O
Amor à Terra cria esperança?
(Porto
de Santa Iria – XIV)
Já
no ano de 1967, Francisco Carreiro da Costa, historiador dos bons e antropólogo
dos melhores, leu aos microfones do Emissor Regional dos Açores um trecho seu
sobre um hipotético futuro porto na Ribeira Grande, ‘que a existir, seria por certo um dos mais importantes dos Açores
(…).’[1]
Longe de ser especialista em portos e ancoradouros, Carreiro da Costa, a nosso
ver, veicula um preconceito enraizado. Dizia Carreiro da Costa, devido à sua
posição geográfica, um porto na Ribeira Grande seria impossível: ‘virada ao norte e, portanto, inibida de
possuir um porto capazmente abrigado.’ Sarmento
Rodrigues, um especialista em portos e ancoradouros, no entanto, como vimos,
afiançara a possibilidade de haver em Santa Iria um bom porto.
Em
1968, numa série de inquéritos (que mereciam ser reunidos e publicados) feitos
nas freguesias e em alguns lugares do Distrito de Ponta Delgada, Daniel de Sá
retrata-nos sobriamente três portos do Concelho da Ribeira Grande: enquanto
regista 75 barcos para o porto de Rabo de Peixe,[2]
aponta ‘cerca de uma dezena de barcos’
para o Porto da Ribeirinha,[3] e
uma dezena e meia para o Porto Formoso.[4]
Ezequiel Moreira da Silva, Júnior, fundador do
Círculo dos Amigos da Ribeira Grande, escreve sobre o Porto de Santa Iria. Além
da parte histórica, Ezequiel partilha as suas memórias. Não obstante o artigo
ter saído em 2013, é provável que se reporte aos anos da sua adolescência.
Ezequiel é de 1936, portanto, pode estar a narrar-nos coisas das décadas de
quarenta em diante. Escreve assim acerca de Santa Iria: ‘ele é, actualmente, porto de permanência para uma meia dúzia de
pequenos barcos pertencentes a pescadores, profissionais e amadores, da
Ribeirinha e da Ribeira Grande e, de abrigo ocasional para alguns de Rabo de
Peixe (…).’[5]
Entre 1965 e 1975, Agostinho Gonçalves Lima, esteve
à frente do posto Fiscal da Ribeirinha. Antes, estivera doze anos no porto da
Maia. No porto de Santa Iria havia uma casota de madeira, com uma balança, para
pesar o peixe pescado. Havia, relembra isso José António Lima, filho do guarda
Agostinho, ‘sete ou oito barcos a maioria
de pescadores de Rabo de Peixe. Lembro-me do Laranjo e do Penacho. Levavam o
peixe às costas. Mas também havia ou outro da Ribeirinha e um da Ribeira Grande.’[6]
Antes de Agostinho, durante anos foi guarda-fiscal o Gil Paulino. Um homem
bastante talentoso, havendo várias casas da Ribeirinha projectadas por ele.[7] E
antes de Gil Paulino, até onde a memória chega, foi o sr. Ezequiel Miranda.[8]
Em
1979, o vereador Milton Costa, que casara na Ribeirinha, ao propor à vereação
que alertasse o então Secretario Regional da Agricultura e Pescas, Ezequiel
Moreira da Silva, para a urgência de obras nos portos do concelho, deixou de
fora o porto de Santa Iria.[9]
Porquê? Por já não ter interesse como porto de pesca. O Posto Fiscal do Porto de Santa Iria, na
Ribeirinha, localizado numa casa da Margem Direita da ribeira, fechou naquele
mesmo ano de 1979. Manuel de Medeiros Pereira (n. Livramento 26
– 12- 1934 – f. Ribeira Grande - 22 -04-2011)
foi o seu último guarda-fiscal. Foi transferido para Ponta Delgada.[10]
Logo
no ano seguinte, a reforçar esta ideia de perda de importância do porto de
Santa Iria, o vice-Presidente, Dr. Victor da Ponte ao defender a construção de
um novo porto em Rabo de Peixe, face à pretensão de um porto de pesca da costa
sul, nada diz acerca do porto de Santa Iria ou outros quaisquer do Concelho.[11]
Nas
décadas de oitenta e de noventa, o Padre Artur Pacheco Agostinho, pároco do
Santíssimo Salvador do Mundo da Ribeirinha, ao reunir o que considerou ser relevante
na sua vida, na da igreja e na da freguesia, apenas toca de relance, no volume
1, o episódio de um corpo de criança que o mar trouxera ao porto da Ribeirinha.[12] Em
data não anterior a 13 de Maio 1983, data da introdução do trabalho da Direcção
Escolar, vem uma ligeira alusão histórica ao porto de Santa Iria.[13] Apenas,
Mas a Junta de
Freguesia da Ribeirinha não esqueceu Santa Iria. Com pouco ou nenhum poder,
nunca deixou de alertar para a importância daquele porto que ia morrendo aos
poucos. E fez o que pôde. Fazendo mesmo algumas intervenções e beneficiações. Por
exemplo, no tempo de Álvaro Feijó (1989-1997), não consegui apurar nas
presidências anteriores ‘cimentou-se a
rampa de varagem. Havia pequenos barcos no porto. Os Patacos da Ribeira Grande
tinham lá o seu. E outros mais. Também se fez o solário para banhistas.’[14]
