DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
CENTRO DE ESTUDOS ETNOLÓGICOS
PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO COMO TESOURO REGIONAL
DO ARCANO MÍSTICO
DE MADRE MARGARIDA ISABEL DO APOCALIPSE,
EXISTENTE NA IGREJA MATRIZ DA CIDADE DA RIBEIRA GRANDE,
ILHA DE SÃO MIGUEL, AÇORES
PARECER
Rui de Sousa Martins
PONTA DELGADA
26 DE DEZEMBRO DE 2006
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
CENTRO DE ESTUDOS ETNOLÓGICOS
PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO COMO TESOURO REGIONAL
DO ARCANO MÍSTICO
DE MADRE MARGARIDA ISABEL DO APOCALIPSE,
EXISTENTE NA IGREJA MATRIZ DA CIDADE DA RIBEIRA GRANDE,
ILHA DE SÃO MIGUEL, AÇORES
PARECER
Rui de Sousa Martins
PONTA DELGADA
26 DE DEZEMBRO DE 2006
ÍNDICE
1. A clausura das mulheres e a riqueza dos conventos................................................. 3
2. Artes conventuais femininas, consumo ostentatório e prestígio social ....................... 4
2.1. Distinção alimentar, festividades e ritualidade................................................... 4
2.2. Artes decorativas conventuais......................................................................... 5
2.3. Uma identidade artística feminina..................................................................... 6
3. A extinção dos conventos e a criação do Arcano Místico ..................................... 7
3.1. As dádivas da mudança política....................................................................... 7
3.2. O Arcano Místico e outras artes...................................................................... 8
3.3. A exposição do Arcano Místico e a consagração da mulher escultora.............. 9
4. O processo de patrimonialização do Arcano Místico................................................ 10
5. A proposta de classificação do Arcano Místico como Tesouro Regional................... 12
5.1. Valor, multidimensionalidade e justificação....................................................... 12
1. A CLAUSURA DAS MULHERES E A RIQUEZA DOS CONVENTOS.
De 1533 a 1832, as famílias principais das ilhas de São Miguel, Terceira, Faial e São Jorge procuraram evitar a dispersão do património familiar, afastando do casamento filhas donzelas e destinando-as à vida religiosa, ao celibato definitivo e à clausura perpétua em conventos femininos que gozavam de grande prestígio social.
A entrada em religião de uma donzela era acompanhada da estipulação de um dote, prestação económica em dinheiro, trigo, terras ou rendimentos que os pais eram obrigados a entregar anualmente ao convento, assumindo este, por sua vez, determinadas obrigações para com a recolhida e garantindo a sua autonomia no seio da comunidade. Desta forma se foram instaurando e alimentando vínculos de aliança e redes duráveis de relações sociais entre os conventos receptores e as famílias doadoras de donzelas e de dotes.
Nestas redes relacionais, e de acordo com as normas estabelecidas, circulavam pessoas, mercadorias, alimentos, objectos de arte, bens imateriais, serviços e mensagens, no quadro de processos longos de construção, reforço, interligação, competição e reprodução de poderes ligados à família, à economia, à política e à religião, instância que assegurava a regeneração da vida, da sociedade e a salvação das almas.
Até às reformas religiosas pombalinas de 1754 e 1763, os conventos femininos dos Açores foram acumulando poder económico, espiritual e social que se manifestava na especificidade e na qualidade arquitectónica da casa monástica, com destaque para a respectiva igreja, espaço de sociabilidade religiosa enriquecido pelas artes, afirmando-se também no brilho das cerimonias rituais, das festividades e das procissões, nas práticas de solidariedade social, na instrução e nas actividades artísticas das suas religiosas.
2. ARTES CONVENTUAIS FEMININAS, CONSUMO OSTENTATÓRIO E PRESTÍGIO SOCIAL.
As comunidades monásticas, organizadas para cultivar a devoção e a religiosidade, asseguravam também a sobrevivência, a manutenção e o percurso religioso dos seus membros, estabelecendo formas de relacionamento com o mundo exterior e funcionando globalmente como unidades de produção, consumo e reprodução socioeconómica.
As diferentes actividades conventuais eram distribuídas pela hierarquia das religiosas. Logo, articulavam-se com espaços distintos e verticalizados e encadeavam-se de acordo com um rigoroso ritmo diurno: oração recitada e mental, Ofício Divino, refeições, trabalhos manuais, tarefas de “cozinha, enfermaria e roupeiro”, serviços de comunicação com o exterior (roda, portaria, locutório), lazer e descanso.
Para além das tarefas relacionadas com a satisfação quotidiana das necessidades básicas, as religiosas produziam refeições e bens alimentares de prestígio, assim como objectos de arte decorativa para consumo próprio ou exterior, em contextos quer religiosos quer seculares.
2.1. Distinção alimentar, festividades e ritualidade.
As refeições opulentas e dispendiosas assim como os doces requintados faziam parte das festividades religiosas conventuais. Este consumo ostentatório de alimentos quebrava as rotinas e as preocupações do dia-a-dia, libertando tensões internas acumuladas e prestigiando o convento aos olhos da sociedade.
As refeições de prestígio também serviam estratégias internas de poder, ao serem proporcionadas por uma nova candidata ao cargo de abadessa, ou pela abadessa eleita. Os clérigos que rezavam missa para a comunidade eram também distinguidos com refeições requintadas.
Na ilha do Faial, a circulação de abundantes dádivas e contradádivas de alimentos ostentatórios entre o império conventual feminino (mordomas e imperatrizes) e o império dos seculares (mordomos e imperadores) da Vila da Horta, ritualizava por um lado afirmações de riqueza e de distinção enquanto promovia e reforçava, por outro, as relações sociais entre os membros das elites religiosas do Culto do Divino.
A doçaria era a mais celebrada manifestação da arte culinária das religiosas, de tal forma que os doces, feitos sobretudo por ocasião das festividades, emblematizava as diferenças entre os conventos.
