracções que ele tem. Quem nunca viu a farsa estrondosa,
que nesta Vila se representa no dia indicado, não pode fazer uma ideia
aproximada do que é a bugiganga denominada alvorada.’
E de que se trata esta alvorada? Eis a sua descrição crítica: ‘Apresentam-se máscaras esquisitas em toda a
extensão desta palavra exprimindo disformidade. Aqui aparece um máscara vestido
com um saco de folha de maçaroca, representando um monstro, ali outro
envergando o mais esfarrapado fato e tendo por capacete uma carapuça de vimes.
Número infinito de meninas machas com os seus alvos vestidos assentadas sobre
enfermos burricos ou tangendo a sua viola ou pulando sem elegância diante do
marmanjo, que lhe serve de companheiro, e muitas vezes embasbacando os
iludidos, quando ao aproximarem-se lhes descobrem uma grossa barba preta sobre
rugosa e requeimada epiderme. Por toda a parte nos cercam mascaradões,
mascarados e mascaradinhos vestidos multiformemente. É uma verdadeira
inferneira.
Além destas incómodas criaturas há ainda os repugnantes
condutores de burras inúteis, que as conduzem em ranchos aqui e acolá
mugindo-as e oferecendo o peitoral líquido aos circunstantes, e bem assim os
lavradores com parelhas dos mesmos animais lavrando pelas ruas, levando atrás o
competente espalhador de linhaça, que a reparte pela cara de quem pretende
observar a sua admirável invenção. Algumas carroças ainda repletas de
mascarados de todas as espécies aumentam o número desta diabólica marafunda.’ A funçanata não se esgotava
aí: ‘A parte séria, mas não menos
ridícula, é a que constitui a cavalhada denominada – Imperadores do Espírito Santo.’ Atentem no
que vê e nos descreve em 1867 que confirma a Estrela Oriental de 1856: ‘Compõe-se ela dos vários depositários da coroa para o
futuro ano, e em consequência
disto levavam, em todos os anos pretéritos, a cavalo e empunhada a bandeira do
Espírito Santo com notória irreverência. Esses cavaleiros vão ornados de muitas
fitas de todas as cores e não poucos com xailes amarelos ou vermelhos pelas
costas e vestidos todos de branco. Na cabeça levam um chapéu de pelo alto todo
coberto de cordões e obras de ouro, que pedem emprestados de ano para ano. Reúnem-se num ponto ajustado e às 11 horas
desfilam todos para a igreja de São Pedro, e aí dão três voltas uns atrás dos
outros ao redor do templo.’ Mas ao contrário do que parece ter acontecido
em 1856, em 1867 vão além da área da Ribeira Seca/Santa Bárbara: ‘Desfilam ali e em frente de todas as outras
igrejas, ermidas, e lugares públicos executam a mesma cerimónia, acabando este
improbo trabalho das três para as quatro horas da tarde, hora em que se
recolhem para descansarem.’ E neste mesmo ano de 1867 deixam de poder usar
as bandeiras do Espírito Santo: ‘Este ano
foi-lhes proibido conduzirem bandeiras do Espírito Santo, e em seu lugar
levaram algumas de várias cores.’ Porquê? ‘Deve-se a cessação desta abuso ao Sr. administrador do concelho, que
vai desarreigando do povo alguns costumes, que são reprovados pela sã moral.’
‘Louvores.’
Remata Teófilo.
O desfile dos mordomos do
Espírito Santo, ou seja ‘dos vários depositários da coroa para o futuro ano,’ é
seguido por outros acontecimentos (Comédias de São Pedro): ‘Além destes cavaleiros há outros denodos
(sic) recitadores, que pronunciam certas
composições em verso, em que se fazem elogios a São Pedro e a muitos santos, e
alusões gerais mais ou menos picantes; mas que poucos percebem por lhes
dificultar a máscara algum tanto a pronunciação.’
E mais ainda: ‘Houve ainda uma outra cavalhada de mouros e
mouras, cristãos e cristãs, e em que haviam fingidas lutas e casamentos
dificultados pela diferença de religião, mas por fim têm sempre o desejado
desenlace pelo baptismo do hereje.’ ‘Eis aqui como o povo desta vila
festeja o dia de S. Pedro.’
