A Alvorada e o Império de São Pedro
Alvorada 1.ª metade do século XX Alvorada 2007
Império de São Pedro: Império de São Pedro:
Rabo de Peixe……………… Fenais da Ajuda
1. Alvorada ou Arvorada? Cavalhada ou
Carvalhada?
No primeiro documento conhecido que chama um nome à coisa, diz-
se assim: ‘(…) cavalhada, vulgo, arvorada [sic] de Sam Pedro.’ (1875)
No falar ouvido pelas ruas da sua terra de berço e área de influência,
diz-se tudo ao dizer-se simplesmente: Arvorada ou Alvorada de São
Pedro.
Por ali, ouvem-se com a mesma facilidade com que se mete ar nos
pulmões expressões como: Vais ver a Alvorada? És o Rei da Alvorada?
Vais na Alvorada? Quantos cavalos foram este ano na Alvorada? A
Alvorada já passou? A Alvorada deste ano mandou peso! Dás sete voltas a
São Pedro como na Alvorada!
Na linguagem fina - da imprensa escrita, falada ou televisiva -, ou na
de certas pessoas com algumas luzes, a coisa passou a ser conhecida apenas
por Cavalhadas de São Pedro. No falar dos que tanto fazem para puxar
para o político e acabam por se estender ao comprido: Carvalhadas de São
Pedro.
Para muita boa gente, Alvorada ou Arvorada, serão palavras mal
ditas por gente sem cultura. Pior ainda, aqueles dois termos não terão
préstimo algum. Tal como Carvalhada. Não estou bem de acordo com esse
juízo. Os nomes não se colam à toa às coisas: dizem-nos sempre qualquer
coisa mais sobre a coisa nomeada. São como que poeiras cósmicas de
estrelas já mortas à espera de serem analisadas com todo o cuidado.
Por exemplo: Aqui nos Açores (veja-se a recolha de Alvoradas impressas
no Arquivo dos Açores), um dos seus usos (alvorada) mais recorrentes remete
logo para a Festa em Honra e Louvor do Divino Espírito Santo. Mas isto
daria pano para as mangas de outra pesquisa.
Império da Lomba de Cima Império do Bandejo
2. Hipóteses
Seis Alvoradas 1 passadas sobre o último trabalho que dei à luz sobre
o assunto, volto não só a fazer finca-pé à ligação ao culto do Divino
Espírito Santo 2 , como afirmo a sua ligação ao Império que se fazia então a
São Pedro, no largo do mesmo nome.
É seguro afirmar-se que existiu vínculo funcional entre a Alvorada
de São Pedro, da Ribeira Seca, da Ribeira Grande, e o Império de São
Pedro na mesma terra. A documentação conhecida é bastante explícita a
este respeito. Se é relativamente seguro sustentá-lo para 1856, é tanto mais
seguro afirmá-lo para 1875 e 1877. Tal relação parece ainda subsistir na
década de 1910 do século XX.
É razoável afirmar-se que o uso da Alvorada ao Império de São
Pedro terá começado antes da de 1856. A documentação que admite essa
afirmação, contudo, só nos autoriza uma leitura implícita. Mas quando?
1 Se calhar pelo meu coração guinar para o vulgar, opto por usar o termo Alvorada.
2 Manuel Breda Simões, Roteiro Lexical do Culto e Festa do Espírito Santo nos Açores, I.C.L.P, 1987,
p.60. Simões di-lo aí, mas sem provas substantivas, só num palpite que se provou acertado. Baseando-se,
em parte, segundo refere o mesmo autor, em trabalho inédito de Maria Mota Faria, que não tive a
oportunidade de ler, intitulado: As Cavalhadas de São Pedro (inédito), Ribeira Seca, 1980.
Logo em 1671, ano da fundação do Império? A partir de 1685, ano da
construção do seu Teatro? Ou só depois de 1707, ano em que Sousa Freire
põe termo às suas notas? Não se sabe ao certo (pelo menos eu não sei): nem
Sousa Freire, nem Agostinho de Monte Alverne, nem ninguém que se saiba
ou documento conhecido disse algo acerca de tal costume. Por ser tão banal
ao ponto de não haver interesse em relatá-lo? É uma possibilidade a não
pôr de parte. Por não existir pura e simplesmente? É outra hipótese
provável. Com toda a honestidade: não sabemos.