Os colaboradores do exterior, eclesiásticos (confessores, pregadores, clérigos) ou leigos, os familiares, amigos e viajantes estrangeiros, quando recebidos no locutório, eram presenteados cerimonialmente com doçaria requintada. A dádiva de doces, que implicava despesas elevadas, desempenhava um importante papel mediador nas relações de comunicação do mosteiro com a sociedade, marcando e ultrapassando ritualmente a distinção dos espaços interior/exterior.
Finalmente, o prestígio da culinária conventual justificava encomendas de “manjares e iguarias” por parte dos seculares.
2.2. Artes decorativas conventuais.
Os conventos femininos cultivavam igualmente a música coral e instrumental e as artes decorativas, distinguindo-se nos bordados, nos trabalhos em papel recortado e, sobretudo, na elaboração de flores artificiais.
Os objectos artísticos eram produzidos no quadro das actividades quotidianas do convento, numa sala especializada, designada “casa de trabalho”, onde todas as freiras deviam estar, nas horas determinadas pela abadessa, desenvolvendo cada uma a sua actividade, enquanto uma delas lia em voz alta um livro espiritual que suscitasse a devoção. O modo de produção conventual articulava no processo de trabalho valores estéticos e religiosos. Muito embora este espaço fosse colectivo, a organização comunitária garantia a identidade individual dos seus membros e possibilitava a aprendizagem, o aperfeiçoamento e a actividade de mulheres artistas, institucionalmente legitimadas pela educação recebida, socialmente reconhecidas pelo seu talento e cujas obras eram valorizadas ao mais alto nível das elites insulares e nacionais.
As conhecidas obras em papel tesourado (guardanapos, toalhas…) estavam relacionadas com a apresentação estética dos doces, por ocasião das dádivas e das práticas de consumo cerimonial.
Os ramos de flores artificiais, feitas de papel, tecido, miolo de figueira ou de penas, desempenhavam um papel relevante na decoração dos espaços litúrgicos (altares, tribunas, retábulo) por ocasião das cerimónias do culto e na ornamentação dos andores que passavam nas procissões.
As flores artificiais eram representações estéticas duráveis, transfigurações simbólicas e decorativas das efémeras flores naturais, criando e reforçando relações estéticas, emotivas e contemplativas de comunhão e de comunicação com a imagem sagrada e o sobrenatural.
Desta forma, se justificava o dispendioso investimento em flores artísticas para decoração litúrgica, por parte das instituições religiosas (igrejas e misericórdias), que as encomendavam aos conventos, pagando-as em dinheiro.
Na ilha do Faial, os ramos de flores artificiais faziam parte das dádivas que estreitavam relações de poder no interior do convento da Glória.
Por ocasião das celebrações do Domingo de Ramos, os ministros do altar eram também presenteados com ramos artísticos particularmente dispendiosos. Os palmitos faziam parte das dádivas rituais para o exterior do convento.
Duas canas de flores artificiais, criadas pela celebrada artista Madre Jerónima do Sacramento, do convento de Santo André de Ponta Delgada, foram oferecidas pelo Convento da Esperança à rainha Dona Maria Sofia e ao rei Dom Pedro II e ramos encomendados aos conventos da cidade foram igualmente oferecidos às Infantas da corte de Dom João VI, na expectativa de favores régios.
Em suma, no século XVII, XVIII e princípios do século XIX, a produção conventual de flores artificiais era uma arte elitista, cultivada por religiosas provenientes das grandes famílias da aristocracia e da burguesia insular. Os ramos artísticos circulavam como dádivas e mercadorias, a nível das instituições religiosas e das casas importantes, tendo sido aceites pela Família Real e reconhecidos pela sociedade culta que frequentava a corte.
2.3. Uma identidade artística feminina.
A identidade específica das artes femininas de produção conventual (culinária de prestigio, objectos decorativos) assentava num modelo social que atribuía à mulher das culturas rurais a exclusiva responsabilidade e execução das actividades domésticas (alimentação, produção e manutenção de vestuário) e da organização estética constitutiva do interior da casa. Nas comunidades conventuais, estas competências técnicas femininas foram reorganizadas de acordo com um modo de produção distinto, desenvolvidas criativamente e reproduzidas, em conexão com as crenças e as práticas religiosas de tal forma que bens alimentares e peças decorativas foram ganhando qualidade e prestígio.
As artes conventuais femininas, por sua vez, desempenharam um papel significativo na renovação e no reforço das relações de interdependência das comunidades religiosas com a sociedade exterior, ao mais elevado nível, até à instauração do Liberalismo (1832) que, suprimindo os conventos, obrigou as artes femininas a novos percursos.
3. A EXTINÇÃO DOS CONVENTOS E A CRIAÇÃO DO ARCANO MÍSTICO.
3.1. As dádivas da mudança política.
Em Fevereiro de 1832, chegou aos Açores a expedição de Sua Majestade Imperial, Dom Pedro, Duque de Bragança, que vinha assumir o governo e a Regência do Reino, em nome de sua filha, Rainha Dona Maria II. Durante a estadia no arquipélago, que se prolongou até 23 de Julho, Dom Pedro empenhou-se na organização do exército libertador, participou em sumptuosas festas com lautos banquetes e em bailes de cerimónia, assistiu a solenes Te Deum e cumpriu a obrigação social de visitar os conventos de freiras de quem recebeu algum apoio.
Para testemunhar a extrema adesão à causa da Senhora Dona Maria II, e da Liberdade da Pátria, a abadessa do Mosteiro de Santo André de Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, ofereceu a Dom Pedro vinte moios de trigo, destinados à tropa expedicionária. Na ilha do Faial, o Regente recebeu das freiras do Mosteiro da Glória um …avultado presente de doces para a viagem, incluindo no mesmo outros tantos corações de alfenim, como o número de religiosas, de tamanho natural e tendo cada um em letras doiradas as iniciais do nome da Offerente.
