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O Arcano da Ribeira Grande: criadora e criatura

A criadora

Apresentamos sumariamente a criadora. Referiremos tão-só alguns traços da sua personalidade e vida.
Falar de alguém é não esquecer que se tem de falar de uma vida desde a infância até à morte, de uma relação com o meio familiar, social e pessoal. Além disso, é ter em conta o crescimento psíquico e somático da pessoa ao longo da vida. E da coerência do ser humano, coerência feita de aparentes ou reais incoerências, de mudanças de opinião, de persistências, de dois pesos e de duas medidas, de razões da razão e do coração, de ódio e de amor, etc.
Nela parece existir bem visível um fio condutor ao longo de toda a sua vida adulta conhecida. A imagem que nos chega e a que parece ter igualmente chegado aos contemporâneos, apesar dos sintomas de senilidade dos últimos anos de vida, é o de serenidade, de respeito, de poder, de firmeza, de persistência metódica. De uma pessoa racional.
Margarida surge-nos nos documentos que compulsámos, como o 7.º filho de José Francisco Pacheco Moniz e de D. Ignes Eufrázia Botelho de Sampaio Arruda. Nasceu, aos 23 de Fevereiro de 1779, na freguesia de Nossa Senhora da Conceição da então vila da Ribeira Grande [...], provavelmente na rua de São Francisco. Viria a falecer na freguesia Matriz da mesma vila, aos seis de Maio de 1858, na rua de João d’Horta. Em inícios de 1800 tomou, mais a irmã Ana, o véu preto de freira clarissa no Mosteiro do Santo Nome de Jesus da mesma vila, onde permaneceria até à sua extinção em 1832 pelo decreto de 17 de Maio daquele ano. Sairia mais as suas colegas pouco depois, presumivelmente em Junho.

A criatura
[c.1835-1858]

É uma obra claramente dentro do espírito católico apostólico romano tridentino, seja pela ênfase dada aos sacramentos da confissão, matrimónio, ordem, entre outros, seja ao modo pomposo como retrata as celebrações, o clero, Deus, Cristo, os Santos, as hierarquias. A sociedade hierárquica do Antigo Regime encontra-se espelhada nesta obra.
A lógica do Arcano Místico não é cartesiana, mas simbólica, o tempo não é só e necessariamente o histórico, mas o cíclico e o não-tempo.
A ideia da Salvação do crente pelas suas Obras e pela Paixão de Cristo, é bem manifesta, daí, por um lado, a ênfase dada aos sacramentos da confissão e da penitência, à predestinação, e por outro, o culto dos Santos Intercessores, caracteristicamente católico.
Ideologicamente será mais o reflexo das orientações da hierarquia da Igreja católica apostólica romana tridentina do que dos usos e costumes da religiosidade popular. Mesmo os temas populares que encontramos no Arcano Místico parecem ter sido transmitidos por via erudita estando já integrados ou em vias de ser integrados pela hierarquia. Por exemplo, ‘A Imaculada Conceição de Maria.’
Parece igualmente seguir, além da sua imaginação e observação do meio ambiente que a circundava, modelos iconográficos veiculados por Bíblias estrangeiras e outros livros sagrados, pela azulejaria, pela pintura ou até pelos quadros vivos montados nas celebrações religiosas ao ar livre ou no interior dos templos. A sua formação artística ter-se-á iniciado, plausivelmente, ainda fora do convento e continuada, quiçá aperfeiçoada, já no convento. Formação empírica.
Desconhece-se a razão da escolha do nome da obra. Ainda na década de quarenta, a própria autora confessa não saber qual o melhor nome a atribuir-lhe. Os cicerones de Raimundo Bulhão Pato, em 1868, não souberam responder-lhe: ‘seria pelo Mysterio com que foi feita, ou pelo segredo com que manipulou a massa para moldar as figuras, ou pela profundez [sic] das scenas que representa?’ Interrogava-se Bulhão Pato. A autora, segundo o ‘Tributo de Gratidão’ vindo a lume no jornal ‘A União’, de Dezembro de 1858, pretendia com ele entreter-se, louvar a Deus e ensinar.
De acordo com a mesma fonte, teria começado o ‘projecto’ em 1835, aos cinquenta e seis anos de idade, após o falecimento do irmão Teodoro José Botelho de Sampaio. Dever-se-á talvez entender ‘projecto’, não de um modo rígido mas flexível, ou seja, ir-se-ia estruturando à medida que a obra avançava. Insistimos, ainda em 1848 não sabia que nome havia de atribuir à obra’.
[Mário Moura, in Cultus, O Mistério e o Maravilhoso nos Artefactos Portugueses, Ministério do Trabalho e da Solidariedade, Instituto do Emprego e Formação Profissional, 2001].

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