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O Porto de Santa Iria II

 

 

Para aquela obra, foi ‘acordado entre todos,’ vereação e corregedor, melhorar o acesso ao porto de Santa Iria fazendo-se ‘(…) o caminho deste porto de Santa Eiria, cortando o pico da fajã de cima direito ao dito porto e varadouro dos batéis, para se poder carregar trigo e outras coisas nele, pois não se sofria a descida pela rocha e caminho de pé.’ O porto de Santa Iria, que já existia antes deste contrato de 1525, como se depreende, chegou a chamar-se porto do Macedo ‘por respeito do Corregedor António de Macedo que procurou que se fizesse[1] aquele melhoramento. O contrato para a construção do caminho de acesso ao porto de Santa Iria/Macedo, foi assinado ‘na Casa do Concelho da Vila da Ribeira Grande,’ a 20 de Maio de 1525. Presentes ao acto, além do Corregedor Régio, o licenciado António de Macedo, estavam, repare-se com atenção nos nomes, ‘António Carneiro [cunhado de Rui Tavares], Diogo de Sousa, Juízes Ordinários, e Fernando Anes e Álvaro de Horta [filho de João de Horta], vereadores, e Álvaro Gonçalves, procurador do Concelho, e João de Abrantes e Álvaro Afonso, procuradores dos misteres, e muitos homens da governança da dita vila.’[2] Portanto, dezassete anos depois da primeira vereação, havia continuidade de membros da governança, o que, pode explicar, a continuidade de projectos.

Exemplo de que por ali passavam navios, temos, entre 11 e 14 de Janeiro de 1555, a notícia de um naufrágio. Não é explícito quanto ao ponto concreto do naufrágio, mas é seguramente na Ribeira Grande, ou melhor, na costa Norte perto da Vila da Ribeira Grande. Trata-se de um navio castelhano (a acta não refere o tipo de embarcação, apenas um navio), tendo-se salvo sete tripulantes. A Câmara, em reunião do dia 14 de Janeiro, vota uma verba destinada a auxiliar o seu regresso a Castela.[3] Que significa esse naufrágio? Que o mar do Norte era pior do que o do Sul? Não. Que aquele navio foi o único que por ali passou? Não. Pela maneira como a vereação resolveu o assunto, até parece que era habitual passar por ali navios. Incluídos, navios de outras nações.

 

Dando um enorme salto no tempo, ‘Em 8 de Junho de 1664, em Domingo da Trindade veio aportar em uma caravela nova, em sua primeira viagem, mestre Miguel Gomes Falcato, defronte do moinho do porto, com 24 dias de viagem, acossada de temporal, o que sabendo o padre comissário Frei António de São José, que, então, era dos Terceiros, o que não pôde fazer, por ser já tarde e ventar muito para a desembarcar, o que no dia seguinte fez, acompanhado dos capitães Rodrigo da Câmara, Manuel Bicudo, Rui Tavares e o padre Francisco Nunes, e tanto que esteve em terra o caixão do Santo Cristo, logo que o vento se mudou ao norte a caravela se fez ao porto da cidade, onde ancorou terça-feira, desembarcando o Senhor no porto de Santa Iria.[4]

Que significa isso? Que continuava ser normal navios, no caso caravelas, aportarem a Santa Iria. Mais, que havia ligação por mar a Ponta Delgada. Em que casos? No caso das romarias à procura de indulgências, no caso de cargas específicas, como foi o caso do Santo Cristo Atado à Coluna, em casos de carregamentos de trigo e outros produtos vindos da Achada, falando apenas nos casos de nós conhecidos. Mais tarde veremos que se acrescentaria a pesca da baleia e a exportação da laranja.

