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Ribeira Grande: Nascimento de uma Vila

(Biografia)

Como Frutuoso chegou lá? – II


Sabe-se pelos forais que chegaram até nós, que para tomar posse legal plena de um espaço, era preciso percorre-lo. Quanto ao espaço que até então pertencera a Vila Franca do Campo, os novos donos do novo espaço, no caso, os primeiros responsáveis da Ribeira Grande, terão ido percorrer a área que lhes cabia da légua em torno do Pelourinho. Fizeram-no ou depois de se haver escolhido os cinco primeiros autarcas da nova vila que iriam ‘reger e governar bem a república,’ daquele dia 3 de Abril de 1508 ao dia de São João do ano de 1509?[1]

Antes da festa, houve muito trabalho a fazer. Frutuoso não o diz, mas parece-nos provável que representantes dos três concelhos da ilha (Vila Franca, Ponta Delgada e Ribeira Grande), mais o capitão-do-donatário ou alguém por ele, terão ido percorrer o terreno. Fizeram-no, lanço a hipótese, as vezes necessárias para alcançar um acordo aceite por todas as partes interessadas. Era preciso medir e reconhecer o terreno da légua, negociando aqui e ali o que fosse necessário negociar. Representantes do concelho que iria ceder a légua ao novo Concelho, mais gente da Ribeira Grande, além dos vizinhos do Porto Formoso (a nascente) bem como os dos Fenais da Luz (a poente), auxiliados por medidores de terrenos, foram ver até onde chegava a légua.

Não se podia simplesmente medir sem atender a diversas circunstâncias, era preciso ter-se em conta o que acontecia naquele espaço concreto. Por exemplo, a extensão de propriedades já existentes: até onde iam além ou aquém da légua. O que fazer no caso de uma propriedade ir muito além da légua? Outros condicionantes, seriam os próprios da natureza do terreno: ribeiras, grotas, matos, caminhos. Se bem que diga respeito a divisões em propriedades de José do Canto no Pico Arde, no século XIX, no entanto, por não terem ocorrido mudanças drásticas do século XVI ao século XIX, no que concerne à identificação de terrenos/espaços, olhando para os terrenos do Pico Arde pode ser que se vislumbre o modo como terá sido demarcado o espaço Concelhio da Ribeira Grande em 1507. Segundo Pedro Borges, que explorou o arquivo de José do Canto, grotas, sebes naturais, valados, combros, ribeiras, matos, caminhos e servidões, serviam de limites aos terrenos.[2] Por conseguinte, terá havido necessidade de se proceder a acertos territoriais. Acertos que terão continuado posteriormente, entre outros, os que foram necessários fazer a partir de 1515 e de 1522 para o lado poente. Em 1515 com a criação do Concelho de Água de Pau e a adesão de freguesias do Norte da Ilha a Ponta Delgada e em 1522 com a criação do Concelho da Lagoa. Mesmo já no século XIX. Para os lados, nascente e sul também aconteceram vários acertos.

Antes de avançarmos, vamos ver como eram os terrenos medidos. Perguntei a quem sabe, que me esclareceu: ‘Relativamente à medição prática da légua, poderiam fazê-la por passos, ou por corda (de x unidades), ou ainda por tiro de besta (determinando previamente o número de tiros correspondente à légua).[3] Em outra nota, acrescentou: E também podiam usar varas... Mas, mais prático, eram os tiros, daí que o Gaspar Frutuoso os refira amiúde.’

Falando-se de Frutuoso, onde terá ele ido buscar a informação que nos transmite acerca dos limites concelhios da Ribeira Grande? Nunca será demais chamar a atenção para o limite do nosso conhecimento: o que sabemos sobre os limites da Ribeira Grande, chega-nos quase só através de Frutuoso. Quem poderia tê-lo informado? Ocorrem-nos vários suspeitos. Aqui vai um: o escrivão Roque Rodrigues. Rodrigues exercera o cargo pelo menos de 1539 a 1579.[4] Faleceu em 1582.[5] Roque Rodrigues, morador na vila da Ribeira Grande, que comprou o cargo a Gonçalo Gomes, por renúncia deste, em inícios de 1538, pode muito bem ter conhecido Lopo Ares, o primeiro escrivão da Ribeira Grande, ou conhecido quem o houvesse conhecido.[6] Portanto, tudo gente daquele tempo da marcação dos limites do novo Concelho.

