Avançar para o conteúdo principal

O porto dos barcos

 


O porto dos barcos 


Porta do mar. Deu o nome ao Lugar.[1] Ao contrário da terra, (apenas) de alguns, o mar era (podia ser) de todos. E no entanto, só poucos se aventuravam. Nos calhaus ou no porto, por muito que a terra receasse o (poder do) mar, como poderia ela viver sem ele?[2] Além da carne, dos legumes, do pão e do vinho, faltava-lhe o peixe. Moluscos: ‘Pelas redondezas, sustentavam-se da terra e do calhau. As mulheres iam às lapas. Havia muita necessidade!’[3] Água também: ‘Não é do meu tempo, minha mãe contava-me que iam ao poço, na banda da vinha.[4] Os ‘homens do mar’ (eles próprios ou os vendilhões) iam pelas terras vizinhas trocar o que ‘retiravam’ do mar pelas novidades que ‘os homens da terra’ produziam. Porém, não se misturavam: casavam entre si, tinham as suas festas e moravam em locais ‘separados.’ Talvez isso se devesse (em parte) às circunstâncias das suas vidas: enquanto uns trabalhavam de sol a sol e tinham de estar próximos das terras, os outros trabalhavam (dia ou noite) consoante o mar lhes permitia e (forçosamente) tinham de morar próximos do mar. Cheiravam ‘a mar’ e tinham uma fala arrastada. Terá o preconceito vindo depois? Não sei. Daí (talvez) o ‘Caranguejo,’ em Rabo de Peixe, e a ‘rua do Porto,’ que unia Calhetas e Rabo de Peixe. A ‘ligação’ (cultura comum) dos ‘homens do mar’ criou neles uma (certa) ‘irmandade.’ O seu temor/terror pelo mar (que não diminuía com a experiência) ter-lhes-á levado a ‘agarrarem-se (à sua maneira) a Nossa Senhora da Boa Viagem, a São Pedro e a São Pedro Gonçalves (o Santinho do Mar). A imagem de São Pedro Gonçalves, ‘O Santinho,’ alvo de culto pelos pescadores de Rabo de Peixe (e dos das Calhetas, que a ele aliavam o de Nossa Senhora da Boa Viagem), ia do porto das Calhetas para o porto de Rabo de Peixe.[5] Isso numa versão. Em outra (possível), isso verificar-se-ia no caso de o barco se chamar Boa Viagem. Em 1870, como havia em Rabo de Peixe um barco com aquele nome, o dono iria (de barco) às Calhetas honrar Nossa Senhora da Boa Viagem.[6] Ainda no presente, a imagem da Senhora da Boa Viagem, por alguns momentos, para ‘defronte’ do porto das Calhetas. Os ‘homens do mar’ partilhavam (e ainda partilham) um modo de ver e celebrar a vida (e a morte), que ignorava (e ignora) divisões administrativas. De um lado, Calhetas, do outro, Rabo de Peixe? Não. A Rua do Porto, ‘do Morgado para o lado de Rabo de Peixe,’ era constituída por um núcleo de ‘marítimos’ (pescadores e de vendedores de peixe), mais ligados a Rabo de Peixe. Do lado de Rabo de Peixe, a rua de São Sebastião era a continuação da rua do Porto. Não esquecer que até 1570’s, Rabo de Peixe terminava na canada da Misericórdia. Não esquecer ainda que as gentes da rua do Porto, foram durante muito tempo consideradas ‘à parte’ das do resto das Calhetas. O mesmo se pode dizer (já não?) das gentes do mar de Rabo de Peixe. Isso do meu ponto de vista.