Fosse como fosse, deve ter seguramente surgido no lapso de tempo
de quase dois séculos que mediou a criação do Império e a nota de 1856.
Possivelmente, já numa altura em que existiriam mais do que um Império
na freguesia? Se existe alguma lógica nas coisas feitas pelas mãos dos
homens, pelo menos a essa que recorro, pelo que vimos escrito em 1877, e
referido à Alvorada, ‘(…) costume sem interrupção desde tempo
imemorial,’ é de aceitar-se que tal tenha acontecido em data afastada de
1856.
O que acaba de ser escrito, não põe de parte a possibilidade da
existência de outras Alvoradas, antes ou depois das que lanço como
hipótese.
3. Ónus da prova
Terminada a missa solene em honra do Primeiro Papa, homem rude
favorecido pelos dons do Divino Espírito Santo, com o padre a mandar os
presentes para casa em latim legítimo, os ‘festeiros’ da primeira dominga
do Espírito Santo da Ribeira Seca e de Santa Bárbara (por muitos anos
ainda curato da primeira) reuniram-se no adro da igreja. Após o que, foram
percorrer, segundo as palavras de quem fez a notícia, todas as freguesias da
Vila da Ribeira Grande (não sei quais), ricamente vestidos, montados em
cavalos, e empunhando bandeiras largas (não sei o que sejam) do Espírito
Santo. Atrás deste pequeno cortejo (longe dos 123 cavaleiros deste ano:
então não mais de dez), seguia um número de mascarados (1856: Mário
Moura, Estrela Oriental, Julho de 2001).
Basta uma curta vista de olhos para se concluir que apesar de nos pôr
a claro a relação entre a Alvorada - Cavalhada e o Espírito Santo, esta
descrição de 1856 não nos esclarece preto no branco acerca da ligação
entre o Império de São Pedro, que se realizava no adro da igreja, e a
Alvorada de São Pedro.
A confirmação viria em 1875. À décima nona Alvorada após a
descrita em 1856, uma nota de 1875, estabelece sem deixar margem para
quaisquer dúvidas aquela ligação. Trata-se de uma nota de Licença para
Fogo (Fui alertado para a mesma pelo Dr. Hermano Teodoro, a quem devo a atenção).
Atente-se bem aos pormenores. Um tal José António Rebelo, lojista,
ao que julgo saber, pedia ‘(…) na qualidade de imperador da primeira
dominga do Divino Espírito Santo [repare-se] do império que se erige
[existiria à altura ainda o Teatro de pedra ou seria já uma estrutura
desmontável?] no largo de São Pedro da dita Ribeira Seca,’ licença para
lançar foguetes. Isto para o dia vinte e nove de Junho. Esteja-se ainda
atento. Porque iria: ‘(…) ter lugar a cavalhada, vulgo, arvorada [sic] de
São Pedro, que do referido lugar da Ribeira Seca costuma sair e percorrer
várias ruas das freguesias de São Pedro, Conceição e Matriz desta Vila.’
(AMRG, Livro de Fogo, Liv. 36, fl. 33)
Por será que o texto de 1856 ‘não nos esclareceu preto no branco
acerca da ligação entre o Império de São Pedro’ e o de 1875 a ligação é
claro acerca dessa ligação? Talvez porque em 1856 ainda vigorasse a
‘proibição episcopal’ de festejar o Espírito Santo depois da terça-feira de
Pentecostes que começou ‘a partir de 1843.’ E, tendo essa deixado de
vigorar em 1872, já 1875 se poderia festejar o Espírito Santo no dia
dedicado a São Pedro. 3 Prova de que o conhecimento nunca está fechado e
que funciona como uma espécie de peças que se encaixam num quebra-
cabeças, é ter acrescentado (hoje, dia 3 de Julho de 2024) mais uma peça
após ter tomado conhecimento da nota de Francisco Carreiro da Costa (que
vem referida em Avelino de Menezes).