A respeito dos testemunhos orais, a que Frutuoso recorre vezes sem conta, nota-se o carinho que tem pelas pessoas e pela terra. Parece ter sido um bom ouvinte. Deliciou-se (sente-se isso, pelo menos eu sinto isso) e (provavelmente) deliciou os que lhe contaram as histórias que usa como material para construir a sua História. Serve-se de narrativas familiares para traçar genealogias e narrar sucessos da terra. Viu, diz, alguns brasões de família e cartas de nobreza. Sendo então a cultura mais oral do que escrita, as histórias eram transmitidas de pais para filhos por via oral. Valor destas histórias? Apesar de todas as cautelas, será quase impossível ou mesmo impossível averiguar o alcance real dos testemunhos orais que Frutuoso usou. A História Oral, sendo necessária, envolve cuidados mil.[7] Contudo, não a podemos descartar. Temos que usá-la com cautela.

E, não obstante tudo o que atrás se disse, poderia ele próprio verificar o que escreveu no terreno. Há o mapa da ilha de São Miguel de Luís Teixeira e de Abraão Ortelius de 1584. Conheceu-o? Gaspar Frutuoso (c. 1522 – Ponta Delgada - Agosto de 1591 Ribeira Grande) no volume IV, das Saudades da Terra, descreve minuciosamente e com bastante precisão a ilha de São Miguel do capítulo XXVII ao XLIV, tanto que nos é dado ver. A descrição que Frutuoso nos oferece é mais rigorosa e fiável do que a de Luís Teixeira e Abraão Ortelius. Luís Teixeira coloca a Várzea a seguir aos Fenais (da Ajuda). Omite o Porto Formoso e as Capelas. Regista uma Vila de Santo António. Algumas incorreções de nomes, para não falar da imprecisão da representação gráfica.[8]

Parecem não haver dúvidas acerca de um ponto crucial: a descrição de Frutuoso, é a de alguém que percorreu a ilha ou, em última instância, de quem beneficiou de quem o fez. Sou tentado a pensar que terá sido o resultado do trabalho de uma equipa (não sei se este é o termo certo) que percorreu a ilha numa ou em várias ocasiões. Rodrigo Rodrigues examinando os fundos paroquiais de Nossa Senhora da Estrela, identifica dois períodos em que Frutuoso andou fora da Ribeira Grande. Acha que pode tê-lo feito ‘(…) talvez nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 1573, em que esteve ausente da sua paróquia, como certifica o Padre Manuel Tavares (…).’ Continuando a analisar a citada documentação, identifica um segundo período ‘de 19 meses, de 12 de Janeiro de 1581 a 15 de Agosto de 1582.’ Tira uma conclusão: ‘em que se pode presumir uma ausência de Frutuoso fora da Ribeira Grande, determinada talvez pela necessidade de percorrer com demora algumas ilhas dos Açores, em busca de elementos para a sua obra (…).’[9]

Insiste-se na pergunta: Terá Frutuoso ido ao terreno ou beneficiou apenas de quem fora? Terá encomendado? Pedido ajuda a gente das localidades? Quando o fez? Se ele foi, em parte ou na totalidade do percurso, é provável que o tenha feito numa idade em que gozava de saúde e dispusesse de forças para enfrentar as duras viagens. Seria na década de sessenta, quando ainda era um quarentão e havia chegado à Ribeira Grande? Rodrigo Rodrigues propõ-nos esta hipótese.[10] Mas também admite a possibilidade de o ter feito numa idade mais avançada: ‘se é que com 60 anos de idade e achacado de cólicas, como diz Cordeiro, se arriscou a empreender a incómoda viagem das ilhas nas embarcações da época.[11]

Tenha ou não Frutuoso acompanhado quem mediu distâncias, quem mediu o fez (sozinho ou em equipa), conhecia a arte de medir distâncias. Frutuoso desejou recolher os nomes de cada localidade, de cada acidente, de ribeiras, caminhos. Queria igualmente saber histórias das terras e das pessoas das terras. As distâncias entre as diversas localidades. Outra fonte de conhecimento? Frutuoso pode ter ido aos locais e conversado com pessoas dos locais por onde passou. Pode também ter falado com pessoas daqueles locais que iam e vinham à Ribeira Grande. Pode ter pedido por escrito a colegas sacerdotes que paroquiavam nos locais, que lhe terão respondido por escrito. Não me vou pronunciar além da área da Ribeira Grande, por aqui, os nomes e os locais ainda se mantêm na generalidade. E é bastante fiável.