Que fariam (então) naquelas Calhetas (arrecifes de pedra)? Pesca e apanha de moluscos. (considerando tão-só o seu uso económico). Frutuoso (para finais do século XVI), diz-nos: (…) em que se toma muito peixe de tarrafa e se fazem boas pescarias.’[7] Tarrafa? É (simpesmente) ‘uma rede que se arremessa de lanço.’[8] Da pedra. Verificar-se-ia a mesma situação para Rabo de Peixe? Provavelmente: ‘(…) é abastado lugar de peixe (…).’ Frutuoso distingue bem o que considerava serem (então) portos (Santa Iria, Porto Formoso), varadouros (Poços de São Vicente) locais onde se praticava a pesca de tarrafa (Calhetas e talvez ainda Rabo de Peixe). Em conclusão: (aquele modo de pesca) poderia ou não dispensar o uso do barco. [9]

Quando é que nas Calhetas se (terá mesmo) iniciado a pesca de barco? As primeiras referências (claras) a um ‘porto’ das Calhetas (e a pesca de barco) surgem em 1870. Calhetas juntamente com outros ‘portos’ do Norte e do Sul da Ilha. No entanto, é (muito) provável que a existência (e o nome) daquele porto (com barcos e pescadores) viesse (mais) de traz. Quando (ao certo) mais de traz? De finais do século XVI a inícios do século XIX, pouco ou nada se sabe (pelo menos eu) daquele ‘porto.’ Mas (ainda assim) vou arriscar alguns palpites. Será que já iam pescar de barco em 1674 quando foi criado o Curato? A população aumentara. Havia assim (maior) necessidade de peixe. Não sei. E em finais daquele século (se não já antes) quando a Câmara da Ribeira Grande nomeou um alcaide, um Juiz, e um escrivão? Continuo (na mesma) sem resposta. E no século XVIII? O mesmo. No primeiro quartel do século XIX, entre 1812 e 1814, um enigmático cidadão britânico, chamado Briant Barrett, no relato que nos deixa da sua passagem pelas Calhetas, sem (todavia) nos falar no porto ou de pesca, pode ajudar (qualquer coisa): ‘uma aldeola chamada Calhetas com uma baía semelhante [à de Rabo de Peixe], mas cheia de baixios.’[10] Acrescentava (assim) um pormenor precioso: cheia de baixios. Para se sair (da relativa segurança) das pedras (dali) e entrar mar dentro num ‘barco’ (frágil) os ‘homens do mar’ das Calhetas teriam de conhecer e dominar na ‘perfeição’ os (traiçoeiros) baixios. Sobretudo (em certas circunstâncias do tempo) um deles, quase a entrar em terra, que, ainda na segunda metade do século XX, virou um barco e matou um homem.[11] Melhorar também (o quanto bastasse e fosse possível) o acesso.[12] Mas quando, então? Haveria já em Dezembro de 1820, quando a Câmara da Ribeira Grande nomeou um Juiz pedâneo? [13] Não sei ainda. E em 1835, quando se criou a Freguesia dos Lugares do Pico da Pedra e das Calhetas, já existiria (por ali) uma comunidade (pequena ou grande) de ‘homens do mar’ que utilizavam aquele porto das Calhetas e moravam (na sua grande maioria) na rua do Porto? Talvez. Em que baseio o meu palpite? A nova Freguesia ter como limite a rua do Porto? Já depois de publicar este trabalho no Correio dos Açores, continuando a pesquisa (como sempre faço) encontrei não com o nome de rua do Porto mas com o de rua Direita ou rua da Volta das Calhetas (que pode coincidir com a do Porto), para a Quaresma de 1835, um pescador de nome Adriano a residir na rua direita das Calhetas.[14] É pouco? É. Outro palpite (mais fraco). Nessa altura, as Calhetas (terão) levado não só as melhores terras de cultivo mas toda a riqueza que o mar poderia dar.[15] Foi assim que se passou? Não sei. Mais ou menos prováveis, todavia, tudo o que acima escrevi não passa de suposições, porque as primeiras referências (oficiais conhecidas) à existência de um porto de pesca nas Calhetas chegam-nos através da documentação da Alfândega de Ponta Delgada referentes ao ano de 1870. Serão (pois) as primeiras provas do reconhecimento ‘legal’ de que ali existia (já) um porto. Por coincidência ou não, surgem numa altura em que (na secretaria) as Calhetas haviam passado de ‘iguais’ a ‘dependentes’ do Pico da Pedra (situação que nunca aceitariam, como tentarei mostrar).[16]