Um pedido de 1877 reforça a ideia. Ao referir fulano como ‘(…) mordomo
da festa de S. Pedro,’ continua a clarificar a ligação. Destinando-se (o
pedido), a licença para lançar fogo, acrescenta-se que iria ‘(…) sair em
festejo como é costume sem interrupção desde tempos imemoriais a
denominada Alvorada de São Pedro.’ (AMRG, Livro de Fogo, Liv. 36, anexo
solto)
Assim o escrevi em 2007/8, agora, 2023, após ter dado caras há dois anos
no jornal da Ribeira Grande O Forúm com uma descrição e crítica
(contundente) da Alvorada, acrescento e confirmo a hipótese inicial. Mas
vai muito além disso, descreve o que se passa ao redor da Alvorada. O seu
autor é um florentino havia muito radicado na Ilha e há alguns anos
professor na Vila da Ribeira Grande. Chamava-se (ou melhor deu-se esse
nome) Teófilo Ferreira. Amigo e protegido de Francisco Maria Supico.
Amigo também de Teófilo de Braga. Iria longe na política nacional. Teófilo
observa atentamente de forma crítica o que vê. A ‘bugiganga denominada
alvorada’ ‘é concorridíssima (…) por pessoas de perto e de longe.’ Não
acha graça ao que vê: ‘que vêem admirar não sabemos o quê. Em todos os
desconchavos, que por ali se figuram, há o ridículo elevado ao seu maior
auge, mas o povo folga bastante e tanto mais nos alegramos pelo seu
3Menezes, Avelino, O culto do Espírito Santo na religião dos Açores, Utopia global do Espírito Santo. Cultura, cultos e inspirações utópicos, Eduardo
Franco, António Manuel Ribeiro Rebelo, Coordenação científica, Imprensa da Universidade de Coimbra, V. II, 2021, pp. 25-26. (cf. Francisco Carreiro
da Costa, As Festas do Espírito Santo nos Açores, Insulana, XIII, 1957: 32)
contentamento, quanto é certo serem mui poucas as distracções que ele
tem. Quem nunca viu a farsa estrondosa, que nesta Vila se representa no
dia indicado, não pode fazer uma ideia aproximada do que é a bugiganga
denominada alvorada.’ E de que se trata esta alvorada? Dela fazem parte
diferentes acontecimentos, hoje, uns, porventura integrados na Alvorada,
outros, entretanto, desaparecidos. Tendo em mente o que hoje se vê, atente-
se nas semelhanças e diferenças. ‘Apresentam-se máscaras esquisitas em
toda a extensão desta palavra exprimindo disformidade. Aqui aparece um
máscara vestido com um saco de folha de maçaroca, representando um
monstro, ali outro envergando o mais esfarrapado fato e tendo por
capacete uma carapuça de vimes. Número infinito de meninas machas com
os seus alvos vestidos assentadas sobre enfermos burricos ou tangendo a
sua viola ou pulando sem elegância diante do marmanjo, que lhe serve de
companheiro, e muitas vezes embasbacando os iludidos, quando ao
aproximarem-se lhes descobrem uma grossa barba preta sobre rugosa e
requeimada epiderme. Por toda a parte nos cercam mascaradões,
mascarados e mascaradinhos vestidos multiformemente. É uma verdadeira
inferneira. Além destas incómodas criaturas há ainda os repugnantes
condutores de burras inúteis, que as conduzem em ranchos aqui e acolá
mugindo-as e oferecendo o peitoral líquido aos circunstantes, e bem assim
os lavradores com parelhas dos mesmos animais lavrando pelas ruas,
levando atrás o competente espalhador de linhaça, que a reparte pela cara
de quem pretende observar a sua admirável invenção. Algumas carroças
ainda repletas de mascarados de todas as espécies aumentam o número
desta diabólica barafunda.’ Isso, de todo, não sobreviveu. Voltando-se
para (o que considera ser) ‘a parte séria, mas não menos ridícula, é a que
constitui a cavalhada denominada – Imperadores do Espírito Santo.’