Porém, a mais notável dádiva conventual açoriana foi feita e enviada a Sua Majestade por Madre Margarida Isabel do Apocalipse, freira clarissa no Mosteiro de Jesus, da então vila da Ribeira Grande. A oferta destinava-se à Senhora Dona Maria II e consistia num …ramalhete de flores artificiais obra toda de sua mão, que além da variedade e belleza das mesmas flores, e do cheiro proprio das naturaes com que insufflou era um emblema, que por flores e grupos d’estas representava a mesma Senhora sustentada por seu Augusto Pai, e cercada pelos emigrados, e mais guerreiros, que a deffendiam.
Estas dádivas em bens alimentares e artísticos, feitas ao detentor do poder imperial, tinham uma finalidade política e social: exprimir simbolicamente a adesão e a fidelidade de determinadas religiosas à Rainha e ao Liberalismo, num processo relacional ao mais alto nível. A aceitação e o agradecimento por parte de Sua Majestade eram fonte de grande prestígio social para as doadoras.
As consequências do triunfo liberal não se fizeram esperar e o primeiro governo de Dom Pedro estabelecido no arquipélago decretou a extinção dos conventos por Decreto de 17 de Maio de 1832.
3.2. O Arcano Místico e outras artes.
Extinto o Convento de Jesus da Ribeira Grande, a consagrada freira artista Madre Margarida Isabel do Apocalipse (1779-1858), filha de uma família abastada da governança da terra, optou por ficar na vila natal, morando na companhia de duas criadas, em três casas contíguas que compraria em 1837. Na situação de religiosa egressa, traçou um projecto de vida que reproduzia, em contexto doméstico, o essencial das suas actividades conventuais: promover o culto de São João Evangelista, pelo qual tinha sido responsável no convento, e desenvolver as artes decorativas nas quais já se tinha notabilizado.
Num compartimento da sua casa, instalou um altar dedicado ao seu Padrinho e intercessor e, de 1854 a 1856, empenhou-se na construção de outro altar na Igreja Matriz para colocar a Santa e Milagrosa Imagem que trouxera do mosteiro, tudo fazendo para instituir e perpetuar uma festividade anual em honra do filho adoptivo de Maria. Transformou a sua residência num espaço de produção artística de reputadas flores artificiais e de bordados, ocupações suplantadas, a partir de 1835, pelo processo de criação e exposição do Arcano Místico, obra que a notabilizou na sociedade micaelense.
O Arcano Místico é um conjunto escultórico religioso, de tradição conventual, organizado em três divisões verticais de um grande móvel-expositor (200x200x200 cm), constituído por cerca de noventa grupos agregados de pequenas figuras policromas (1 a 20 cm) e outros elementos, todos identificados por legendas, representando cenograficamente os Mistérios mais importantes do Antigo e do Novo Testamento.
As pequenas esculturas foram na quase totalidade moldadas numa massa à base de farinha de arroz, farinha de trigo (?), goma-arábica, gelatina animal e vidro moído, cuja composição teria inventado e mantido em segredo. Para além da invenção de uma pasta e e do aperfeiçoamento da técnica de a modelar, a artista criou um estilo próprio, caracterizado pela individualização identitária das figuras minuciosas, pela representação miniatural do vestuário e de outros elementos caracterizadores. As figurinhas, animadas por posturas e gestos, são impressivas no cromatismo quente que contrasta com a alvura do corpo visível (aparência de biscuit). As figuras interagem em cenas de grande vivacidade e eficácia narrativa e performativa, onde a intensidade simbólica se alia à profundidade catequética. O tratamento dos elementos anatómicos é condicionado pela natureza da pasta em que foram modelados, o que os aproxima dos trabalhos em cera.
A massa à base de farinha(s) associa a escultura de Margarida Isabel do Apocalipse à arte culinária conventual, onde a farinha e o açúcar eram ingredientes fundamentais. Consequentemente, a natureza feminina desta escultura enraizar-se-á na conexão técnica primordial da mulher com o pão (massas de farinha), alimento do corpo e do espírito, nas culturas agrárias do Ocidente.
3.3. A exposição do Arcano Místico e a consagração de uma escultora.
De 1835 a 1858, o Arcano Místico foi sendo construído e exibido num dos melhores quartos da moradia. Com a finalidade de promover a religiosa edificação dos visitantes, a autora franqueava a sua casa ao público e o Arcano em construção era visitado por uma grande afluência de pessoas desejosas de o ver. Na exposição do Arcano, a arte é indissociável da religião e a artista exercia uma dupla função de mediadora cultual. Por um lado, representava as narrativas bíblicas nas cenas do Arcano e, por outro, descodificava as respectivas mensagens aos visitantes que as associavam ao prazer visual da obra. A produção e exposição doméstica permanente do Arcano, num espaço especializado da casa da autora, identificava, consagrava e exibia, perante a comunidade e os visitantes, o seu estatuto de artista independente, criadora de uma obra única. Em 1848, a imprensa de Ponta Delgada reconhecia Margarida Isabel do Apocalipse como Religiosa Escultora da Ribeira Grande.
Apesar de afectada pela doença, esta artista teve a inteligência e a capacidade de garantir o futuro das suas obras, ao recorrer à prática social da dádiva, cujo interesse foi claramente de natureza religiosa. Para o efeito, legou em testamento (1857) o Arcano e as casas em que morava, como bens vendáveis, à Confraria do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz da Ribeira Grande, ficando esta obrigada a promover anualmente a festa de São João Evangelista. Em 1858, morre a freira escultora e o Arcano Místico manteve-se exposto no espaço original, mas com entradas pagas. Em 1870, foi transferido para o coro alto da Igreja Matriz, lugar considerado mais adequado para um monumento d’aquella ordem.
Em suma, a trajectória social do Arcano Místico é indissociável da instauração do culto de São João Evangelista, produzindo-se num sistema de relações sociais centradas na Igreja e a natureza religiosa da obra escultórica acabou por condicionar decisivamente a sua inclusão e exibição no espaço litúrgico na Igreja Matriz da Ribeira Grande. A festa de São João Evangelista não seria adoptada pela comunidade, acabando por se extinguir, mas o Arcano, investido de novos valores, continua até aos nossos dias a desempenhar um papel importante nas dinâmicas sociais ribeiragrandenses.
