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Haverá açoriano que não se indigne com tamanha barbaridade?

(Santa Iria – XVIII)

Este é o último artigo da série dedicada ao nosso fabuloso Porto. Estes 18 artigos não brotaram de ressentimentos, nasceram de um dever e direito de cidadania. Sou Historiador enquanto cidadão, tenho o dever de partilhar o que sei para o que julgo ser o bem geral da minha comunidade. Relembrei-me disso ao reler uma conferência de Bento de Jesus Caraça realizada na União Cultural «Mocidade Livre, a que deu o título de ‘A Cultura Integral do Indivíduo Problema central do nosso tempo.’ É ainda actual e foi reeditada este ano. Aconselho a leitura. Não havia ainda percebido se essa do ‘mauzão do mar da costa Norte’ era mesmo verdade ou se era apenas uma desculpa para não investir no Mar do Norte. Agora percebi: é uma desculpa para investir em massa no Sul e atirar umas migalhas ao Norte. Ora, vamos ao que interessa. Fotografei o Porto de Santa Iria em 2006, pouco antes da sua interdição, e em 2021. Vou partilhar algumas das imagens que colhi.

Um amigo, após ler um dos nossos primeiros artigos, escreveu-me: ‘Tenho, contudo, uma certeza: Se o Porto de Santa Iria fosse localizado nos arredores de Ponta Delgada, há  muito tempo,  as obras de melhoramento já estariam concluídas.[1] Outro que também leu um dos artigos e que não deseja ser identificado, carrega na acusação: ‘a Ilha de S. Miguel é o fundo do quintal da cidade de Ponta Delgada e os Deputados da Ilha de S. Miguel são os deputados da Cidade de Ponta Delgada.’ Diria que, valha-nos isso, um ou outro levanta a voz. E é assim que deveria ser.

Um outro ainda, houve outros mais, que também não quer ver o seu nome no jornal, fez perguntas: ‘Vês a sorte do nosso Hospital Concelhio, um dos três Concelhios da Ilha, agora Regional? Sabes que houve um Director Regional que só não levou as paredes para o Hospital de Ponta Delgada porque não calhou?’ Continuou: ‘Dos três Hospitais Concelhios antes desta Autonomia apenas investiram num e agora tiveram que subsidiar um privado com uma grossa maquia de dinheiros públicos. Sabias? E o Passeio Atlântico? Em 1950’s, com dinheiro de um ministro de Salazar, fez-se a avenida em Ponta Delgada. Havia um projecto aqui para fazer a nossa. Fez-se? Fez-se mais um aumento e ainda mais outro em Ponta Delgada. Agora com dinheiros da Região. Aqui é o que vês! Avança ao passo de formiga. Parece que pertencemos à Região Autónoma das Formigas!’ Se não é assim, não fugirá muito à realidade. Se em política o que parece é, então, só pode ser assim.

Tudo não passará de delírios poéticos, se os donos da Região que moram na Ilha não virem a Ilha além da Ilha que veem. À boca aberta, o meu conselho: não estiquem mais a corda desta Autonomia ou a corda salta e salta a Autonomia. Francisco Maduro-Dias, em artigo já citado por nós, diz o mesmo de forma mais suave: ‘É essa Açorianidade que temos de aprofundar, aprender e ensinar, rapidamente, se não queremos deitar abaixo o projecto de autonomia, que anda por aí há 45 anos.[2]

