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São Miguel não é só Ponta Delgada

(Porto de Santa Iria – XV)

Sou português dos Açores e micaelense da cidade da Ribeira Grande. Tenho raízes familiares espalhadas por toda a Ilha de São Miguel, pela ilha do Faial e pela do Pico. No continente, sou de Soure e da Batalha. A partir daqui, sem despir a camisola de historiador, envergo a camisola de cidadão. Antecipo-vos que vou ser duro. Mas leal. O meu amigo Francisco Maduro-Dias, com quem de vez em quando toco no assunto da Açorianidade, vem há muito repetindo, de forma certeira, que os Açores mais do que nove ilhas, são nove mundos diferentes.[1] Que devemos respeitar. Concordo e bato palmas, apenas acrescentando uma correcção: vista de fora, São Miguel é Ponta Delgada e, no entanto, apesar de Ponta Delgada, a auto-proclamada Capital da Ilha e dos Açores, pôr e dispor da Ilha, a ilha é muito mais ilha do que Ponta Delgada quer que a Ilha seja. Acreditem que a ilha e os Açores perdem com isso: muito mesmo, pois o triângulo de desenvolvimento da ilha sempre morou além da Avenida do Infante em Vila Franca, Ribeira Grande e Ponta Delgada. E mais digo: os pais desta Autonomia não estão isentos de culpa.

 

Antes, a terminar a parte mais histórica. O que se pode concluir desta achega histórica sobre o porto de Santa Iria? Para nos aproximarmos de uma narrativa mais fidedigna da História da doca artificial de Ponta Delgada (que acabou por ser o porto da Ilha), é preciso estudar as Histórias dos portos de Vila Franca do Campo, Capelas e Santa Iria. De outra forma, ter-se-á uma visão parcial. Pior: tendenciosa.

Vamos ao olhar de cidadão. Quem se der ao trabalho de consultar os dois ou três últimos Orçamentos do anterior Governo Regional, verá que houve uma verba destinada a um projecto de Santa Iria. Onde está? Não está: foi sendo empurrada de um orçamento para outro. Explicação? Em 2018, já no tempo do Presidente Marco Furtado, o jornal Correio dos Açores arrancou uma explicação aos responsáveis. Vejamos: ‘Em resposta às questões colocadas pelo nosso jornal à Direcção Regional dos Assuntos do Mar, a propósito da incapacidade financeira do Governo para proceder à reparação do porto de Santa Iria, na freguesia da Ribeirinha, o Executivo açoriano admitiu que as obras em questão não são prioridade para o ano de 2018.’[2]

Onde parara a verba? Voara para outras paragens? Para onde? Vejamos: ‘as limitações orçamentais associadas aos quase 1000 quilómetros de costa do arquipélago obrigam a uma definição criteriosa das prioridades de investimento,’ situação que se verificou aquando da intervenção no Porto de Rabo de Peixe, considerada ‘prioritária por estar em causa a segurança dos residentes da Rua de S. Sebastião e dos respectivos imóveis,’ e que ‘quando se verificou a queda de uma pessoa nesse local, que resultou no seu falecimento, já estava em curso o processo com vista à realização da obra de protecção costeira.’

Ainda assim, as eleições regionais não andariam muito longe, reafirma uma verdade já sabida: a instabilidade das falésias e a insegurança do local. O tal servidor público, decerto não temeria uma qualquer acção popular contra o governo, pois, estaria ao corrente de haver poucas ou nenhumas possibilidades legais de sucesso. Salienta que, por tal e tais, fora feito em 2014 ‘um projecto de intervenção (…), que poderá, no futuro, ser alvo de uma revisão uma vez que “já passaram três anos desde a sua conclusão.’ O projecto em causa previa, então, ‘a consolidação das falésias de ambos os lados, bem como a recuperação do porto e das infra-estruturas adjacentes”, sendo este um investimento que, a ser realizado nos parâmetros estabelecidos pelo projecto de 2014, rondaria os 350 mil euros.’

Perante este tão grande aperto dos fracos cofres da Região, a pobre Junta de Freguesia da Ribeirinha quis ajudar: ‘uma petição dirigida ao Governo Regional para que avancem as obras.’ Ao mesmo tempo, ‘tentou (…) contornar esta falta de verbas do Governo Regional,’ sugerindo ‘à Direcção Regional dos Assuntos do Mar que a Câmara Municipal da Ribeira Grande avançasse com a verba necessária, desde que fosse no futuro reembolsada através de fundos comunitários.’[3] Que resposta teve a Junta de Freguesia da Ribeirinha? Se houve, desconheço.