E mais anos sobre os anteriores, vemos que outro tipo de gente demandava aos mares do Norte. Repare-se que, tirando o mês de Junho, os outros exemplos remetem para meses de Inverno, como é o caso deste exemplo seguinte. Em 22 de Janeiro de 1798, fora do ‘porto desta vila,’ seria Santa Iria ou não, talvez fosse ou do Forte da Estrela, surge à vista de terra ‘um bergantim de nação francesa (…) chegando bem perto de terra,’ que lança escaler e, após diversas peripécias, o comandante e alguns tripulantes conseguem meter pé em terra e permanecem na Vila um dia e meio, recolhendo-se ao navio com mantimentos.[5] Para quê esta referência? Simples. Dependendo do estado do tempo, a Ribeira Grande era acessível pelo mar.

Uma memória militar setecentista, de autor desconhecido, ao enumerar os ancoradouros da Ilha de São Miguel que carecem de maior vigilância, menciona, entre outros, os ‘(...) portinhos da Maia, Porto Formoso, Santa Iria e Capelas, que a impetuosidade do mar e o acidentado da costa tornam quase impraticáveis. Os três areais da Ribeira Grande comungam destas contrariedades.’[6]

 

Talvez em 1814, o engenheiro militar Francisco Borges da Silva, que faz um estudo, no qual defende um porto em Ponta Delgada, ao passar por lá, apenas diz: ‘(…) com descida bastantemente íngreme para o portinho de Santa Iria,’ e que este ‘é muito abrigado.’[7]

Ao contrário de Borges da Silva, que não destaca este troço da costa, em 1812/14, um inglês achou que o melhor local em toda a ilha para fazer um porto não seria em próximo do Cintrão ou em Vila Franca ou Ponta Delgada (o porto de Ponta Delgada arrancou em 1860’s) mas em Rabo de Peixe: ‘Em toda a Ilha de S. Miguel, este seria o único lugar viável para a construção de um bom porto comercial com profundidade suficiente para qualquer navio de carga que viesse da Europa ou da América.’ Como chegara lá? Continuemos a lê-lo: ‘Obtive estas informações por pessoas competentes na matéria porque eu próprio, nunca sondei.’[8]

 

Seria de Thomas Ashe?[9] Para sermos mais precisos, a obra é atribuída a Thomas Ashe, já que nela não figura o nome do seu autor. Terá vindo numa missão de observação, aliás, tal como Briant Barrett. Barrett e Ashe (chamemos-lhe assim) andaram pela ilha na mesma altura, Ashe tomou minuciosa nota de tudo. Acreditava que os britânicos poderiam aproveitar a Ilha melhor do que os Portugueses. Basta ler o excerto seguinte do título gigantesco: ‘(…) demonstrating the importance of these valuable islands to the British Empire, illustrated by maps and other engravings.’ Na costa norte da Ilha, enumera os portos de Rabo de Peixe, da Ribeirinha [de Santa Iria], e do Porto Formoso; na costa Sul, por seu turno, apenas o porto do Ilhéu [de Vila Franca].

 

Dava mais jeito aos barcos que iam e vinham da Inglaterra para a América tocar na costa Norte em vez da Costa Sul. Aliás, na Ilha, basta ver como funciona a relação dos pescadores de uma e outra costa: vão aonde o mar está bom. Mesmo na costa Sul, outro britânico, que assim a autoria, Captain Boid, e cujo título é deveras revelador. Na obra publicada em 1834, num mapa, sinaliza uma âncora em Ponta Delgada, significando o ancoradouro de então, em outro, traça planos detalhados para um futuro porto em Vila Franca, entre o Ilhéu e a Vila: ‘Townd and anchorage in Villa Franca from the Ilheo, with the proposed plan for rendering it na enclosed sheltered harbour.[10] Boid percorreu a ilha a cavalo em Junho de 1832. Porém, o porto da ilha seria construído em Ponta Delgada. Porquê? Entre 1811 e 1820, Borges da Silva elaborara um plano para um futuro porto de Ponta Delgada.[11] Seria a partir desta proposta que se iria pressionar o poder central para construir ali o porto da Ilha de São Miguel? Esta proposta vinha de trás?