Antes de terminar, sugeria que retivessem o seguinte: a concentração do investimento no porto artificial de Ponta Delgada contribuiu largamente para que a Ribeira Grande não fosse cidade no século XIX, a mudança (como iremos ver em próximo trabalho) do aeroporto de Santana para a Nordela em 1969 voltou a atrasar a elevação a cidade e o abandono de Santa Iria (assim como a calamidade do nosso Hospital, a saga do Passeio Atlântico etc…) contribuem para a já cidade ainda não ser a cidade que tem direito a ser. Não para o ser apenas mas para criar riqueza em seu redor. A outra ideia é simples. Deem esmolas a quem mais precisa, a Cidade da Ribeira Grande exige o que tem direito. Com respeito. Com a paciência gasta. Muitíssimo. Em termos demográficos, o Concelho tem mais população que sete das nove ilhas dos Açores. A Cidade é mais populosa do que quatro das seis actuais. É o segundo contribuinte fiscal da Região. E há mais. Mas fique-se por aqui. Por exemplo, o maior porto de pesca dos Açores fica aqui. Um tal Nicolau, não o Sargento Nicolau, nem o mecânico Mestre Nicolau, mas o Maquiavel, disse que o poder só escuta a força do poder. No dia em que (espero que seja já) a Cidade da Ribeira Grande (Ribeirinha, Matriz, Conceição, Ribeira Seca e Santa Bárbara) assumir a sua força de quase 12 000 habitantes, o poder deixará de ‘nos dar um rebuçadinho de vez em quando e uma pancadinha paternalista na cabeça e toca a andar,’ como se fossemos meninos da escola Primária, e passará a tratar-nos como iguais. Ninguém na Ilha pediu a Ponta Delgada e suponho que nas restantes ilhas também (Avenida do Infante e pouco mais) que fosse o único motor de desenvolvimento, até porque, apesar da concentração de meios, passados 40 anos a Região é ainda uma das mais atrasadas do país. Nem sequer a reconhece como o guardião único do ‘Santo Graal desta Autonomia,’ face ao papão centralista de Lisboa, mas que, na prática, sem quaisquer estranhezas, se comporta tanto ou pior do que Lisboa. Ninguém. Compare-se a relação da cidade do Funchal com a ilha da Madeira e a de Ponta Delgada com a ilha de São Miguel. Ou mais perto de nós, na ilha ao lado, compare-se a relação (de facto) entre Angra do Heroísmo e a Praia da Vitória. A ilha deve perder a confiança em quem a devia representar com isenção e empenho mas antes usa e abusa da sua situação em benefício próprio? Sim. Se estão à espera que a Ribeira Grande se esvazie e rume à ‘Capital,’ e resolva o problema, desenganem-se. A elite pode sair, pode se fechar em casa, alheia ao que se passa ao seu redor, mas o povo, que a elite despreza, fica, qual lapa agarrada às pedras do Calhau da Mulher. Assim no-lo descreveu Gaspar Frutuoso numa das mais belas declarações de amor por aqueles que reconstruiram a Ribeira Grande depois de 1563. Certamente, será este povo simples que fica e se recusa a partir que irá construir a Cidade da Ribeira Grande. Como não poderia deixar de ser deste povo? Desta intratável gente.

 Em jeito de aviso amigável, recomendo várias leituras. Uma, a imortal história de Tucídides, a Guerra do Peloponeso. Conhecem a história da Liga de Delos? Alegando a defesa de todos, Atenas aproveitou-se do tesouro de todos para engrandecer. Moral que se aplica a todos os tempos? A húbris (arrogância) acarreta a Nemésis (castigo). Uma outra, será Italo Calvino e as suas Cidades invisíveis. Aí ver-se-á que as cidades nascem, morrem e desaparecem da memória. Podem até reaparecer. Uma ameaça nossa? Não é essa a intenção, apenas temas para meditar.

Termino com um voto de Ezequiel Júnior: ‘gostaríamos de despertar o ânimo da Juventude académica da Ribeira Grande para esses assuntos tão interessantes da brilhante História da sua Terra.’[3] Eu vou despertando. E quem me possa ler?

 

PS: Obrigado ao Diário dos Açores por me ter acolhido. E aos leitores que me leram e deram as suas criticas. Mal esteja pronto, se me franquearem de novo as páginas deste jornal, tentarei aqui perceber o aeródromo de Santana (outra pulhice?). Desculpem-me se não penteei devidamente alguns parágrafos (Onésimo dixit) ou se permiti gralhas. Desculpem-me se fui duro demais. Mas fui leal. Creio.

Lugar das Areias

Rabo de Peixe

 



[1] Correio electrónico de Hermano Cordeiro para Mário Moura, 25 de Outubro de 2021

[2] Maduro-Dias, Francisco, O Bispo, o Governo, a Gente e a Açorianidade, Açoriano Oriental, Ponta Delgada, 6 de Novembro de 2021, p. 13.

[3] Silva, Ezequiel Moreira da, O Porto de Santa Iria, Correio dos Açores, Ponta Delgada, 10 de Fevereiro de 2013, p. 13.

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