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Uns comem a carne, outros roem os ossos? Uma questão de tostões e milhões

(Porto de Santa Iria – XII)

Se há três décadas houve quem concluísse que o investimento no porto de Santa Iria foi como como que atirar dinheiro à água, passadas três décadas ainda mais se reforça aquela convicção. Apesar de tendenciosa e parcial, como julgo ter vindo a provar, em 1896, na coluna do seu jornal A Persuasão a que deu o nome de Escavações, Supico, talvez a desviar as atenções do colossal investimento em Ponta Delgada, considerou a preferência de Santa Iria em detrimento das Capelas, como uma má opção. Avisara-o tipo profeta do Apocalipse: ‘O Tempo vai dar razão aos partidários das Capelas, mas nunca mais houve meios para se despenderem como conviria para se utilizar a magnífica bacia que ali há.[1] Apesar de incluir nas Escavações notícias de desperdícios, fruto de incompetência dos engenheiros, sem comparar com os naturais desperdícios do Porto Artificial de Ponta Delgada (que fez derrapar as verbas iniciais vezes sem conta não só devido aos temporais mas motivado por clamorosos erros técnicos), de engenheiros nacionais e estrangeiros pagos a peso de ouro, diz do pobremente concebido, mal executado e incompleto porto de Santa Iria: ‘O resultado foi a perda completa das grandes somas que naquela obra se despenderam. Poucos navios ali foram, e os que lá chegaram a fundear não mais quiseram repetir a experiência; tão arriscada consideravam a navegação para aquela parte da costa. Demais a mais o novo porto ficava a muito grande distância da Ribeira Grande, o que lhe diminuía consideravelmente a utilidade.’[2]

E, no entanto, poderia ter comparado os montantes pagos em salários nas outras obras da Junta Geral. Por exemplo, numa semana de Abril de 1858. Vemos que o número de braços empregues na obra de Santa Iria e o que auferiram, representava uma pequena porção do despendido na construção da Penitenciária ou em estradas. Em termos de braços empregues, os 20 homens que trabalhavam em Santa Iria, representavam 2% do total de 866, enquanto os 160 que trabalharam na Penitenciária, atingiam os 18%. Quanto a verbas, a de Santa Iria, representava 3% do total para 26% do montante pago para a obra da Penitenciária.[3] É claro que pode ter sido diferente em semanas diferentes.

A culpa foi de quem? Dos engenheiros incompetentes? Para tirar tudo isso a limpo, consulte-se com calma, como fiz, e leia-se os relatórios, como também fiz (de máscara em tempos de coronavírus), sobretudo no que vem em Adolfo Loureiro.

Quem da Ribeira Grande, na década de noventa, poderia rebater a opinião de Supico? Aníbal Gomes Ferreira Cabido. Por que não o fez? Morava em Ponta Delgada e a Ribeira Grande já nada lhe dizia? Quem poderia na Ribeira Grande rebater a opinião de Supico na década de noventa? José Maria da Câmara Vasconcelos e António Júlio de Melo haviam falecido. A Associação para o Desenvolvimento da Ribeira Grande desaparecera. O jornal ‘O Norte’ (1895-1903), pela pena do seu Director e Editor, o Cónego Cristiano de Jesus Borges (n. 1864 Lagoa – f. 1944 Ribeira Grande), era uma voz respeitada e temida. Tal como José Maria da Câmara Vasconcelos, Cristiano nascera na Lagoa, mas radicara-se na Ribeira Grande.[4] Chega em 1890, em 1904 vai dar aulas no Seminário de Angra. Emigra para s Estados Unidos da América do Norte mas regressa à Ribeira Grande em 1920.