 

Mário Moura

Lugar das Areias – Rabo de Peixe

 



[1] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro Quarto, IV Volume, Ponta Delgada, 1998, p. 186.

[2] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro Quarto, IV Volume, Ponta Delgada, 1998, p. 186.

[3] Pereira, António Santos, Ribeira Grande (S. Miguel – Açores) no século XVI. Vereações (1555-1578), Ribeira Grande, 2006, p. 3; Cf. AMRG, Livro de Vereações de 1555, fls. 4v-5: ‘desse os ditos quatrocentos réis para eles oficiais darem de esmola a sete homens que vieram a esta vila que perderam um navio para se repararem para irem para o reino de Castela por lá serem moradores e estarem despidos e muito mal tratados em risco de se perderem aos frios.’ Quem tratou da entrega, foi Roque Rodrigues.

[4] Monte Alverne, Frei Agostinho, Crónicas da Província de São João Evangelista das Ilhas dos Açores, ICPD, Ponta Delgada, 1961, p. 304.

[5] Atestado do capitão de ordenanças da Vila da Ribeira Grande; 1 de Fevereiro de 1798, Arquivo dos Açores, vol.10, Ponta Delgada, 1982, pp. 428-429.

[6] Meneses, Avelino de Freitas, Os Açores nas encruzilhadas de setecentos (1740-1770), I – Poderes e Instituições, Universidade dos Açores, 1993, p. 424 Cf. (BN (Lisboa), Códice 472, fls. 95-98, descrição costeira da ilha de S. Miguel, s/l, (século XVIII).

[7] Silva, Francisco Borges da (engenheiro), Notas e Estatísticas da Ilha de São Miguel, Princípios do século XIX, in A Revista Michaelense, S. Miguel, Açores, Ano II, N.º 5, Novembro de 1919, p. 485.

[8] Barrett, Briant, Relato da minha viagem aos Açores 1812-1814, Letras Lavadas, 2017, p. 159.

[9] [Thomas Ashe], History of the Azores or western islands containing an account of the government, laws religion. The manners, ceremonies, and character of the inhabitants: and demonstrating the importance of these valuable islands to the British Empire, illustrated by maps and other engravings, London, Printed for Sherwood, Neely, and Jones, Paternoster Row, 1813, p.188-195: ‘Having had to remain a few days at Ribeira Grande, I had an opportunity of discovering that  religion and love are the main and the leading articles which compose both the business and the amusement of the place.’

[10] By Captain Boid (Late of MMF Majesty’s navy, night of the most noble order of the tower and sword, corresponding member of the antiquarian society of Carn, author of travels through Sicily and the Lipari islands; and of a History of the various styles of architecture), A Description of the Azores or Western Islands. From personnel observation. Comprising remarks on their peculiarities, topographical, geological, statistical, and on their hitherto neglected condition, London, Bull and Churton, Holles Street, 1834.

[11] Costa, Ricardo Manuel Madruga da, Uma ideia de reforma para a ilha de S. Miguel em 1813, Projecto do capitão engenheiro Francisco Borges da Silva, Prova complementar à dissertação submetida a prova para a obtenção do grau de doutor em História, especialidade História Moderna, 2003; Martins, José Manuel Salgado, Os Açores, a guerra e as reformas de Francisco Borges da Silva nos finais do Antigo Regime, Dissertação de mestrado em História Insular e Atlântica - séc. XV a XX, apresentada à Universidade dos Açores em 2006: ‘Dedica uma particular atenção à construção de um porto em Ponta Delgada, sobre a qual enviou para a corte duas detalhadas memórias, reiterando o princípio de que a economia da ilha não se desenvolveria sem uma infra-estrutura portuária capaz. Volta a insistir nessa necessidade, apresentando um projecto de construção alternativo ao do tenente-coronel Michelloti.

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