Seguiu-se o Presidente da Junta, Salvador (1997-2001), que na Presidência da
Câmara de António Pedro Rebelo Costa, com apoio municipal reformulou as antigas
instalações sanitárias, consertou o caminho de acesso e as valas de captação de
águas fluviais.[15]
Em 2003, António
Furtado Ledo, auxiliado por José Carlos Garcia, que lhe iria suceder na
presidência da Junta e Luís Manuel da Câmara Teixeira declara a Nelson
Tavares da Revista Ribeira Grande que esta ‘tem
defendido, junto das instâncias governamentais, a parte restante do alargamento
e a pavimentação do caminho de acesso ao Porto de Santa Iria, prometidos,
segundo o Presidente da Junta, pelo Director Regional das Obras Públicas. Esta
via, actualmente em terra batida, é fundamental, tanto para a Freguesia como
para toda a Cidade da Ribeira Grande, dado que dá acesso ao único porto de pesca
da Cidade. Trata-se de um porto onde foi
melhorada a rampa de acesso, possibilitando um melhor varar dos barcos e revela
ser uma zona balnear muito apreciada por banhistas.’[16]
Em
2006, na sequência de outros registos, havia fotografado o porto e a sua envolvente.
Parecia tudo como dantes. Porém, neste mesmo ano, numa exposição que orientei
na Escola da Ribeirinha, ao pedir aos alunos que trouxessem de casa fotografias
da Ribeirinha, nenhum trouxe do porto de Santa Iria. Era a morte da memória
local sobre o porto. Mas era também a sua morte na memória da ilha e dos
Açores. Em 2008, numa altura em que o mapa dos portos e marinas dos Açores
estava a ser, graças à intervenção do Governo da Região, completamente
transformado, uma luxuosa obra bilingue omite por completo os portos das
Capelas e de Santa Iria, na costa Norte. E tinha obrigação de o fazer.[17]
Em 2013, outra luxuosa obra, patrocinada pelos Portos dos Açores, tratando da
história dos portos de Ponta Delgada, deixa de fora o porto de Santa Iria e os
demais da ilha.[18]
Esquecer?
Nunca. Poderá levar anos a fio, mas, para quem conheça esta Terra, a chama
mantem-se acesa. Em relação à rua que dá acesso ao porto de Santa Iria e ao
porto em si mesmo, muito aconteceu de bom e de mau durante os catorze anos
(2003-2017) de José Carlos Garcia à frente da Junta. Em 2008 ou em 2009, o
acesso ao porto é interditado. Causa: uma derrocada. Talvez em 2011, a
Secretaria Regional asfalta e alarga alguns pontos do troço que vai do final da
rua do Porto ao início da descida para o porto de Santa Iria.[19] A
Junta, em Agosto daquele ano de 2011, agora que o caminho está asfaltado, não
descansa, e relembra uma promessa de há quatro anos ainda não cumprida pelo
Governo Regional: ‘obras no porto de Santa Iria.’ José Carlos Garcia diz ainda que ´o acesso ao porto está interdito há mais de um ano por razões de
segurança na sequência de uma derrocada.’ Diga-se que o Governo e a Câmara
eram do Partido Socialista e a Junta era do PSD. Há quem diga que isso é
relevante, outros, porém, dizem que não. Que acham?
Um jornal em 2013, ao mesmo tempo que
divulgava um veemente apelo, ‘dada a
instabilidade do local, o Executivo apela para a sua não utilização e informa
que será colocada sinalização indicativa nos próximos dias,’ apregoava uma
esperança de solução: um projecto. O porto, esclarecia o jornal, fora ‘afetado pelas tempestades do último inverno,
que originaram o agravamento das condições de usufruto daquela zona, que se
tornaram incontestavelmente perigosas para o uso balnear.’[20]
A luz ao fundo do túnel, surgia nas
linhas seguintes do mesmo periódico: ‘De
acordo com a Carta Regional de Obras Públicas, o Porto de Santa Iria tem a sua
recuperação prevista para o primeiro semestre de 2015. Até lá, será feito o
projeto de execução para a intervenção, que será apresentado durante o ano de
2014.’[21]
Em 2017, dois anos após a promessa de
início da obra, será que havia projecto ou obra que se visse? Um vídeo
mostra-nos as ‘arribas do porto de Santa
Iria em risco de desmoronar.’ O
Presidente da Junta garante para as câmaras da RTP/Açores ter alertado ‘para a instabilidade das arribas e pede uma
intervenção na zona.’ Era imperioso proteger ‘a zona do porto de Santa Iria que,
apesar de interdito,’ continuava ‘a registar a frequência de muita
gente.’ E esclarece de forma clara: ‘A intervenção naquela espaço já esteve
agendada várias vezes pelo governo, mas tem sido sempre adiada.’[22]
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
Mário
Moura
[1] Cf. USDUAÇ, Costa, Francisco Carreiro
da, O sortilégio da Ribeira Grande, alocução lida aos microfones do Emissor
Regional dos Açores, Cf. Transcrição de Delfina Mota, 30 de Junho de 1967.