Sinal mais do que evidente de que a segunda economia da Ilha precisava como pão para a boca de uma ligação por via marítima, vem em 1896, em O Norte, do Cónego Cristiano. Cristiana volta aí à carga com o varadouro do Castelo. Por que razão se insistia com um varadouro mais próxima do centro da Vila e não em Santa Iria? É provável que a concretização de um porto capaz em Santa Iria tivesse ficado de parte pelas derrapagens do porto artificial de Ponta Delgada. Assim ou não, parece que aquele varadouro se destinaria a receber os cereais do Norte da Ilha para enviá-los para Ponta Delgada via Caloura. O Preto no Branco, jornal de Ponta Delgada, dá conta e comenta as intenções de um colega: Noticia um colega que a Câmara da Ribeira Grande pretende abrir uma estrada para a Serra de Água de Pau. Destarte certamente que a viagem deixará de se fazer pela Praia, cujo itinerário, além de mais longo, é também mais difícil e incómodo.’ E sugere: ‘Salvo melhor juízo, parecia-nos conveniente que a sobredita estrada se prolongasse até Água de Pau. Assim ficaria a Ribeira Grande em condições de transportar em barco para a cidade, por via da Caloura, os seus cereais e os do Norte da Ilha.’ O jornal da Ribeira Grande, talvez O Norte, do cónego Cristiano, referido pelo colega Preto no Branco, adiantava alguns pormenores: ‘A mesma folha assegura também que a Junta Geral trata de concluir a estrada entre Ponta Delgada e Ribeira Grande, que segue o trilho da canada do Feitor.’[5] Ou seja, e vemos isso em 1899, a ligação que hoje se designa por Estrada Velha da Ribeira Grande. No entanto, a ideia dos responsáveis do Distrito, em Ponta Delgada, era unir a ilha ao Porto Artificial de Ponta Delgada e a Ponta Delgada por comboio.[6]

Forte defensor dos interesses da Ribeira Grande, o Cónego Cristiano é o escolhido pela Câmara da Ribeira Grande para escrever sobre a Ribeira Grande no Álbum Açoriano, que sai em 1903, dedicado ao monarca que aqui estivera no verão de 1901. E aí Cristiano, repare-se que seria algo para os ouvidos reais ouvirem ou lerem, bem como a Corte e os Representantes da Nação, escreve preto no branco que falta um porto à Ribeira Grande para ser tão importante como Ponta Delgada. Foi assim que escreveu: ‘(…) A Vila da Ribeira Grande, a qual só poderá queixar-se da falta de um porto abrigado; pois que, se o possuísse, era ela que estava destinada de há muito a ser a capital da Ilha de São Miguel.’[7] A ideia do porto de abrigo e a sua importância não fora esquecida. Quatro anos antes, o Cónego Cristiano concordara com a decisão da Câmara em construir nas proximidades do Castelo ‘um varadouro na praia desta Vila.’ Alegava em sua defesa ser desnecessário ‘demonstrar a importância d'esta obra, conhecendo-se os grandes serviços que virá a prestar à Ribeira Grande.’[8] Seria um varadouro em apoio ao porto de Santa Iria? Não se sabe.

O que se sabe é que Aires Jácome Correia, Conde de Jácome Correia, senhor do Lameiro, dirigiu uma carta à Câmara em 13 de Agosto de 1912, na qual se oferece por sua conta fazer melhoramentos no Porto de Santa Iria. A esta generosidade do Marquês, a Câmara reunida a 17, apenas dá conta da sua impotência, nos seguintes termos: ‘(…) A comissão sente muito não poder aceitar a generosa dádiva de Sua Excelência, para os referidos melhoramentos, por esses serviços não serem da sua competência mas sim da Junta Geral deste Distrito, pelo Decreto de doze de Março de 1895.[9] Ou seja, a Junta saída da Autonomia.

Ora o Marquês, que saía ao pai na sua generosidade e não ao tio José Jácome Correia, que mantivera graves desavenças com a Câmara por causa da água, na sua missiva, traça o quadro real daquele porto em 1912, dizia ele: ‘que está hoje aniquilado pela acção continuada do tempo – digo do mar, a que não foi oposte melhoras e arranjos à medida que tivessem sido necessários, nem porto que lhes oferecesse todas as comodidades, com o seu farolim, boias de amarração, varadouros, cais de embarque, recintos (…) de retalhamento das baleias apanhadas, fornos higienicamente instalados de derretimentos dos toucinhos das baleias e toninhas etc., para que eles não só tenham toda a satisfação com a pesca, como a segurança que é devida à classe a que pertencem.’ E oferecia-se para mudar a situação, pedindo a Caetano da Silva Moniz, Presidente da Comissão Municipal, parente de Caetano Moniz de Vasconcelos, Governador do Distrito,[10] que se encarregasse ‘de fazer proceder ao orçamento dos referidos trabalhos para que a minhas expensas se começar imediatamente, desejando ser ouvido em qualquer discussão e também nas pretensões dos interessados, caso desejem alguma obra excessivamente dispendiosa.’[11] Em suma, a Junta não fazia nem deixava que se fizesse?