Atentem no que vê e nos descreve em 1867 que confirma a Estrela
Oriental de 1856: ‘Compõe-se dos vários depositários da coroa para o
futuro ano, e em consequência disto levavam, em todos os anos pretéritos,
a cavalo e empunhada a bandeira do Espírito Santo com notória
irreverência.’ Por isso, ‘este ano (1867) foi-lhes proibido conduzirem
bandeiras do Espírito Santo.’ Como passaram a ser as bandeiras? ‘e em seu
lugar levaram algumas de várias cores.’ Hoje, é a vermelha com SP. A
elite iluminada, que abominava aquela falta de civilidade, começa a
civilizar a festa (no seu entender) bárbara: ‘Deve-se a cessação desta abuso
ao Sr. administrador do concelho, que vai desarreigando do povo alguns
costumes, que são reprovados pela sã moral.’ O autor da crónica não
resiste: ‘Louvores.’
Continue-se a comparar com hoje. Vejam a indumentária de então: ‘Esses
cavaleiros vão ornados de muitas fitas de todas as cores e não poucos com
xailes amarelos ou vermelhos pelas costas e vestidos todos de branco. Na
cabeça levam um chapéu de pelo alto todo coberto de cordões e obras de
ouro, que pedem emprestados de ano para ano.’ Organização do evento:
‘Reúnem-se num ponto ajustado e às 11 horas desfilam todos para a igreja
de São Pedro, e aí dão três voltas uns atrás dos outros ao redor do
templo.’ Em 1867, continuam a ir além da área da Ribeira Seca/Santa
Bárbara: ‘Desfilam ali e em frente de todas as outras igrejas, ermidas, e
lugares públicos executam a mesma cerimónia, acabando este improbo
trabalho das três para as quatro horas da tarde, hora em que se recolhem
para descansarem.’ Mas deixam de poder usar as bandeiras do Espírito
Santo: ‘Este ano foi-lhes proibido conduzirem bandeiras do Espírito Santo,
e em seu lugar levaram algumas de várias cores.’ Porquê? ‘Deve-se a
cessação desta abuso ao Sr. administrador do concelho, que vai
desarreigando do povo alguns costumes, que são reprovados pela sã
moral.’
Mas, atente-se sempre, o desfile dos mordomos do Espírito Santo, ou seja
‘dos vários depositários da coroa para o futuro ano,’ é seguido por
outros acontecimentos (Comédias de São Pedro): ‘Além destes cavaleiros
há outros denodos (sic) recitadores, que pronunciam certas composições
em verso, em que se fazem elogios a São Pedro e a muitos santos, e alusões
gerais mais ou menos picantes; mas que poucos percebem por lhes
dificultar a máscara algum tanto a pronunciação.’ Não terá essa parte sido
mais tarde incorporada na Alvorada? E mais um acontecimento: ‘Houve
ainda uma outra cavalhada de mouros e mouras, cristãos e cristãs, e em
que haviam fingidas lutas e casamentos dificultados pela diferença de
religião, mas por fim têm sempre o desejado desenlace pelo baptismo do
herege.’ Há quem hoje misture essa Cavalhada com a outra. Mesmo entre
investigadores. ‘Eis aqui como o povo desta vila festeja o dia de S. Pedro.’