Quem seriam ‘aqueles homens do mar’ das Calhetas que os documentos nos trazem? A 16 de Fevereiro de 1870, mas permitindo recuar à década de sessenta, através da relação dos barcos que de Rabo de Peixe o Guarda Bernardino de Sousa enviava à Alfândega em Ponta Delgada, fica-se a saber que (então) existiam vinte e um barcos em Rabo de Peixe e dois nas Calhetas. Estes últimos (ao contrário dos de Rabo de Peixe), são identificados por um número: o n.º 88, cujo dono era José Inácio Brás e o n.º 89 (por seu turno) pertencente a João Pereira Brás.[17] Nenhum dos dois sabia (sequer) escrever o seu nome. Em Junho e Agosto daquele ano de 1870, conhecem-se as ‘fianças’ (obrigatórias) de ‘ José Inácio Arrais e dono de barcos de pesca do Lugar das Calhetas (…),’ que, indo pessoalmente à Alfândega a Ponta Delgada ‘se responsabilizava por Manuel Inácio, do dito Lugar das Calhetas e arrais de barco de pesca do dito Lugar (…),’ e a de ‘João Pereira arrais e dono de barcos de pesca do Lugar das Calhetas (…),’ que ‘se responsabilizava por José Pereira do dito Lugar das Calhetas e arrais de barco de pesca pelo pagamento do imposto sobre o pescado (…).[18] Em 1873, repete-se para o caso de José Inácio.[19] Quem é essa gente? O rol quaresmal de 1879 (o mais antigo sobrevivente) dá-nos a resposta Na rua do Porto vivem (com família) os ‘marítimos,’ José Pereira Brás, Manuel Inácio Pereira e José Inácio Pereira. Na da Boa Viagem (também com a família): os marítimos Jacinto Carvalho e João Pereira Brás. E o pescador Vitorino Bernardo. Ainda na da Boa Viagem, o peixeiro Manuel Terceira Gonçalves. Ao todo cinco marítimos e um peixeiro. E, claro, confirma-se os de 1870 e o de 1873. E o carpinteiro Jacinto Tavares Baldaia (morador na rua do Porto) certamente trataria (entre outras coisas) dos barcos.

Fazendo (apenas) contas ao (primeiro) documento atrás referido (1870), apesar da (enorme) diferença entre o número de barcos das Calhetas (2) e os de Rabo de Peixe (21), o número de barcos das Calhetas não se afastava do (de alguns) dos restantes portos da costa Norte.[20] Surpreendente? Não. Era (absolutamente) vital dispor de uma saída (ainda que fraca e pobrezinha) para o mar. Porém, não se confunda aqueles portos (simples fundeadouros), como identificava Mouzinho de Albuquerque (os de São Miguel, incluindo o de Ponta Delgada) em 1825,[21] com os que hoje vemos à nossa volta.