A festa a São Pedro começara
na véspera: ‘Este ano ardeu na véspera um
lindo fogo artificial, que foi gozado por inúmera concorrência de povo, e
tocando por esta ocasião, a Filarmónica desta Vila várias peças de música. E,
‘No dia próprio fez-se a função de igreja
a instrumental pela Filarmónica e em que missou o Reverendo Mariano José
Ferreira, orando o reverendo Manuel César de Oliveira.’ E tal como ainda
hoje: ‘Foram reeleitos os mesmos
festeiros, e, por conseguinte, para o ano temos outra vez boa função.’
‘Não concluiremos sem prestaremos os nossos louvores ao
Reverendo Joaquim Guilherme da Costa pela direcção, que deu, para o ornato do
templo, pois o camarim da capela-mor estava arrebatador pela variedade e boa
colocação de flores naturais que o ornamentavam. Desde muito que conhecemos o
bom gosto do sr. Padre Costa e neste dia tivemos ocasião de colhermos mais uma
prova dele pelo prazer, que gozávamos, quando fitávamos os olhos naquele
anfiteatro de flores.
Não eram apenas os mordomos
e os demais atrás referidos que faziam a festa, outros mais. ‘
Ainda na tarde desse dia, muitas pessoas se
mascararam, aparecendo contudo um par de jovens jarretas, que chamava a atenção
de todos. O consorte trajava chapéu de Braga alto e grosseiro, casaca de pano
azul com botões amarelos e calça branca mui esternida e bengala na mão. A
esposa vestia saia de lã cor de café fitas azuis no chapéu abeiro com farto véu
largado e mantilete de seda, só olhando-lhe para ela fazia rir. Mas o que mais
excitava à gargalhada era a tranquilidade com que essas duas almas iam
palmilhando o caminho, justamente em oposição com os outros máscaras, que se
distinguem por saltos e bulha incómoda. Assim acabou este dia de cansaço e
folga para os, para os que se divertem e para os que vêm assistir.’
Notável
e lapidar esta descrição? Fico a aguardar novas provas. A História é assim.
Ainda na segunda década do
século XX, as Cavalhadas resultariam ‘(…) de promessas religiosas feitas
durante o ano e nelas tomam parte os penitentes e ainda os que têm a 1.ª
dominga do Espírito Santo, gente da freguesia e arredores.’ Todavia, já não
seriam só os festeiros da Ribeira Seca que tomariam parte no cortejo. Trata-se
da memória vertida em artigo de jornal de um cultíssimo membro da elite local,
de nome Dr. José de Medeiros Tavares. Daí o termo Cavalhada e não Alvorada. (Dr. José de Medeiros Tavares, As
Cavalhadas da sua infância, cf. Correio dos Açores, 29 de Junho de 1966,
transcrito Estrela Oriental, Julho de 2001, p. 1).
Com o rodar dos anos,
graças em parte à metamorfose sofrida pela Alvorada, primeiro festa dos
Impérios, depois festa do Concelho e à protecção oficial que veio a gozar a
partir de então (alguma
compensação aos participantes: dinheiro, prémios ou fama), os penitentes
foram ultrapassando em número os mordomos.
Já neste ano de 2007, com
a Alvorada desligada da festa da igreja e sem comédias a segui-la como dantes,
só assim conhecida na linguagem falada do dia-a-dia, sem nada a ver com o
festeiro da primeira dominga do Império de São Pedro, do qual apenas existe uma
memória difusa, Fernando Maré, o responsável no terreno há mais de 47 anos, em
entrevista a um jornal local, dizia: ‘(…) Os mordomos do Espírito Santo, ainda
hoje (2007), preparam um cavaleiro para participar nas Cavalhadas./ Regra
geral, quem vai ao lado do rei, são os cavaleiros mais bem enfeitados. Se algum
deles é do mordomo exige ir ao lado, mesmo que não esteja muito bem enfeitado.’
(Carmen Costa, A Romaria é uma
penitência e as cavalhadas uma festa, Correio do Norte, 1.ª quinzena de Junho
de 2007, pp. 6-7)
Se tal ainda não bastasse
para nos convencer a dar algum crédito a esta hipótese, atente-se no relato de
graças e de castigos por cumprir ou não a ida na Alvorada, que acompanha a
entrevista. É característico da cultura do Império ao Divino Espírito Santo. As
fitas das bandeiras que enfeitavam a bandeira dos cavaleiros eram as das
bandeiras dos Impérios. As sete voltas à igreja do Apóstolo ou as três à volta
da do Espírito Santo. Tudo isso vem contado na referida entrevista. Já o disse
em artigo de 2002: as bandeiras actuais, ainda vermelhas, são uma espécie de
arremedo das, entretanto, proibidas do Espírito Santo.