4. O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DO ARCANO MÍSTICO.
O prestígio social de Madre Margarida Isabel do Apocalipse e da sua obra por toda a ilha de São Miguel; a crença partilhada pelas elites locais de que as artes e as letras eram a verdadeira fonte de todo o progresso e de toda a civilização e o confronto do Arcano com as obras exibidas na exposição industrial de Ponta Delgada (1848) fundamentaram um processo ritualizado de reconhecimento e de consagração institucional, liderado pelo pintor dourador e poeta, João Albino Peixoto (1803-1891), no quadro das actividades da Sociedade Escholastica-Philarmonica da Ribeira Grande. Em texto lido na referida Sociedade e publicado em 1850, este literato emblematizou e patrimonializou a díade Artista-Arcano no centro do sistema identitário ribeiragrandense, afirmando a superioridade da Obra admirável relativamente aos trabalhos exibidos na cidade de Ponta Delgada.
O processo de patrimonialização do Arcano foi sendo alimentado por representações descritivas e valorativas, produzidas por elementos da elite intelectual e política insular ou de visita à ilha que, veiculadas na imprensa nacional e local ou em livro, transformaram a obra de arte num referente identitário.
Não é, pois, de admirar que a Confraria do Santíssimo Sacramento já considere o Arcano Místico em 1870 como um monumento, excluindo-o dos círculos de troca mercantil. Em 1893 e 1899 começa a ser mencionado nos roteiros turísticos como a principal atracção da Ribeira Grande.
Os diferentes significados investidos no Arcano e os períodos de maior silêncio que este atravessou, se condicionaram, por um lado, o estatuto da obra no processo social ribeiragrandense, por outro, traduzem também a dificuldade das elites em lidar com este objecto complexo e excepcional. A paciência da autora é um valor engrandecido e consensual. Porém, a estética da obra, apesar de reconhecida, é verticalizada por contraste com a escultura erudita, realizada de acordo com as proporções ideais dos clássicos. Daí as opiniões contraditórias e reticentes e a classificação do Arcano como arte na infância, vasta e complexa manifestação de arte popular, de acentuado valor rústico e encantadora ingenuidade.
As perspectivas e os sentimentos hierarquizantes só poderiam ser ultrapassados por quem considerasse o Arcano Místico como expressão da cultura ribeiragrandense numa determinada época, por quem fizesse uma análise morfológica das figuras em função das concepções estéticas da autora, revelando o seu estilo original e diferente, por quem compreendesse a evolução do estatuto social da artista (conventual, independente) e por quem contextualizasse a arte da freira escultura no universo estético de tradição conventual.
O arcano carecia de ser analisado na totalidade da sua construção, ao nível da composição de cada grupo e das características individuais de cada figura. Era preciso compreender que o Arcano não é um objecto estético profano mas religioso, no qual o valor simbólico, cultual e catequético se sobrepõe à expressão estética. Este tinha de ser entendo como uma interpretação-tradução dos livros santos, uma expressão dos mitos e das mensagens sagradas, um depósito global da fé, só podendo ser visto e entendido à luz do espírito de quem o fez. Era necessário que alguém procurasse desvendar o segredo técnico da autora com os instrumentos do conhecimento científico.
Todo este projecto foi empreendido do início da década de 80 do século passado até aos nossos dias por Mário Fernando de Oliveira Moura, director do Museu da Ribeira Grande, no âmbito da sua tese de mestrado em Museologia e Património (1996-1997), O Arcano da Ribeira Grande: subsídios para um museu paroquial, realizada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sob a orientação do Prof. Doutor Henrique Coutinho Gouveia. Este trabalho científico tem de ser entendido no quadro mais amplo do desenvolvimento de uma rede museológica municipal da cidade da Ribeira Grande que está a ser implantada com base em monografias elaboradas pelo historiador, museólogo e intelectual ribeiragrandense.
Desta forma, o Arcano Místico ganhou valor científico e museológico, conquistando um renovado estatuto patrimonial na dinâmica, consciência axiológica e identitária da cidade da costa norte da ilha de São Miguel.
Um dos pólos da projectada rede museológica da Ribeira Grande é precisamente a Casa-Museu da Freira do Arcano, cujo estudo prévio e memória descritiva foram elaborados pelos arquitectos Maria de Luz Janeiro, Carlos Almeida Marques e José Manuel Fernandes.
Um novo passo neste processo contemporâneo de patrimonialização seria dado por Mário Moura ao tomar a iniciativa de propor à Câmara Municipal da Ribeira Grande a classificação jurídica do Arcano.
5. A PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO DO ARCANO MÍSTICO COMO TESOURO REGIONAL.
Na sequência da iniciativa do Mestre Mário Moura, o presidente da edilidade apresentou á Assembleia Municipal da cidade da Ribeira Grande uma proposta de classificação do Arcano Místico como Tesouro Regional, ao abrigo do Decreto Legislativo Regional n.º 29/2004/A de 24 de Agosto.
A classificação jurídica é a principal forma de protecção do património cultural. No caso do Arcano Místico, pretende-se, por um lado, o reconhecimento institucional da obra de Madre Margarida Isabel do Apocalipse e a sua qualificação no núcleo central dos referentes identitários da cultura açoriana e, por outro, reconhecer a este bem o regime de protecção especial (conservação, defesa e valorização) de que carece urgentemente.