Não se ficava por ali. Não eram apenas os mordomos e os demais atrás
referidos que faziam a festa, havia outras mais. ‘Ainda na tarde desse dia
(29), muitas pessoas se mascararam, aparecendo contudo um par de
jovens jarretas, que chamava a atenção de todos. O consorte trajava
chapéu de Braga alto e grosseiro, casaca de pano azul com botões
amarelos e calça branca mui esternida e bengala na mão. A esposa vestia
saia de lã cor de café fitas azuis no chapéu abeiro com farto véu largado e
mantilete de seda, só olhando-lhe para ela fazia rir. Mas o que mais
excitava à gargalhada era a tranquilidade com que essas duas almas iam
palmilhando o caminho, justamente em oposição com os outros máscaras,
que se distinguem por saltos e bulha incómoda. Assim acabou este dia de
cansaço e folga para os, para os que se divertem e para os que vêm
assistir.’ 4
Tal como hoje, a festa a São Pedro começava na véspera: ‘Este ano ardeu
na véspera um lindo fogo artificial, que foi gozado por inúmera
4 Fórum, Ribeira Grande, n.º 15, 6 de Julho de 1867, fl. [2?]
concorrência de povo, e tocando por esta ocasião, a Filarmónica desta
Vila várias peças de música. E, ainda tal como hoje, ‘no dia próprio fez-se
a função de igreja a instrumental pela Filarmónica e em que missou o
Reverendo Mariano José Ferreira, orando o reverendo Manuel César de
Oliveira.’ E finalmente tal como ainda hoje: ‘Foram reeleitos os mesmos
festeiros, e, por conseguinte, para o ano temos outra vez boa função.’ 5
Notável e lapidar esta descrição? Fico a aguardar novas provas. A História
é assim. Entretanto, por aqui já se vê o que persiste e o que mudou. Mudou:
trajes, bandeiras, comédias, cavalhadas mouriscas, carnaval. Mantém-se:
ligação ao Espírito Santo.
Ainda na segunda década do século XX, as Cavalhadas resultariam
‘(…) de promessas religiosas feitas durante o ano e nelas tomam parte os
penitentes e ainda os que têm a 1.ª dominga do Espírito Santo, gente da
freguesia e arredores.’ Todavia, já não seriam só os festeiros da Ribeira
Seca que tomariam parte no cortejo. Trata-se da memória vertida em artigo
de jornal de um cultíssimo membro da elite local, de nome Dr. José de
Medeiros Tavares. Daí o termo Cavalhada e não Alvorada. (Dr. José de
Medeiros Tavares, As Cavalhadas da sua infância, cf. Correio dos Açores, 29 de Junho
de 1966, transcrito Estrela Oriental, Julho de 2001, p. 1).
Com o rodar dos anos, graças em parte à metamorfose sofrida pela
Alvorada, primeiro festa dos Impérios, depois festa do Concelho e à
protecção oficial que veio a gozar a partir de então (alguma compensação aos
participantes: dinheiro, prémios ou fama), os penitentes foram ultrapassando em
número os mordomos.
Já neste ano de 2007, com a Alvorada desligada da festa da igreja e
sem comédias a segui-la como dantes, só assim conhecida na linguagem
5 Fórum, Ribeira Grande, n.º 15, 6 de Julho de 1867, fl. [2?]
falada do dia-a-dia, sem nada a ver com o festeiro da primeira dominga do
Império de São Pedro, do qual apenas existe uma memória difusa,
Fernando Maré, o responsável no terreno há mais de 47 anos, em entrevista
a um jornal local, dizia: ‘(…) Os mordomos do Espírito Santo, ainda hoje
(2007), preparam um cavaleiro para participar nas Cavalhadas./ Regra
geral, quem vai ao lado do rei, são os cavaleiros mais bem enfeitados. Se
algum deles é do mordomo exige ir ao lado, mesmo que não esteja muito
bem enfeitado.’ (Carmen Costa, A Romaria é uma penitência e as cavalhadas uma
festa, Correio do Norte, 1.ª quinzena de Junho de 2007, pp. 6-7)
Se tal ainda não bastasse para nos convencer a dar algum crédito a
esta hipótese, atente-se no relato de graças e de castigos por cumprir ou não
a ida na Alvorada, que acompanha a entrevista. É característico da cultura
do Império ao Divino Espírito Santo. As fitas das bandeiras que enfeitavam
a bandeira dos cavaleiros eram as das bandeiras dos Impérios. As sete
voltas à igreja do Apóstolo ou as três à volta da do Espírito Santo. Tudo
isso vem contado na referida entrevista. Já o disse em artigo de 2002: as
bandeiras actuais, ainda vermelhas, são uma espécie de arremedo das,
entretanto, proibidas do Espírito Santo.
Neste tipo de trabalho, é bom repeti-lo, é sempre útil recorrer à boa
memória das pessoas mais antigas da terra. Assim o fiz. A caminho de
completar 87 anos de idade, João Barbosa Silvestre, numa conversa corrida
a recordar as Alvoradas dos tempos em que era ainda menino e moço ou já
rapazote ou rapaz casadoiro. Logo ao romper do dia, o dia prometia, eu e
ele sentados à mesa de um café do chamado Canto da Fonte, perto de casa
dele, bem disposto, disse-nos que ‘(…) os despenseiros do Espírito Santo
da freguesia iam na Alvorada levando os canecos enfeitados com ouro.’ 6
6 João Barbosa Silvestre, nascido em 1920 na rua do Balcão e morador na rua Eng. Arantes e Oliveira, n.º 28.
Entrevista feita no dia 9 de Julho de 2007.