Neste tipo de trabalho, é
bom repeti-lo, é sempre útil recorrer à boa memória das pessoas mais antigas da
terra. Assim o fiz. A caminho de completar 87 anos de idade, João Barbosa
Silvestre, numa conversa corrida a recordar as Alvoradas dos tempos em que era
ainda menino e moço ou já rapazote ou rapaz casadoiro. Logo ao romper do dia, o
dia prometia, eu e ele sentados à mesa de um café do chamado Canto da Fonte,
perto de casa dele, bem disposto, disse-nos que ‘(…) os despenseiros do
Espírito Santo da freguesia iam na Alvorada levando os canecos enfeitados com
ouro.’
Hermano Lima Bravo, outro nado e criado naquela terra, de idade que disse ser
de 83 anos, com quem conversei à cancela da sua casa umas centenas de metros
acima do Canto da Fonte, confirmou-o: ‘Quem fazia a despensa na freguesia ia
na Alvorada. Iam ao todo uns 10, 15, às vezes nem tanto.’
E, como toque final, junto
dois registos apenas: o gesto dos mordomos a abençoar com a coroa do Espírito
Santo a visita da Alvorada. Gesto antigo. Algo que observei e registei em 2005
(Santa Bárbara) e de novo neste ano de 2007 (Ribeira Seca); e a bandeira do
Senhor Espírito Santo arvorada (reparem no termo e tirem as suas conclusões:
arvorada de São Pedro? Bandeira arvorada?) no cimo da armação de uma casa da
rua da Saudade (dia 9 deste
mês, na antiga canada do Feitor).
4.
De que Império de São Pedro se trataria?
Bandeira arvorada na cobertura
Provando-se a existência
de um império a São Pedro no largo de São Pedro e sabendo-se ao certo quando se
fundou a festa do Império de São Pedro (1671) e se construiu o Teatro do
Império de São Pedro (1685), só por si não prova que esta Alvorada (Cavalhadas
para os letrados) tenha começado por aquela altura. Pode muito bem ter surgido
antes daquelas datas. Ou até depois. Pode ter-se, por qualquer motivo
desconhecido, entretanto, interrompido. Ou ter-se, por outras razões,
modificado ao ponto de não ter nada a ver com uma putativa Alvorada primordial.
Seja como for, o facto de
conhecermos a data da fundação da festa do Império em 1671 e da construção do
seu Teatro em 1685, garante-nos pistas possíveis. Poderá dizer-se com alguma
solidez que a Alvorada a São Pedro terá começado em data desconhecida, mas
nunca antes da fundação do Império de São Pedro? É possível. Antes de 1671, a
ter existido, seria uma alvorada a outra coisa? É também possível.
Segundo vem dito em João
de Sousa Freire (Notas para o
Tombo da Ribeira Seca: referido em Norberto da Cunha Pacheco, Ribeira Seca:
terra das cavalhadas de São Pedro e da Madre Teresa da Anunciada, 2006, p. 45),
o Império a São Pedro foi fundado no ano de 1671. Segundo o próprio João de
Sousa Freire, à altura pároco daquela comunidade, Freire teria sido não só
testemunha do facto como um dos seus cabouqueiros. Freire deixa-nos esta
entrada no Tombo (cópia do original) da Ribeira Seca, quinze anos depois da
fundação de que fala.
Foi fruto da iniciativa de
um Padre franciscano, natural da Vila, de nome Frei Egídio da Vitória, que ao
tempo assistia em casa de uma irmã casada na freguesia. Este frade conseguira
entusiasmar algumas pessoas da terra, entre as quais um tal João Brandão. Este
João Brandão, acompanhado de outros mais, teria vindo tomar conselho a João de
Sousa Freire. Por assim dizer, Freire, devoto do Império, como se prova pela
leitura das suas entradas no Tombo, não só bate palmas como entra na festa.