5.1. Valor, multidimensionalidade e justificação.
O longo processo de patrimonialização (4: 10-11) conferiu ao Arcano Místico uma pluralidade de valores indissociáveis, razão pela qual a valoração excepcional deste elemento do património da Ribeira Grande tem um carácter complexo, multidimensional e uma natureza compósita (material e imaterial) que passamos a tipificar:
CENTRO DE ESTUDOS ETNOLÓGICOS
PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO COMO TESOURO REGIONAL
DO ARCANO MÍSTICO
DE MADRE MARGARIDA ISABEL DO APOCALIPSE,
EXISTENTE NA IGREJA MATRIZ DA CIDADE DA RIBEIRA GRANDE,
ILHA DE SÃO MIGUEL, AÇORES
PARECER
Rui de Sousa Martins
PONTA DELGADA
26 DE DEZEMBRO DE 2006
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
CENTRO DE ESTUDOS ETNOLÓGICOS
PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO COMO TESOURO REGIONAL
DO ARCANO MÍSTICO
DE MADRE MARGARIDA ISABEL DO APOCALIPSE,
EXISTENTE NA IGREJA MATRIZ DA CIDADE DA RIBEIRA GRANDE,
ILHA DE SÃO MIGUEL, AÇORES
PARECER
Rui de Sousa Martins
PONTA DELGADA
26 DE DEZEMBRO DE 2006
ÍNDICE
1. A clausura das mulheres e a riqueza dos conventos................................................. 3
2. Artes conventuais femininas, consumo ostentatório e prestígio social ....................... 4
2.1. Distinção alimentar, festividades e ritualidade................................................... 4
2.2. Artes decorativas conventuais......................................................................... 5
2.3. Uma identidade artística feminina..................................................................... 6
3. A extinção dos conventos e a criação do Arcano Místico ..................................... 7
3.1. As dádivas da mudança política....................................................................... 7
3.2. O Arcano Místico e outras artes...................................................................... 8
3.3. A exposição do Arcano Místico e a consagração da mulher escultora.............. 9
4. O processo de patrimonialização do Arcano Místico................................................ 10
5. A proposta de classificação do Arcano Místico como Tesouro Regional................... 12
5.1. Valor, multidimensionalidade e justificação....................................................... 12
1. A CLAUSURA DAS MULHERES E A RIQUEZA DOS CONVENTOS.
De 1533 a 1832, as famílias principais das ilhas de São Miguel, Terceira, Faial e São Jorge procuraram evitar a dispersão do património familiar, afastando do casamento filhas donzelas e destinando-as à vida religiosa, ao celibato definitivo e à clausura perpétua em conventos femininos que gozavam de grande prestígio social.
A entrada em religião de uma donzela era acompanhada da estipulação de um dote, prestação económica em dinheiro, trigo, terras ou rendimentos que os pais eram obrigados a entregar anualmente ao convento, assumindo este, por sua vez, determinadas obrigações para com a recolhida e garantindo a sua autonomia no seio da comunidade. Desta forma se foram instaurando e alimentando vínculos de aliança e redes duráveis de relações sociais entre os conventos receptores e as famílias doadoras de donzelas e de dotes.
Nestas redes relacionais, e de acordo com as normas estabelecidas, circulavam pessoas, mercadorias, alimentos, objectos de arte, bens imateriais, serviços e mensagens, no quadro de processos longos de construção, reforço, interligação, competição e reprodução de poderes ligados à família, à economia, à política e à religião, instância que assegurava a regeneração da vida, da sociedade e a salvação das almas.
Até às reformas religiosas pombalinas de 1754 e 1763, os conventos femininos dos Açores foram acumulando poder económico, espiritual e social que se manifestava na especificidade e na qualidade arquitectónica da casa monástica, com destaque para a respectiva igreja, espaço de sociabilidade religiosa enriquecido pelas artes, afirmando-se também no brilho das cerimonias rituais, das festividades e das procissões, nas práticas de solidariedade social, na instrução e nas actividades artísticas das suas religiosas.
2. ARTES CONVENTUAIS FEMININAS, CONSUMO OSTENTATÓRIO E PRESTÍGIO SOCIAL.
As comunidades monásticas, organizadas para cultivar a devoção e a religiosidade, asseguravam também a sobrevivência, a manutenção e o percurso religioso dos seus membros, estabelecendo formas de relacionamento com o mundo exterior e funcionando globalmente como unidades de produção, consumo e reprodução socioeconómica.
As diferentes actividades conventuais eram distribuídas pela hierarquia das religiosas. Logo, articulavam-se com espaços distintos e verticalizados e encadeavam-se de acordo com um rigoroso ritmo diurno: oração recitada e mental, Ofício Divino, refeições, trabalhos manuais, tarefas de “cozinha, enfermaria e roupeiro”, serviços de comunicação com o exterior (roda, portaria, locutório), lazer e descanso.
Para além das tarefas relacionadas com a satisfação quotidiana das necessidades básicas, as religiosas produziam refeições e bens alimentares de prestígio, assim como objectos de arte decorativa para consumo próprio ou exterior, em contextos quer religiosos quer seculares.
2.1. Distinção alimentar, festividades e ritualidade.
As refeições opulentas e dispendiosas assim como os doces requintados faziam parte das festividades religiosas conventuais. Este consumo ostentatório de alimentos quebrava as rotinas e as preocupações do dia-a-dia, libertando tensões internas acumuladas e prestigiando o convento aos olhos da sociedade.
As refeições de prestígio também serviam estratégias internas de poder, ao serem proporcionadas por uma nova candidata ao cargo de abadessa, ou pela abadessa eleita. Os clérigos que rezavam missa para a comunidade eram também distinguidos com refeições requintadas.
Na ilha do Faial, a circulação de abundantes dádivas e contradádivas de alimentos ostentatórios entre o império conventual feminino (mordomas e imperatrizes) e o império dos seculares (mordomos e imperadores) da Vila da Horta, ritualizava por um lado afirmações de riqueza e de distinção enquanto promovia e reforçava, por outro, as relações sociais entre os membros das elites religiosas do Culto do Divino.
A doçaria era a mais celebrada manifestação da arte culinária das religiosas, de tal forma que os doces, feitos sobretudo por ocasião das festividades, emblematizava as diferenças entre os conventos.
