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Ribeira Grande: Nascimento de uma Vila

(Biografia)

José Matoso escreveu: ‘Costumo comparar a escrita da História à montagem da maquete de um edifício que já não existe. A maquete é feita de peças imaginárias criadas à custa de deduções de textos e de imagens agregadas num todo coerente, mas inseguro e, por isso, provisório. No nosso caso pretendemos explicar o que aconteceu há uns (...).'[1] 500 anos!

A razão do meu interesse pelo estudo do espaço concelhio da Ribeira Grande? – I

A par da administração da ilha pelo capitão-do-donatário, a organização administrativa inicial da ilha foi o Concelho. Tanto assim foi como ainda é, apesar de vir perdendo gradualmente peso. É uma realidade que vem do século XV. Sem entrar em minudências, pode explicar-se a coisa assim: logo de início do povoamento, foram criadas capitanias. É um ponto assente. Todavia, pouco tardou para começarem a surgir os municípios. Resultava daí um tríplice benefício: para a coroa (centralização e mais rendimentos) e para as elites locais e para a ilha (maior desenvolvimento). Entre 1474 - 1483 e 1522, a ilha de São Miguel foi dividida em seis concelhos: Vila Franca (1474-1483), Ponta Delgada (1499-1507), Ribeira Grande (1507), Nordeste (1514), Água de Pau (1515) e Lagoa (1522). Saindo de São Miguel e olhando para as restantes oito ilhas dos Açores, pode afirmar-se que até ao século XIX, seis das ilhas eram divididas em mais do que um concelho: Flores (2); Pico (3); São Jorge (3); Graciosa (2); Terceira (3); São Miguel (6). Apenas nas Ilhas do Faial e de Santa Maria existia apenas um Concelho. O Corvo pertencia a um dos municípios das Flores. A preeminência inicial das Cidades de Angra do Heroísmo (cidade em 1534), de Ponta Delgada (cidade em 1546), e Horta (elevada a cidade em 1833) sobre as Vilas e Ilhas do Arquipélago, como se alega nos Estatutos Autonómicos a partir de 1976, como se vê, terá pouco ou nenhum fundamento histórico. A bem da verdade, comparado com os quase cinco séculos de existência dos municípios, a alegada primazia histórica pouco mais teria (em 1976) do que um século de vida.

Apesar de tudo, os municípios mantiveram-se fortes. Permitam-me uma pequena viagem explicativa. Os Concelhos da Ilha eram parte essencial do primeiro Governo Provisório (de bem curta vida), criado em São Miguel, em 1821.[2] Ainda que com cada vez uma rédea mais curta, continuaram a desempenhar um papel importante durante os governos da Prefeitura de Angra (bastante contestada), da Subprefeitura de Ponta Delgada e os Governos Civis Distritais. Na chamada primeira Autonomia Administrativa de 1895 (refiro-me ao caso de São Miguel e de Santa Maria, que melhor conheço), a base representativa à Junta Geral Distrital seguiu ainda as linhas concelhias. Mas não se ficou por aí, de 1974 a 1976, a importância multisecular dos municípios vem traduzida nas mais importantes propostas de organização das ilhas. São conhecidas propostas no sentido de os concelhos continuarem a ser a base administrativa.[3] A este respeito, dizer que o estatuto da Região Autónoma da Madeira de 1976 (que desde os primórdios influenciou a nossa experiência municipal), tinha por base o município. Deveras curioso, muitíssimo mesmo, é que, ao que se conta, tivesse ‘havido um lapso no projecto do Estatuto dos Açores de 1976 que consignava, tal como para a Madeira, os concelhos dos Açores.’ O Conselho da Revolução (ou algo que o valha), fizera confusão. Lapso, que terá sido corrigido ‘in extremis.’ Será verdade? Apesar de tudo, o papel do município não foi esquecido na ilha de São Miguel. Perante o cada vez maior voltar de costas dos eleitores aos actos eleitorais, vai para dois anos, um grupo de cidadãos da Ilha de São Miguel (com seis concelhos) apresentou à Assembleia Legislativa Regional um projecto que ia no sentido de recuperar o peso concelhio. [4]  Resultado? Houve clamores na imprensa das Ilhas Terceira e Faial. Nas outras pouco mais ou nada. E chumbo no plenário. Para uma reflexão oitocentista acerca das potencialidades e esperanças do poder local, sugiro uma releitura de J. Félix Henriques Nogueira.

Na revisão estatutária de 2009, a preeminência das três cidades (à época já existiam mais duas: Ribeira Grande e Praia da Vitória em 1981 e uma terceira a caminho: Lagoa) cedeu lugar à Ilha. Apesar dessa ‘alteração,’ na realidade, tudo continuou como dantes. Face à vetusta idade dos concelhos, de cabelos grisalhos e de muitas rugas, mas cheios de vitalidade, quer a ilha, quer as três cabeças distritais, nada mais serão do que adolescentes com acne no rosto.[5] Não discuto (como cidadão tenho reservas em relação à estrutura actual) se esta estrutura do poder da Região será ou não mais eficaz para criar mais riqueza e maior coesão entre os Açorianos do que um poder que fosse estruturado pelos concelhos (na Madeira acabaram por mudar), pretendo apenas lançar dúvidas razoáveis acerca das alegadas bases históricas que justificaram inicialmente e ainda justificam a preeminência das primeiras três cidades. As três guardiãs vigilantes (desconfiadas umas das outras) votadas ao progresso dos Açores. Assim o pretendeu um dos pais (bastante ignorado) desta Autonomia.