Entretanto, mudou o Governo. Houve uma promessa eleitoral (pública e escrita) de quem está agora à frente do Governo. E agora Porto de Santa Iria? Esperem aí, afinal há plano do novo executivo, ou melhor ideias para um plano; acreditem ou não, descobri-o agora mesmo (em Novembro) a circular pelas imensas estradas do ‘google.’ Diz: O projeto deve estar concluído até final deste ano [2021?].’ Agora é que vai ser? Não cantem ainda de galo, leia-se com atenção: ‘com previsão de execução da obra assim que o próximo Quadro Comunitário de Apoio estiver disponível [quando ao certo?], num valor de investimento de cerca de 700 mil euros,’ adiantou o Diretor Regional. Uma fortuna, Senhor Santíssimo Salvador do Mundo da Ribeirinha!!

A primeira marina de Ponta Delgada, conhecida oficialmente por Marina Pero de Teive, foi inaugurada em Dezembro de 1993. A segunda, seria em 2008, as Portas do Mar. Quanto custaram aos cofres da Região as obras de 1993 e de 2008 no litoral da cidade de Ponta Delgada, na Ilha de São Miguel? Compare-se o montante empregue em todas as obras feitas nos portos e ancoradouros na ilha de São Miguel com o empregue na primeira marina e nas Portas do Mar. Que concluem? Se Vila Franca do Campo, a primeira capital da Ilha e onde se deveria ter construído a doca artificial da ilha, quis não perder a passada, teve de recorrer a um projecto da Câmara Municipal. Com esforço, com verbas comunitárias, inaugurou valentemente a sua marina a 17 de Junho de 2001.

E o que se espera vir a fazer no Porto de Santa Iria é, leiam com atenção: ‘A obra prevista inclui a reconstrução do terrapleno e da proteção aderente, a norte, a consolidação da muralha de pedra existente, a sul, a reconstrução do património, com a consolidação e reconstrução da rampa de pedra existente, e a proteção de pessoas e bens no acesso ao porto, com a criação de uma vala de dejeção de material da arriba bem como a construção de proteções em betão armado (em túnel), na zona mais crítica.’[4] Será desta? Não haverá outra urgência?

E agora? Ainda assim, o porto teima em não cair no esquecimento de certas pessoas influentes da terra. Em 2012, um dos sonhos futuros do Padre Edmundo Pacheco era de (...) que o porto de Santa Iria fosse aberto ao comércio, adaptando-se ao local uma doca flutuante.’[5] Afinal de contas, o sonho de sempre da Ribeira Grande.

Em inícios de 2013, Ezequiel Moreira da Silva, Júnior, após descrever alguns trechos da sua História, como a querer sacudir marasmos, atira ao presente uma lufada de irónica verdade: ‘Por tudo isso se comprova que aquele porto de Santa Iria nem sempre foi aquilo que agora é!’[6]

Em 2017, Álvaro Feijó que, além de ter sido Presidente da Junta de Freguesia da Ribeirinha e da Casa do Povo, da Banda de Música, e de muitas outras mil e uma intervenções cívicas, políticas e religiosas, na sua monografia da Ribeirinha, trata e ilustra carinhosamente a história conhecida do porto de Santa Iria.[7] Não se esqueceria de o incluir, em 2021, na sua auto-biografia.[8] Aliás, indo mais longe, aproveitando a ocasião, manda convite para o lançamento daquelas obras, escreve uma carta ao então Presidente Vasco Cordeiro[9] e outra ao actual Presidente José Manuel Bolieiro, onde acrescenta: Para clarificar o grande interesse e o amor que o Povo da Ribeirinha, e não só, tem por aquele lugar [Porto de Santa Iria] e como forma de reforçar o Poder Local que se debate intensamente para conseguir os melhoramentos do local que se deve cuidar e considerar como Património Natural e Histórico dos Açores.’[10]