Os colaboradores do exterior, eclesiásticos (confessores, pregadores, clérigos) ou leigos, os familiares, amigos e viajantes estrangeiros, quando recebidos no locutório, eram presenteados cerimonialmente com doçaria requintada. A dádiva de doces, que implicava despesas elevadas, desempenhava um importante papel mediador nas relações de comunicação do mosteiro com a sociedade, marcando e ultrapassando ritualmente a distinção dos espaços interior/exterior.
Finalmente, o prestígio da culinária conventual justificava encomendas de “manjares e iguarias” por parte dos seculares.
2.2. Artes decorativas conventuais.
Os conventos femininos cultivavam igualmente a música coral e instrumental e as artes decorativas, distinguindo-se nos bordados, nos trabalhos em papel recortado e, sobretudo, na elaboração de flores artificiais.
Os objectos artísticos eram produzidos no quadro das actividades quotidianas do convento, numa sala especializada, designada “casa de trabalho”, onde todas as freiras deviam estar, nas horas determinadas pela abadessa, desenvolvendo cada uma a sua actividade, enquanto uma delas lia em voz alta um livro espiritual que suscitasse a devoção. O modo de produção conventual articulava no processo de trabalho valores estéticos e religiosos. Muito embora este espaço fosse colectivo, a organização comunitária garantia a identidade individual dos seus membros e possibilitava a aprendizagem, o aperfeiçoamento e a actividade de mulheres artistas, institucionalmente legitimadas pela educação recebida, socialmente reconhecidas pelo seu talento e cujas obras eram valorizadas ao mais alto nível das elites insulares e nacionais.
As conhecidas obras em papel tesourado (guardanapos, toalhas…) estavam relacionadas com a apresentação estética dos doces, por ocasião das dádivas e das práticas de consumo cerimonial.
Os ramos de flores artificiais, feitas de papel, tecido, miolo de figueira ou de penas, desempenhavam um papel relevante na decoração dos espaços litúrgicos (altares, tribunas, retábulo) por ocasião das cerimónias do culto e na ornamentação dos andores que passavam nas procissões.
As flores artificiais eram representações estéticas duráveis, transfigurações simbólicas e decorativas das efémeras flores naturais, criando e reforçando relações estéticas, emotivas e contemplativas de comunhão e de comunicação com a imagem sagrada e o sobrenatural.
Desta forma, se justificava o dispendioso investimento em flores artísticas para decoração litúrgica, por parte das instituições religiosas (igrejas e misericórdias), que as encomendavam aos conventos, pagando-as em dinheiro.
Na ilha do Faial, os ramos de flores artificiais faziam parte das dádivas que estreitavam relações de poder no interior do convento da Glória.
Por ocasião das celebrações do Domingo de Ramos, os ministros do altar eram também presenteados com ramos artísticos particularmente dispendiosos. Os palmitos faziam parte das dádivas rituais para o exterior do convento.
Duas canas de flores artificiais, criadas pela celebrada artista Madre Jerónima do Sacramento, do convento de Santo André de Ponta Delgada, foram oferecidas pelo Convento da Esperança à rainha Dona Maria Sofia e ao rei Dom Pedro II e ramos encomendados aos conventos da cidade foram igualmente oferecidos às Infantas da corte de Dom João VI, na expectativa de favores régios.
Em suma, no século XVII, XVIII e princípios do século XIX, a produção conventual de flores artificiais era uma arte elitista, cultivada por religiosas provenientes das grandes famílias da aristocracia e da burguesia insular. Os ramos artísticos circulavam como dádivas e mercadorias, a nível das instituições religiosas e das casas importantes, tendo sido aceites pela Família Real e reconhecidos pela sociedade culta que frequentava a corte.
2.3. Uma identidade artística feminina.
A identidade específica das artes femininas de produção conventual (culinária de prestigio, objectos decorativos) assentava num modelo social que atribuía à mulher das culturas rurais a exclusiva responsabilidade e execução das actividades domésticas (alimentação, produção e manutenção de vestuário) e da organização estética constitutiva do interior da casa. Nas comunidades conventuais, estas competências técnicas femininas foram reorganizadas de acordo com um modo de produção distinto, desenvolvidas criativamente e reproduzidas, em conexão com as crenças e as práticas religiosas de tal forma que bens alimentares e peças decorativas foram ganhando qualidade e prestígio.
As artes conventuais femininas, por sua vez, desempenharam um papel significativo na renovação e no reforço das relações de interdependência das comunidades religiosas com a sociedade exterior, ao mais elevado nível, até à instauração do Liberalismo (1832) que, suprimindo os conventos, obrigou as artes femininas a novos percursos.
3. A EXTINÇÃO DOS CONVENTOS E A CRIAÇÃO DO ARCANO MÍSTICO.
3.1. As dádivas da mudança política.
Em Fevereiro de 1832, chegou aos Açores a expedição de Sua Majestade Imperial, Dom Pedro, Duque de Bragança, que vinha assumir o governo e a Regência do Reino, em nome de sua filha, Rainha Dona Maria II. Durante a estadia no arquipélago, que se prolongou até 23 de Julho, Dom Pedro empenhou-se na organização do exército libertador, participou em sumptuosas festas com lautos banquetes e em bailes de cerimónia, assistiu a solenes Te Deum e cumpriu a obrigação social de visitar os conventos de freiras de quem recebeu algum apoio.
Para testemunhar a extrema adesão à causa da Senhora Dona Maria II, e da Liberdade da Pátria, a abadessa do Mosteiro de Santo André de Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, ofereceu a Dom Pedro vinte moios de trigo, destinados à tropa expedicionária. Na ilha do Faial, o Regente recebeu das freiras do Mosteiro da Glória um …avultado presente de doces para a viagem, incluindo no mesmo outros tantos corações de alfenim, como o número de religiosas, de tamanho natural e tendo cada um em letras doiradas as iniciais do nome da Offerente.