Vou tentar seguir de perto (barcos e pescadores) no tempo. Onde? De novo nos roteiros quaresmais. Agora no de 1906, a meses de as Calhetas abandonarem (legalmente) a ‘união’ com o Pico da Pedra, existiam ali (arrolados) dez pescadores. Sete morando (com suas famílias) na rua do Porto. Destes, cinco (claramente) pertencendo (pelo apelido) à família Pereira. Alguns (mesmo sem me lançar em pesquisa aturada) parecem vir já (pelo menos) da década de setenta: José Inácio Pereira, Manuel Inácio Pereira e o filho Mariano, Manuel Inácio Pereira Júnior, José Inácio Pereira (distinto do anterior). E dois outros: José Tavares Grilo e Manuel do Amaral Barroso. Seria um barco para estes sete? Ou mais do que um? Não sei. A peixeira Serafina de Rezende Pereira (seria da família dos Pereira?), e os peixeiros António Joaquim Âmbar e Manuel dos Santos Ferraz. Até aqui, todos moradores na mesma rua do Porto. Que (pelos vistos) centrava a sua actividade à volta do mar (e do calhau). Na rua da Boa Viagem, a que se seguia à do Porto, e ao que parece indicar (pela ordem dos arroladores) no troço mais próximo da rua do Porto, havia dois pescadores e seis peixeiros. Os pescadores são Jacinto Pereira Brás (mais um Pereira?) e Manuel Laranja. E os peixeiros: José dos Santos Ferraz (o mesmo apelido de uma peixeira da rua do Porto), José Rezendes Pereira (novo Pereira?), António Soares de Sousa, Francisco de Sousa Relvinha, Manuel Bento Pacheco e José Carreiro. Continuam os indivíduos de apelidos ‘parecidos.’ Seriam necessárias (ou não) mais do que uma embarcação para dar ‘que fazer’ àquele número de peixeiros? Ali ou no vizinho porto de Rabo de Peixe. Ou por ali perto. Já depois da igreja, na rua da Boavista, havia um pescador (Jacinto Inácio Pereira) e um peixeiro (Manuel Joaquim Âmbar). Como se poderá ver, partilhando apelidos com os da rua do Porto e da Boavista. Talvez casassem com gente ‘lá de cima’? (dos lados da igreja) E (por último) um peixeiro na rua Central: José de Sousa Relvinha.[22] Mais um apelido ‘oriundo’ ‘lá de baixo.’ (dos lados do porto) Em 1906, três décadas após o documento de 1870, duplicara o número de marítimas e aumentara grandemente o número de peixeiros. O porto estava (bem) activo.

Pelo que julgo poder ‘identificar’ numa fotografia publicada em 1919 (que pode bem ter sido tirada antes), o ‘porto’ não diminuíra (então) de importância. A legenda diz: ‘Grupo de pescadores junto ao porto das Calhetas.’[23] O que vejo? Creio reconhecer aí (de certeza) três barcos, com a possibilidade (ainda que não se consiga distinguir bem) de haver ainda um outro. Vêem-se (igualmente) remos espalhados pelo calhau. Quatro ou cinco homens (que me parecem estar) a trabalhar nas redes. Ou em aparelhos. Ao todo, onze homens. Talvez (até) doze. Seriam os pescadores daquele porto em 1919? Quem seriam eles? Vou ver o que se consegue (apurar) no rol de confessados de 1918? O que tiro daí? Que a informação de 1918 coincide (em grande parte) com a de 1906.[24] E no global, tanto quanto me permitem as provas, o porto terá mantido uma actividade (próxima) da de 1870: a faina e a distribuição estaria nas mãos de uma ou duas famílias. Que residiam (na sua esmagadora maioria) na rua do Porto e no troço imediato da rua da Boa Viagem. As redes apontam para um tipo de pesca de cerco (no mar) diferente da dos aparelhos. É (ainda) possível que nos anos quarenta do século XX, tempo de guerra, a situação do porto se mantivesse (relativamente) inalterada. A população aumentara e a emigração (ainda) não abrira. Em 1942, Sarmento Rodrigues referia ainda (e apenas) ‘o desembarcadouro das Calhetas.’[25] Em 1968, porém, apesar de haver no porto das Calhetas (segundo algumas pessoas com quem falei) dois ou três barcos,[26] Daniel de Sá nada diz deles ou do porto.[27] No entanto, ao comparar-se o que se conhece para 1870 com o que Daniel de Sá diz para 1968, percebe-se o ‘declínio’ do porto das Calhetas e confirma-se o ‘extraordinário’ crescimento do de Rabo de Peixe: ‘478 pescadores (e) 75 barcos – 27 motorizados e 48 à vela e a remos.’[28] Em 1977, a Assembleia de Freguesia tenta dar um novo impulso ao porto. Propõe ‘uma pequena muralha e serventia para o porto dando possibilidade aos actuais pescadores e criando novos postos de trabalho e rendimento para a Freguesia e para a Região.’[29] Quando acabou a pesca de barco nas Calhetas? ‘Em 1980 ou 1981.’ Quem foi o seu último (marítimo) pescador? António de Jesus Penacho ‘Palanca (n. Rabo de Peixe - 1929 – f. Calhetas 1985).’ Disse-me o filho José Manuel.[30] Uma década depois de falecer o seu último pescador, a Junta de Freguesia tentou a pavimentação do acesso e da rampa de varagem do porto.[31] Sem sucesso. Passadas duas décadas, a Junta voltou a reacender a esperança. Porém, nova desilusão: Não vai ser possível a requalificação do porto por falta de concessão de apoio.[32] Por ali, por enquanto, vêem-se um ou outro banhista, um ou outro surfista. Algum pescador de cana. Um pequeno barco por ali perto. (continua) Calhetas (Ribeira Grande)