Em 2019, António Pedro Costa, Presidente em três mandatos da Câmara Municipal da Ribeira Grande, que contribuíra para aquele porto, filho de gente do mar de Rabo de Peixe, grato pelo abrigo que o porto prestou em horas de aflição, que colabora assiduamente com o Correio dos Açores, ao visitar ‘depois de alguns anos (…) o Porto de Santa Iria,’ vendo o seu estado de abandono, reconhecendo o potencial turístico do local, subscreve e recomenda uma subscrição pública ‘endereçada ao Governo Regional’ que circula ‘na internet e que reivindica obras urgentes no porto de Santa Iria.’ Diz mesmo, que a petição conta ‘já com muitos signatários.’ Conclui fazendo votos para que esta ‘possa constituir um alerta para a dinamização daquele espaço.’[11]

Hoje, Outubro de 2021, o porto e a via que lhe dá acesso, continuam a deteriorar-se. No entanto, reconhece-se o empenho porfiado de alguns autarcas e de pessoas da terra na tentativa de alterar a situação. E de alguma obra. Obra que terá tido curta vida: o mar e o vandalismo deram mãos para destruir o que fora feito.

Em relação aos planos do anterior e do actual governo, quis dialogar com quem sabe mais do que eu. Junto a profissionais ligados à engenharia de portos, perguntei, afinal o que é isso? Será uma requalificação? Resposta: conserto do que já existe e protecção da via de acesso tal como foi feito em outras partes da ilha. Faça-se o que já está previsto e logo se vê? Em minha opinião, sim, aproveite-se já de imediato o que pretendem fazer, a protecção do acesso ao porto e do porto em si mesmo, ‘mais vale um pássaro na mão do que dois a voar.’ Mas, não se fique por aí, ‘não se perca as passadas,’ avance-se também de imediato com propostas para o uso do porto de Santa Iria no âmbito da chamada economia do mar.

 

Que propostas poderíamos considerar para aproveitar em pleno aquele porto? Em 2008, no auge do aproveitamento de portos nos Açores, um Professor Auxiliar do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, no prefácio ao livro de João Vieira, faz algumas bem pertinentes: ‘A actividade económica dos Açores está a crescer e a diversificar-se. Às antigas valências dos portos (essencialmente no tráfego de mercadorias, passageiros e pescas) juntam-se outras novas, na sequência do crescimento das actividades de lazer, como é o caso do turismo relacionado com as actividades náuticas. Os navios de cruzeiro, os desportos náuticos, as actividades de eco-turismo naútico são hoje uma realidade com importância crescente, criando novas oportunidades económicas, que urge aproveitar.’[12]

 

Será que ainda se aplicará em 2021? Será que alguma coisa disso poderia ser aplicada ao porto de Santa Iria? Estou certo que sim.

 

Lugar das Areias – Rabo de Peixe

Mário Moura

 

 



[1] Maduro-Dias, Francisco, O Bispo, o Governo, a Gente e a Açorianidade, Açoriano Oriental, Ponta Delgada, 6 de Novembro de 2021, p. 13.

[2] Correio dos Açores, Ponta Delgada, 2 de Fevereiro de 2018

[3] Correio dos Açores, Ponta Delgada, 2 de Fevereiro de 2018

[5] Gaudêncio, Alexandre, Padre Edmundo Pacheco. Histórias de um Ribeiragrandense, Câmara Municipal da Ribeira Grande, 2012, p. 233.

[6] Silva, Ezequiel Moreira da, Coisas da Ribeira Grande. O porto de Santa Iria, Correio dos Açores, Ponta Delgada, 10 de Fevereiro de 2013, p. 13.

[7] Feijó, Álvaro, Ribeirinha: uma viagem no tempo, 2017, pp. 31-34, 37-38.

[8] Feijó, Álvaro, Valores da vida, 2021, p. 147.

[9] Carta de Álvaro Feijó a Vasco Cordeiro, Presidente do Governo Regional dos Açores, 2 de Fevereiro de 2018.

[10] Carta de Álvaro Feijó a José Manuel Bolieiro, Presidente do Governo Regional dos Açores, 6 de Novembro de 2021.

[11] Costa, António Pedro Rebelo, Porto de Santa Iria, espaço de memória colectiva, Correio dos Açores, Ponta Delgada, 3 de Setembro de 2019

[12] Vieira, João A. Gomes, O Homem e o Mar: Portos e marinas do arquipélago dos Açores: passado, presente e futuro, Medialand Limitada, Lisboa, 2008, p. 13.

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