Posto isso, vamos ao assunto que nos traz aqui? No entanto, haja um pouco mais de paciência, antes de mandar esta meia dúzia de artigos para o Correio dos Açores, quero deixar bem claro: há aqui novidades, eliminei ‘algumas gorduras,’ e continuo a tentar contar a minha História como o Tio Mariano Frade contava as suas ‘Estórias.’ Cortar gorduras? A culpa é de José Cardoso Pires. Explico-me. Entre cracas e copinhos de cachaça, numa tasca de São Roque (S. Miguel), em 1986, durante as Primeiras Jornadas Literárias (na Casa da Cultura da Ribeira Grande), no meio de outras conversas saiu-se com esta: a cachaça é para cortar a gordura do molho das cracas. E acrescentou: é o que se faz com a escrita gordurosa. Não podia estar mais de acordo. Chegara lá perto lendo Ernest Hemingway, admito. O que tem as ‘estórias do Tio Mariano’ a ver com a nossa História? Simples. Nem José Hermano Saraiva lhe chegava aos calcanhares a contar ‘estórias.’ Se quem me lê, o tivesse conhecido, dar-me-ia razão. Tenho quase a certeza. E não sabia uma letra! Como é que entusiasmava quem lhe ouvia contar as suas ‘estórias,’ a modos de ninguém arredar pé do pé dele? ‘Falando como a gente fala, de modo que a gente se entenda de coisas da vida sem censurar a vida de ninguém.’ Disse-me uma vez, debruçado no mainel que dava para as nossas Poças. Diante da casa dele. Se conseguir explicar o que pretendo, partindo de alicerces que suportem hipóteses (a História não é só literatura Monsieur Michel Foucoult!!), de modo a que nos entendamos, sem muita gordura, nem censurar ninguém, já darei por bem empregue o tempo que levei nesta ‘lengalenga.’

Bom, apesar da matéria já ter sido tratada no Nascimento de uma Vila (I Volume), lançado em Julho do ano passado, de então para cá fomos tropeçando em dados novos que nos levaram a lançar novas hipóteses. Resultado: revimos ideias, reforçando-as ou descartando-as, e abrimos novos caminhos. Fazer História (bato sempre nesta tecla) sempre foi e sempre será um trabalho em aberto. Estamos entendidos?

PS: Ouvi um pardal dizer a outro pardal que o Senhor da ‘Sedade’ que planta morangos aqui nas Areias, vai substituir os tiros para espantar pardais por discos pedidos? Se ouvi bem a conversa dos pardais, aqui vai o meu primeiro e único pedido, repetido de minuto a minuto no máximo volume: Highway to Hell (de ACDC).

Lugar das Areias – Rabo de Peixe

Mário Moura

 



[1] Matoso, José, Introdução, in Fernandes, Isabel Cristina F., Maria João V. Branco (coordenação, Da conquista de Lisboa à conquista de Álcacer - 1147-1217, Definição e dinâmicas de um território de fronteira, Edições Colibri, Lisboa, 2019.

[2] PT/BPARPD/ALL/CMPDL-G -  Governo Interino da Ilha de São Miguel, 1821   a  1822, 23 de Maio de 1821, fl. 7v. Nesta acta apenas se menciona o representante da Vila da Lagoa, João de Medeiros Borges Amorim, mas permite-nos incluir as demais vilas. De outro modo, não se compreenderia. Desconheço se a representação foi alcançada pelo velho método ou pelo que viria a prevalecer. Veja-se: Domingues, José, Vital Moreira, No Bicentenário da Revolução Liberal – I. Da Revolução à Constituição: 1820-1822, Porto Editora, 2020, pp.17-19.

[3] Entre outros exemplos possíveis: Açores, Ponta Delgada, 11 de Novembro de 1974, pp. 1-4: ‘ Propostas pelo Núcleo de Ponta Delgada do Partido Popular Democrático. ; 2.A Junta Geral é composta por procuradores, eleitos por sufrágio universal e directo, por período de quatro anos, por cada concelho, em número proporcional à respectiva população, tomando por base um procurador por cada 5000 habitantes ou resto maior que 2500; os concelhos com menos de 5000 habitantes elegerão um procurador. 3.Os Procuradores elegem, de entre si, o Presidente e os vogais, em número variável, que comporão a comissão executiva; Correio dos Açores, Ponta Delgada, 26 de Janeiro de 1975:  Mapa – Bases provisórias para o Estatuto Autonómico dos Açores ‘3-As Juntas Gerais serão compostas por Procuradores Concelhios, eleito por sufrágio directo universal, em número proporcional à população de cada concelho, tomando por base um procurador por cada cinco mil habitantes, ou resto maior que dois mil e quinhentos. Os concelhos com menos de cinco mil habitantes, elegerão um Procurador.’

[4] Cidadania Activa, Proposta de Alterações ao Sistema Eleitoral para a ALRAA, 2020

[5] Outra opinião, da qual discordo, veja-se: Ourique, Arnaldo, A Tripolaridade Açoriana, Correio dos Açores, 28 de Janeiro de 2022, p.15: ‘(…) E eis que chegamos ao ano de 2009, altura em que, por proposta de Carlos César, o conceito foi destruído na alteração ao Estatuto Político – e já não faz, pois, parte do Estatuto a ideia dos três centros urbanos. (…) A experiência autonómica iniciada em 1976 – foi abruptamente interrompida em 2009; e continua aos poucos.’

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