Porém, a mais notável dádiva conventual açoriana foi feita e enviada a Sua Majestade por Madre Margarida Isabel do Apocalipse, freira clarissa no Mosteiro de Jesus, da então vila da Ribeira Grande. A oferta destinava-se à Senhora Dona Maria II e consistia num …ramalhete de flores artificiais obra toda de sua mão, que além da variedade e belleza das mesmas flores, e do cheiro proprio das naturaes com que insufflou era um emblema, que por flores e grupos d’estas representava a mesma Senhora sustentada por seu Augusto Pai, e cercada pelos emigrados, e mais guerreiros, que a deffendiam.
Estas dádivas em bens alimentares e artísticos, feitas ao detentor do poder imperial, tinham uma finalidade política e social: exprimir simbolicamente a adesão e a fidelidade de determinadas religiosas à Rainha e ao Liberalismo, num processo relacional ao mais alto nível. A aceitação e o agradecimento por parte de Sua Majestade eram fonte de grande prestígio social para as doadoras.
As consequências do triunfo liberal não se fizeram esperar e o primeiro governo de Dom Pedro estabelecido no arquipélago decretou a extinção dos conventos por Decreto de 17 de Maio de 1832.
3.2. O Arcano Místico e outras artes.
Extinto o Convento de Jesus da Ribeira Grande, a consagrada freira artista Madre Margarida Isabel do Apocalipse (1779-1858), filha de uma família abastada da governança da terra, optou por ficar na vila natal, morando na companhia de duas criadas, em três casas contíguas que compraria em 1837. Na situação de religiosa egressa, traçou um projecto de vida que reproduzia, em contexto doméstico, o essencial das suas actividades conventuais: promover o culto de São João Evangelista, pelo qual tinha sido responsável no convento, e desenvolver as artes decorativas nas quais já se tinha notabilizado.
Num compartimento da sua casa, instalou um altar dedicado ao seu Padrinho e intercessor e, de 1854 a 1856, empenhou-se na construção de outro altar na Igreja Matriz para colocar a Santa e Milagrosa Imagem que trouxera do mosteiro, tudo fazendo para instituir e perpetuar uma festividade anual em honra do filho adoptivo de Maria. Transformou a sua residência num espaço de produção artística de reputadas flores artificiais e de bordados, ocupações suplantadas, a partir de 1835, pelo processo de criação e exposição do Arcano Místico, obra que a notabilizou na sociedade micaelense.
O Arcano Místico é um conjunto escultórico religioso, de tradição conventual, organizado em três divisões verticais de um grande móvel-expositor (200x200x200 cm), constituído por cerca de noventa grupos agregados de pequenas figuras policromas (1 a 20 cm) e outros elementos, todos identificados por legendas, representando cenograficamente os Mistérios mais importantes do Antigo e do Novo Testamento.
As pequenas esculturas foram na quase totalidade moldadas numa massa à base de farinha de arroz, farinha de trigo (?), goma-arábica, gelatina animal e vidro moído, cuja composição teria inventado e mantido em segredo. Para além da invenção de uma pasta e e do aperfeiçoamento da técnica de a modelar, a artista criou um estilo próprio, caracterizado pela individualização identitária das figuras minuciosas, pela representação miniatural do vestuário e de outros elementos caracterizadores. As figurinhas, animadas por posturas e gestos, são impressivas no cromatismo quente que contrasta com a alvura do corpo visível (aparência de biscuit). As figuras interagem em cenas de grande vivacidade e eficácia narrativa e performativa, onde a intensidade simbólica se alia à profundidade catequética. O tratamento dos elementos anatómicos é condicionado pela natureza da pasta em que foram modelados, o que os aproxima dos trabalhos em cera.
A massa à base de farinha(s) associa a escultura de Margarida Isabel do Apocalipse à arte culinária conventual, onde a farinha e o açúcar eram ingredientes fundamentais. Consequentemente, a natureza feminina desta escultura enraizar-se-á na conexão técnica primordial da mulher com o pão (massas de farinha), alimento do corpo e do espírito, nas culturas agrárias do Ocidente.
3.3. A exposição do Arcano Místico e a consagração de uma escultora.
De 1835 a 1858, o Arcano Místico foi sendo construído e exibido num dos melhores quartos da moradia. Com a finalidade de promover a religiosa edificação dos visitantes, a autora franqueava a sua casa ao público e o Arcano em construção era visitado por uma grande afluência de pessoas desejosas de o ver. Na exposição do Arcano, a arte é indissociável da religião e a artista exercia uma dupla função de mediadora cultual. Por um lado, representava as narrativas bíblicas nas cenas do Arcano e, por outro, descodificava as respectivas mensagens aos visitantes que as associavam ao prazer visual da obra. A produção e exposição doméstica permanente do Arcano, num espaço especializado da casa da autora, identificava, consagrava e exibia, perante a comunidade e os visitantes, o seu estatuto de artista independente, criadora de uma obra única. Em 1848, a imprensa de Ponta Delgada reconhecia Margarida Isabel do Apocalipse como Religiosa Escultora da Ribeira Grande.
Apesar de afectada pela doença, esta artista teve a inteligência e a capacidade de garantir o futuro das suas obras, ao recorrer à prática social da dádiva, cujo interesse foi claramente de natureza religiosa. Para o efeito, legou em testamento (1857) o Arcano e as casas em que morava, como bens vendáveis, à Confraria do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz da Ribeira Grande, ficando esta obrigada a promover anualmente a festa de São João Evangelista. Em 1858, morre a freira escultora e o Arcano Místico manteve-se exposto no espaço original, mas com entradas pagas. Em 1870, foi transferido para o coro alto da Igreja Matriz, lugar considerado mais adequado para um monumento d’aquella ordem.
Em suma, a trajectória social do Arcano Místico é indissociável da instauração do culto de São João Evangelista, produzindo-se num sistema de relações sociais centradas na Igreja e a natureza religiosa da obra escultórica acabou por condicionar decisivamente a sua inclusão e exibição no espaço litúrgico na Igreja Matriz da Ribeira Grande. A festa de São João Evangelista não seria adoptada pela comunidade, acabando por se extinguir, mas o Arcano, investido de novos valores, continua até aos nossos dias a desempenhar um papel importante nas dinâmicas sociais ribeiragrandenses.