Que se terá seguido ao acordo dos limites? Antes da tomada de posse oficial, duas coisas parecem-me evidentes: o seu registo escrito em acta ou em outro documento oficial, que ficaria na posse dos concelhos a que diziam respeito os limites, que entretanto se perdeu, e a colocação de marcos (em pedra ou madeira), ou outros sinais identificativos, que também terão desaparecido. Bom, sabemos que a ribeira tal e tal (que ainda hoje existe) servia de limites. Frutuoso, já para a década de oitenta do século XVI, refere-nos um destes marcos: ‘(…) Além, o pico de João Ramos, tomando o nome do seu dono assim chamado, que ali morou antigamente no meio de uma estrada que vai de Ponta Delgada para a Vila da Ribeira Grande; ao pé do qual estão dois marcos e balizas, que dividem os termos da dita vila e da cidade.’[12]

Finalizado este trabalho de sapa, com marcos provisórios ou já de pedra e cal, terão voltado no dia da eleição ou em dias próximos à tomada de posse da primeira vereação da Ribeira Grande. Faltava tomar posse do espaço. Como? Os eleitos teriam de percorrer o espaço de jurisdição da Ribeira Grande. Fizeram-no ou não com as ‘varas alevantadas,’ símbolo itinerante do poder concelhio? Não sei. Quem os deve ter acompanhado no dia da tomada de posse oficial do espaço? Os mesmos que acompanharam a eleição e tomada de posse? A ser afirmativa a resposta, foram, então, Rui Gonçalves da Câmara, o capitão-do-donatário, que o fazia em nome do rei e do Donatário, e talvez ainda João da Mota, o Juiz de Vila Franca, que, assim, legitimava a passagem do espaço de Vila Franca para a Ribeira Grande. Claro, acompanhados pelo ‘povo,’ notáveis e convidados das outras duas vilas.

Lugar das Areias – Rabo de Peixe

Mário Moura

 



[1] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Volume IV, ICPD, 1998, p. 188.

[2] Borges, Pedro Maurício, O desenho do território e a construção da paisagem na ilha de S. Miguel, Açores, na segunda metade do século XIX, através de um dos seus protagonistas, Coimbra, 2007.

[3] Nota de Mário Viana enviada a Mário Moura no dia 15 de Dezembro de 2021.

[4] Pereira, António Santos, Ribeira Grande (S. Miguel – Açores) no século XVI. Vereações (1555-1578), Ribeira Grande, 2006, p. 38.

[5] Rodrigo Rodrigues: Roque Rodrigues, escrivão da Câmara da Ribeira Grande, que morreu na freguesia Matriz desta vila a 25.2.1582 subitamente e sem testamento, (Nota N.º 2). Casou com Francisca da Costa (Cap.º 133º § 1.º, N.º 3).

[6] Nomeação de Roque Rodrigues para Escrivão da Câmara da Ribeira Grande, 13 de Agosto de 1539, Retirado do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. João III, Livro 26, folha 172 v., publicado em o Arquivo dos Açores, Vol. III, 2.ª edição, 1982, p. 413.

[7] Recorro à História Oral, pelo menos, desde 1983, e tenho publicado trabalhos que envolvem esta documentação, a saber, História dos Moinhos, do Futebol, entre outros. Recomendo, entre outras obras, algumas leituras: Thompson, Paul, La voz del pasado: Historia oral, Edicions Alfons el Magnanim, Institucio Valenciana d’Estudis I investigacio, 1988; Frish, Michael, Shared Authority: essays on the craft and meaning of oral and public History, State University New York Press, 1990; Ferrarroti, Franco, La Historia y lo cotidiano, homo sociologicus, ediciones península, 1991; David K. Dunaway, Willa K. Baum (editors), Oral History: na interdisciplinar anthology, London, 2nd edition, 1996.

[8] Mapa das ilhas dos Açores, Luís Teixeira, 1584 e Joan Blaeu, 1672, Amesterdão, Holanda

[9] Rodrigues, Rodrigo, Notícia Biográfica do Dr. Gaspar Frutuoso, in Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro I, ICPD, Ponta Delgada, 1998, p. XXII.

[10] Rodrigues, Rodrigo, Notícia Biográfica do Dr. Gaspar Frutuoso, in Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro I, ICPD, Ponta Delgada, 1998, p. XXI: ‘(…) É também nos primeiros anos deste período que o seu espírito começa a estar ocupado com a investigação dos documentos e a colheita das tradições da curta vida histórica das ilhas, cuja colonização contava pouco mais de um século; período fecundo em que se dedica à observação e estudo da sociedade coeva, em que deve ter percorrido toda a ilha de S. Miguel e algumas outras deste arquipélago, em que esboça enfim o plano das Saudades da Terra.

[11] Rodrigues, Rodrigo, Notícia Biográfica do Dr. Gaspar Frutuoso, in Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro I, ICPD, Ponta Delgada, 1998, p. XXII.

[12] Frutuoso, Gaspar, Saudades Terra, Livro IV, ICPD, Ponta Delgada, 1998, p. 208.

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