Freire assina um bom naco
de prosa em forma de crónica, texto inédito que bem merecia ser publicado sem
mais tardar, dedicado ao elogio da festa do Império do Espírito Santo. Por esta
mesma altura, um franciscano de nome Frei Agostinho de Monte Alverne, filho da
Vila, havia já ou haveria em breve de dedicar um capítulo das suas Crónicas ao
Espírito Santo, na Ilha de Santa Maria. Comparando-o porém a Sousa Freire,
lendo atentamente um e outro, não me cheira que Monte Alverne tenha sido um
entusiasta da festa do Império. Com a mesma ideia fico depois de ler Gaspar
Frutuoso. Humanista, ortodoxo, imbuído dos ensinamentos de Trento? A partir de
então a festa entra por uns tempos em desgraça. Chegou a ser proibida no tempo
dos Filipes. Em meados do século XVIII (1753), haveria o Padre Alberto Pereira
Rei de dar à estampa na capital do Reino uma obra de índole laudatória da festa
do Império ao Divino Espírito Santo.
Estando já o Império de
São Pedro instituído em 1671, em 1685 construiu-se o Teatro do Espirito Santo.
Segundo o próprio Sousa Freire, tal facto ter-se-ia ficado a dever ao próprio
cronista (seria Provedor da
Santa Casa da Misericórdia da Ribeira Grande, fez Passo, terá sido o autor do
cadeiral da Matriz e da capela de São Vicente Ferrer, visitador do
eclesiástico, se não mesmo Ouvidor do Eclesiástico. Foi contemporâneo de Monte
Alverne e parece ter sido uma pessoa influente no seu tempo) e de um
devoto que dava pelo nome de André de Fontes.
Este Teatro construído em
pedra encontrava-se (não sei quando foi removido, o da Santa Casa da
Misericórdia fora demolido para dar amplitude à praça em data próxima de 1769)
no lado norte do adro da igreja do Apóstolo São Pedro.
5. Até uma próxima oportunidade
Como terá
surgido a ideia de fazer Alvorada a cavalo? Suponho que alguém, talvez um dos
Imperadores do Império a São Pedro, ter-se-á lembrado, ou porque vira em outro
lugar ou porque ouvira alguém dizer que se fazia assim, ou simplesmente terá
inventado sem mais, entre a sua fundação e 1856, de convidar imperadores
(mordomos ou despenseiros ou outra designação da altura) de outros impérios da
freguesia a correr as casas uns dos outros no dia em que São Pedro fecha com as
suas chaves a festa do Espírito Santo. Visitavam-se, davam-se a conhecer ao
povo e bebiam uns valentes copos em honra do Senhor Espírito Santo. A ideia,
por qualquer razão, terá caído no agrado do povo e ter-se-á repetido a ponto de
se transformar num acto do próprio Império. Tal como o saltar à fogueira o é
para o Império de São João? Provavelmente.
A Alvorada
de São Pedro (Cavalhadas) encerrava não só o Império de São Pedro mas todo o
ciclo festivo anual em louvor do Divino Espírito Santo. Nada de espantar, pois,
que o mesmo continue a suceder na freguesia vizinha de Rabo de Peixe, no
Império de São Pedro, na Cova de São Pedro (descrita por Hermano Teodoro em Estrela Oriental de Agosto de 2001 e
por mim em 2005 e 2007) ou no de São Pedro na freguesia dos Fenais da Ajuda (por
nós estudada em 2005). Não importa discutir se estes últimos apareceram depois, o
primeiro por influência directa do de São Pedro da Ribeira Grande, o segundo
não sei, importa somente reter que em áreas culturais próximas é natural fazerem-se
alvoradas a São Pedro. Para não falar em áreas culturais mais longe, como será
o caso brasileiro.
A terminar, importa
dizer-se que já no século XX, o epicentro da Alvorada passara do largo de São
Pedro para o Solar da Mafoma, o Império da rua do Biscoito deixou de ter a ver
com a Alvorada/Cavalhada, existindo uma mordomia própria encarregada de pôr de
pé a festa de São Pedro. Além do mais, as comédias, que hoje se realizam de
quando em vez (estes dois últimos anos não houve nada), nada têm a ver com a
Alvorada -Cavalhadas.
Mesmo a
terminar: ainda que provável, o que acabo agora de pôr um ponto final, ou de
suspensão, não pretende ser mais do que uma tese com pernas para andar. E um
contributo para o estudo deste ícone de identidade da minha terra natal.
Mário Moura/
2.02.2008 [e 2023]
Fórum, Ribeira Grande, n.º 15, 6 de Julho de
1867, fl. [2?]
Comentários