Quanto a obras, o que se pode dizer é que, em 1936, 14 anos depois da oferta de Aires Jácome Correia, e setenta anos após o aviso de obras necessárias lançado por Francisco Maria Supico, Fábio Moniz de Vasconcelos, parente de Caetano da Silva Moniz, propõe a construção de um porto de pesca para a Ribeira Grande, num local, entre o miradouro de Santa Luzia e a ponta do Cintrão, visto que, e cito: ‘o porto de Santa Iria que, abandonado há muitos anos pelos poderes públicos, se acha quase destruído, não servindo senão para a pesca do sargo e do carapau. Na verdade, o porto não é lá grande coisa; mas, enfim, servia.[12] Fábio era sobrinho-bisneto de José Maria da Câmara de Vasconcelos. E já agora de Madre Margarida Isabel do Apocalipse, autora do Arcano Místico. Fábio foi o proprietário de A Razão, o último jornal que a Ribeira Grande publicou na 1.ª metade do século XX, encerrado dois anos antes daquele artigo de opinião, em 1934. Fora Delegado Concelhio na I República, em diversas ocasiões.[13] Terá sido Presidente dos Bombeiros Voluntários da Ribeira Grande em 1917.[14]

Mário Moura

Lugar das Areias – Rabo de Peixe

 



[1] Supico, Francisco Maria, Escavações, Volume I, ICPD, 1995, p. 97. Cf. O Cartista dos Açores, Ponta Delgada, 11 de Abril de 1846

[2] Supico, Francisco Maria, Escavações, Volume I, ICPD, 1995, p. 97. Cf. O Cartista dos Açores, Ponta Delgada, 11 de Abril de 1846

[3]A Estrela Oriental, Ribeira Grande, n.º 100, 2 de Maio de 1858, fl. 3: ‘Durante a semana que findou a 24 de Abril de 1858, gastaram-se por esta Repartição [Obras Públicas. Junta Geral] 907$870 reis empregando-se 866 pessoas nas obras seguintes: Penitenciária [Do Distrito, construindo-se em Ponta Delgada] 238$390 reis empregando-se 160 pessoas. Santa Iria 33$370, empregando-se 20 obreiros; estrada da maia ao Nordeste 421$670 reis, empregando-se 483 operários; Estrada de Vila Franca à Povoação reis 106$400; ocupando 105 empregados; Estrada circulante do Oeste reis 64$020, empregando-se 58 pessoas; Conservação de estradas 53$920 reis empregando 40 jornaleiros.’ 

[4] Teodoro, Hermano, De Asilo dos rapazes a Centro de Apoio Social e Acolhimento – 125 anos de Vida, Edição CASA, 2005, pp.37-46.

[5] O Preto no Branco, Ponta Delgada, 7 de Maio de 1896, p. 76.

[6] AMRG, Sessão de 19 de Julho de 1899, Livro N.º 49 (1898-1900), fl. 94 v.: ‘Leu-se um ofício do Senhor Administrador do Concelho em que por Ordem do Excelentíssimo Governador Civil, comunicou à Câmara ter sido aprovado pela Câmara alta, o projecto de lei que autoriza a Junta Geral do Distrito a construir um caminho-de-ferro nesta Ilha.’

AMRG, Sessão de 19 de Julho de 1899, Livro N.º 49 (1898-1900), fl. 94 v.

[7] Borges, Cónego Cristiano de Jesus, A Vila da Ribeira Grande, in Álbum Açoreano, 1903, p. 135.

[8] O Norte, Ribeira Grande, 18 de Abril de 1896, p. 2.

[9] Carta de Aires Jácome Correia, 13 de Agosto de 1912, à Câmara da Ribeira Grande, cf. Sessão de 17 de Agosto de 1912, Livro n.º 53 (1910-1913), fl.124.

[10] Foi Governador de 4 de Maio de 1911 a 18 de Janeiro de 1913.

[11] Carta de Aires Jácome Correia, 13 de Agosto de 1912, à Câmara da Ribeira Grande, cf. Sessão de 17 de Agosto de 1912, Livro n.º 53 (1910-1913), fls. 123 v – 124.

[12] Correio dos Açores, Ponta Delgada, 25 de Julho de 1936.

[13] Correio dos Açores, Ponta Delgada, 4 de Fevereiro de 1926: ‘Está novamente exercendo as funções de Delegado do Governo neste Concelho o nosso amigo Sr. Fábio Moniz de Vasconcelos.’

[14] Silva, Armindo Moreira da, 120 anos ao serviço da comunidade, Ribeira Grande, 1995, p. 251: ‘Também, de acordo com o constante na respectiva acta, em 1 de Março de q917, Fábio Moniz de Vasconcelos apresentou-se na Câmara Municipal da Ribeira Grande na qualidade de Presidente da Corporação.

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