Hermano Lima Bravo, outro nado e criado naquela terra, de idade que disse
ser de 83 anos, com quem conversei à cancela da sua casa umas centenas
de metros acima do Canto da Fonte, confirmou-o: ‘Quem fazia a despensa
na freguesia ia na Alvorada. Iam ao todo uns 10, 15, às vezes nem tanto.’ 7
E, como toque final, junto dois registos apenas: o gesto dos
mordomos a abençoar com a coroa do Espírito Santo a visita da Alvorada.
Gesto antigo. Algo que observei e registei em 2005 (Santa Bárbara) e de
novo neste ano de 2007 (Ribeira Seca); e a bandeira do Senhor Espírito
Santo arvorada (reparem no termo e tirem as suas conclusões: arvorada de
São Pedro? Bandeira arvorada?) no cimo da armação de uma casa da rua da
Saudade (dia 9 deste mês, na antiga canada do Feitor).
4. De que Império de São Pedro se trataria?
Bandeira arvorada na cobertura
Provando-se a existência de um império a São Pedro no largo de São
Pedro e sabendo-se ao certo quando se fundou a festa do Império de São
Pedro (1671) e se construiu o Teatro do Império de São Pedro (1685), só
por si não prova que esta Alvorada (Cavalhadas para os letrados) tenha
7 Hermano de Lima Bravo, 83 anos, morador ao Tornino de Cima, n.º 166: entrevista no dia 9 de Julho de 2007.
começado por aquela altura. Pode muito bem ter surgido antes daquelas
datas. Ou até depois. Pode ter-se, por qualquer motivo desconhecido,
entretanto, interrompido. Ou ter-se, por outras razões, modificado ao ponto
de não ter nada a ver com uma putativa Alvorada primordial.
Seja como for, o facto de conhecermos a data da fundação da festa
do Império em 1671 e da construção do seu Teatro em 1685, garante-nos
pistas possíveis. Poderá dizer-se com alguma solidez que a Alvorada a São
Pedro terá começado em data desconhecida, mas nunca antes da fundação
do Império de São Pedro? É possível. Antes de 1671, a ter existido, seria
uma alvorada a outra coisa? É também possível.
Segundo vem dito em João de Sousa Freire (Notas para o Tombo da
Ribeira Seca: referido em Norberto da Cunha Pacheco, Ribeira Seca: terra das
cavalhadas de São Pedro e da Madre Teresa da Anunciada, 2006, p. 45), o Império a
São Pedro foi fundado no ano de 1671. Segundo o próprio João de Sousa
Freire, à altura pároco daquela comunidade, Freire teria sido não só
testemunha do facto como um dos seus cabouqueiros. Freire deixa-nos esta
entrada no Tombo (cópia do original) da Ribeira Seca, quinze anos depois
da fundação de que fala.
Foi fruto da iniciativa de um Padre franciscano, natural da Vila, de
nome Frei Egídio da Vitória, que ao tempo assistia em casa de uma irmã
casada na freguesia. Este frade conseguira entusiasmar algumas pessoas da
terra, entre as quais um tal João Brandão. Este João Brandão, acompanhado
de outros mais, teria vindo tomar conselho a João de Sousa Freire. Por
assim dizer, Freire, devoto do Império, como se prova pela leitura das suas
entradas no Tombo, não só bate palmas como entra na festa.