4. O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DO ARCANO MÍSTICO.
O prestígio social de Madre Margarida Isabel do Apocalipse e da sua obra por toda a ilha de São Miguel; a crença partilhada pelas elites locais de que as artes e as letras eram a verdadeira fonte de todo o progresso e de toda a civilização e o confronto do Arcano com as obras exibidas na exposição industrial de Ponta Delgada (1848) fundamentaram um processo ritualizado de reconhecimento e de consagração institucional, liderado pelo pintor dourador e poeta, João Albino Peixoto (1803-1891), no quadro das actividades da Sociedade Escholastica-Philarmonica da Ribeira Grande. Em texto lido na referida Sociedade e publicado em 1850, este literato emblematizou e patrimonializou a díade Artista-Arcano no centro do sistema identitário ribeiragrandense, afirmando a superioridade da Obra admirável relativamente aos trabalhos exibidos na cidade de Ponta Delgada.
O processo de patrimonialização do Arcano foi sendo alimentado por representações descritivas e valorativas, produzidas por elementos da elite intelectual e política insular ou de visita à ilha que, veiculadas na imprensa nacional e local ou em livro, transformaram a obra de arte num referente identitário.
Não é, pois, de admirar que a Confraria do Santíssimo Sacramento já considere o Arcano Místico em 1870 como um monumento, excluindo-o dos círculos de troca mercantil. Em 1893 e 1899 começa a ser mencionado nos roteiros turísticos como a principal atracção da Ribeira Grande.
Os diferentes significados investidos no Arcano e os períodos de maior silêncio que este atravessou, se condicionaram, por um lado, o estatuto da obra no processo social ribeiragrandense, por outro, traduzem também a dificuldade das elites em lidar com este objecto complexo e excepcional. A paciência da autora é um valor engrandecido e consensual. Porém, a estética da obra, apesar de reconhecida, é verticalizada por contraste com a escultura erudita, realizada de acordo com as proporções ideais dos clássicos. Daí as opiniões contraditórias e reticentes e a classificação do Arcano como arte na infância, vasta e complexa manifestação de arte popular, de acentuado valor rústico e encantadora ingenuidade.
As perspectivas e os sentimentos hierarquizantes só poderiam ser ultrapassados por quem considerasse o Arcano Místico como expressão da cultura ribeiragrandense numa determinada época, por quem fizesse uma análise morfológica das figuras em função das concepções estéticas da autora, revelando o seu estilo original e diferente, por quem compreendesse a evolução do estatuto social da artista (conventual, independente) e por quem contextualizasse a arte da freira escultura no universo estético de tradição conventual.
O arcano carecia de ser analisado na totalidade da sua construção, ao nível da composição de cada grupo e das características individuais de cada figura. Era preciso compreender que o Arcano não é um objecto estético profano mas religioso, no qual o valor simbólico, cultual e catequético se sobrepõe à expressão estética. Este tinha de ser entendo como uma interpretação-tradução dos livros santos, uma expressão dos mitos e das mensagens sagradas, um depósito global da fé, só podendo ser visto e entendido à luz do espírito de quem o fez. Era necessário que alguém procurasse desvendar o segredo técnico da autora com os instrumentos do conhecimento científico.
Todo este projecto foi empreendido do início da década de 80 do século passado até aos nossos dias por Mário Fernando de Oliveira Moura, director do Museu da Ribeira Grande, no âmbito da sua tese de mestrado em Museologia e Património (1996-1997), O Arcano da Ribeira Grande: subsídios para um museu paroquial, realizada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sob a orientação do Prof. Doutor Henrique Coutinho Gouveia. Este trabalho científico tem de ser entendido no quadro mais amplo do desenvolvimento de uma rede museológica municipal da cidade da Ribeira Grande que está a ser implantada com base em monografias elaboradas pelo historiador, museólogo e intelectual ribeiragrandense.
Desta forma, o Arcano Místico ganhou valor científico e museológico, conquistando um renovado estatuto patrimonial na dinâmica, consciência axiológica e identitária da cidade da costa norte da ilha de São Miguel.
Um dos pólos da projectada rede museológica da Ribeira Grande é precisamente a Casa-Museu da Freira do Arcano, cujo estudo prévio e memória descritiva foram elaborados pelos arquitectos Maria de Luz Janeiro, Carlos Almeida Marques e José Manuel Fernandes.
Um novo passo neste processo contemporâneo de patrimonialização seria dado por Mário Moura ao tomar a iniciativa de propor à Câmara Municipal da Ribeira Grande a classificação jurídica do Arcano.
5. A PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO DO ARCANO MÍSTICO COMO TESOURO REGIONAL.
Na sequência da iniciativa do Mestre Mário Moura, o presidente da edilidade apresentou á Assembleia Municipal da cidade da Ribeira Grande uma proposta de classificação do Arcano Místico como Tesouro Regional, ao abrigo do Decreto Legislativo Regional n.º 29/2004/A de 24 de Agosto.
A classificação jurídica é a principal forma de protecção do património cultural. No caso do Arcano Místico, pretende-se, por um lado, o reconhecimento institucional da obra de Madre Margarida Isabel do Apocalipse e a sua qualificação no núcleo central dos referentes identitários da cultura açoriana e, por outro, reconhecer a este bem o regime de protecção especial (conservação, defesa e valorização) de que carece urgentemente.
5.1. Valor, multidimensionalidade e justificação.
O longo processo de patrimonialização (4: 10-11) conferiu ao Arcano Místico uma pluralidade de valores indissociáveis, razão pela qual a valoração excepcional deste elemento do património da Ribeira Grande tem um carácter complexo, multidimensional e uma natureza compósita (material e imaterial) que passamos a tipificar:
Comentários