[2] D.S. [Daniel de
Sá], O mar e a terra de mãos dadas fizeram Rabo de Peixe, Inquérito do Açores às Juntas de Freguesia, Açores, Ponta
Delgada, 10 de Março de 1968, pp.1,7, 9.
[3] D.S. [Daniel de Sá], D.S. [Daniel
de Sá], Vontade e bom gosto. Ribeirinha, Inquérito
do Açores às Juntas de Freguesia, Açores, Ponta Delgada, 24 de Março de
1968, p. 7.
[4] D.S. [Daniel de Sá], Porto Formoso – Merecendo o nome, merece
também mais, Inquérito do Açores às Juntas de Freguesia, Açores, Ponta
Delgada, 14 de Fevereiro de 1968, pp.1,3.
[5] Silva, Ezequiel Moreira da, Coisas da Ribeira Grande. O porto de Santa Iria, Correio dos Açores, Ponta Delgada, 10 de Fevereiro de 2013, p. 13.
[6] Testemunho de
José António Lima, 30 de Outubro de 2021.
[7] Testemunho de Laureano Almeida, 31 de Outubro de 2021.
[8] Testemunho de Dinarte Ferreira Miranda, 31 de Outubro de 2021. É possível que haja registo de outros guardas anteriores no Arquivo da Alfândega de Ponta Delgada ou no da GNR. Caso tenham sobrevivido ao tempo e à moda do ‘eliminar.’
[9] AMRG, Sessão de
3 de Janeiro de 1979, Actas da Vereação, Livro n.º 98, 1978-1979, Volume 1, fl.
10v.
[10] Testemunho de
Maria Gorretti Pereira, Março de 2021.
[11] AMRG, Sessão de
22 de Fevereiro de 1980, Actas da Vereação, Livro n.º 99, 1979 -1980, Volume 1,
fl. 186 v.
[12] O aparecimento
dum cadáver duma criança no Porto de Santa Iria em 11 de Julho de 1956,
Agostinho, Padre Artur Pacheco Agostinho, Livro do Tombo da Ribeirinha, Volume
1, Data da Nota de Abertura: 26 de Novembro de 1987, pp. 59 v, 60 v; São quatro os livros do Tombo da Ribeirinha, organizados pelo Padre
Artur Agostinho, seguindo as datas das Notas de Abertura, entre Novembro de
1987 e Março de 1993.[12] Arquivo Paroquial
da Igreja do Santíssimo Salvador do Mundo, Ribeirinha, Ribeira Grande,
Agostinho, Padre Artur Pacheco Agostinho, Livro do Tombo da Ribeirinha, Volume
1, Data da Nota de Abertura: 26 de Novembro de 1987; Volume 2, Data da Nota de
Abertura: 12 de Novembro de 1988; Volume 3, Data da Nota de Abertura: 15 de
Dezembro de 1989; Livro do Tombo da Ribeirinha, Volume 4, Data da Nota de
Abertura: 30 de Março de 1993.Estão todos
manuscritos, porém, o segundo volume foi passado à máquina.[12]
Foi
feito pelo Sr. Eugénio Salvador. Dado o
seu manifesto interesse, aconselha-se a sua publicação.
[13][nota explicativa
de Rubens de Almeida Pavão], ‘Apontamento
Histórico Etnográfico de S. Miguel e Santa Maria,’ II Volume, Direcção
Escolar de Ponta Delgada, Publicação: Ponta Delgada,
1982, pp. 342-343.
[14] Testemunho de Álvaro Feijó, 30 de Outubro de 2021.
[15] Testemunho de
Eugénio Salvador, 30 de Outubro de 2021.
[16] Tavares, Nelson, Freguesia da Ribeirinha, Revista
Ribeira Grande, n.º 9, Dezembro de 2003, pp. 11, 12.
[17] Vieira, João A.
Gomes, O Homem e o Mar: Portos e marinas
do arquipélago dos Açores: passado, presente e futuro, Medialand Limitada,
Lisboa, 2008
[18] Dias, Fátima
Sequeira Dias, O porto de Ponta Delgada:
da vontade à concretização, Portos dos Açores, 2013.
[19] Testemunho de
José Carlos Garcia, 30 de Outubro de 2021.
[20]
Açoriano Oriental, Ponta Delgada, 4 de Julho de 2013
[21] Açoriano
Oriental, Ponta Delgada, 4 de Julho de 2013
[22] https://www.rtp.pt/acores/local/arribas-do-porto-de-santa-iria-em-risco-de-desmoronar-video_53735
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