Freire assina um bom naco de prosa em forma de crónica, texto
inédito que bem merecia ser publicado sem mais tardar, dedicado ao elogio
da festa do Império do Espírito Santo. Por esta mesma altura, um
franciscano de nome Frei Agostinho de Monte Alverne, filho da Vila, havia
já ou haveria em breve de dedicar um capítulo das suas Crónicas ao
Espírito Santo, na Ilha de Santa Maria. Comparando-o porém a Sousa
Freire, lendo atentamente um e outro, não me cheira que Monte Alverne
tenha sido um entusiasta da festa do Império. Com a mesma ideia fico
depois de ler Gaspar Frutuoso. Humanista, ortodoxo, imbuído dos
ensinamentos de Trento? A partir de então a festa entra por uns tempos em
desgraça. Chegou a ser proibida no tempo dos Filipes. Em meados do
século XVIII (1753), haveria o Padre Alberto Pereira Rei de dar à estampa
na capital do Reino uma obra de índole laudatória da festa do Império ao
Divino Espírito Santo.
Estando já o Império de São Pedro instituído em 1671, em 1685
construiu-se o Teatro do Espirito Santo. Segundo o próprio Sousa Freire,
tal facto ter-se-ia ficado a dever ao próprio cronista (seria Provedor da Santa
Casa da Misericórdia da Ribeira Grande, fez Passo, terá sido o autor do cadeiral da
Matriz e da capela de São Vicente Ferrer, visitador do eclesiástico, se não mesmo
Ouvidor do Eclesiástico. Foi contemporâneo de Monte Alverne e parece ter sido uma
pessoa influente no seu tempo) e de um devoto que dava pelo nome de André
de Fontes.
Este Teatro construído em pedra encontrava-se (não sei quando foi
removido, o da Santa Casa da Misericórdia fora demolido para dar
amplitude à praça em data próxima de 1769) no lado norte do adro da
igreja do Apóstolo São Pedro.
5. Até uma próxima oportunidade
Como terá surgido a ideia de fazer Alvorada a cavalo? Suponho que
alguém, talvez um dos Imperadores do Império a São Pedro, ter-se-á
lembrado, ou porque vira em outro lugar ou porque ouvira alguém dizer
que se fazia assim, ou simplesmente terá inventado sem mais, entre a sua
fundação e 1856, de convidar imperadores (mordomos ou despenseiros ou
outra designação da altura) de outros impérios da freguesia a correr as
casas uns dos outros no dia em que São Pedro fecha com as suas chaves a
festa do Espírito Santo. Visitavam-se, davam-se a conhecer ao povo e
bebiam uns valentes copos em honra do Senhor Espírito Santo. A ideia, por
qualquer razão, terá caído no agrado do povo e ter-se-á repetido a ponto de
se transformar num acto do próprio Império. Tal como o saltar à fogueira o
é para o Império de São João? Provavelmente.
A Alvorada de São Pedro (Cavalhadas) encerrava não só o Império
de São Pedro mas todo o ciclo festivo anual em louvor do Divino Espírito
Santo. Nada de espantar, pois, que o mesmo continue a suceder na
freguesia vizinha de Rabo de Peixe, no Império de São Pedro, na Cova de
São Pedro (descrita por Hermano Teodoro em Estrela Oriental de Agosto de 2001 e
por mim em 2005 e 2007) ou no de São Pedro na freguesia dos Fenais da Ajuda
(por nós estudada em 2005). Não importa discutir se estes últimos apareceram
depois, o primeiro por influência directa do de São Pedro da Ribeira
Grande, o segundo, não sei, importa somente reter que em áreas culturais
próximas é natural fazerem-se alvoradas a São Pedro. Para não falar em
áreas culturais mais longe, como será o caso brasileiro.
A terminar, importa dizer-se que já no século XX, o epicentro da
Alvorada passara do largo de São Pedro para o Solar da Mafoma, o Império
da rua do Biscoito deixou de ter a ver com a Alvorada/Cavalhada, existindo
uma mordomia própria encarregada de pôr de pé a festa de São Pedro.
Além do mais, as comédias, que hoje se realizam de quando em vez (estes
dois últimos anos não houve nada), nada têm a ver com a Alvorada -
Cavalhadas.
Mesmo a terminar: ainda que provável, o que acabo agora de pôr um
ponto final, ou de suspensão, não pretende ser mais do que uma tese com
pernas para andar. E um contributo para o estudo deste ícone de identidade
da minha terra natal.
Mário Moura/
2.02.2008 [e 2023/24]
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