Mário Moura

(Correio dos Açores, 6 de Maio de 2023)  

PS: O estatuto do Pico da Pedra e das Calhetas melhora no período da Revolução Liberal de 1820, quando Porto Formoso e Maia entram no Concelho. Nesta altura, são nomeados ‘juizes “opidanos” para o lugar da Lomba da Maia, do Porto Formoso, da Ribeirinha, Lomba, Rabo de Peixe, Calhetas, Pico da Pedra.’[33]

 



[1] Adoraria tratar a relação sagrada (temida mas irresistível) da terra com o mar, contento-me por ora apenas referir que aí se situava uma espécie de portal entre dois mundos.

[2] O mar daqueles tempos não nos chegou aos documentos, viveu (e morreu?) no dia-a-dia de cada um. Nas crenças. A gente (se calhar) chega lá, apalpando o presente (etnografia), juntando migalhas. Mas sempre, de forma provisória.

[3] Testemunho de Antuérpia Maria Amaral de Sousa, 30 de Abril de 2023. Nasceu em Março de 1944. Morava na rua do Porto.

[4] Testemunho de Antuérpia Maria Amaral de Sousa, 30 de Abril de 2023. Nasceu em Março de 1944. Morava na rua do Porto.

[5] Farias, Ruben, Hominis Aqua. A comunidade piscatória de Rabo de Peixe, 2015, p. 31: ‘(…) Os antigos recordam-se ainda da tentativa de transportar de barco a imagem do santo entre a freguesia de Calhetas e Rabo de Peixe. As condições adversas do ma, nem sempre permitiram esta forma centenária de cortejo marítimo, que ainda hoje fazem parte de cultos semelhantes no Brasil, nomeadamente em Porto Alegre e em Pernambuco;’ Costa, António Pedro, O som dos búzios, 2022, p. 49; Enquanto vivi com os meus avós na Horta, presenciei algo de semelhante nas Angústias. Esta devoção dos pescadores deve ter existido (também) no centro da Ribeira Grande.

[6] Testemunho de Pedro Andrade, 2 de Maio de 2023. Mesmo só para prestar homenagem: ‘Fui com meu pai algumas vezes às Calhetas de barco. Nossa Senhora parava no porto.’

[7] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p.193.

[8] https://dicionario.priberam.org/tarrafa. https://pt.wikipedia.org/wiki/Tarrafa: É ‘circular com pequenos pesos distribuídos em torno de toda a circunferência da malha.

[9] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p.193. Os Poços de São Vicente, mais à frente na costa Norte, ofereciam outras ‘valências’: ‘(…) tem um varadouro de calhau bravo, em que varam batéis; no qual lugar se fizeram já dois navios que botaram e vararam ao mar, e onde o capitão Diogo Lopes de Espinhosa mandou fazer um forte muro de pedra ensossa, para dele se poder seguramente defender a desembarcação aos inimigos.’ Santa Iria, ainda para Frutuoso, era um porto onde operavam batéis e se pescava. Portanto, cargas e descargas. Encostado ao lado Nascente do Concelho da Ribeira Grande, o Porto Formoso, ‘o melhor que havia da banda do norte, onde se fizeram já e vararam alguns navios e carregaram muitos trigo, mas agora, depois do segundo terremoto desta ilha, está atupido de terra, que correu e tomou posse do mar, onde já pasta gado.’ Um pouco mais para Nascente, nos Fenais da Maia: (do qual até à ponta dos Fenais da Maia se faz uma grande enseada) e nele um guindaste, onde se carregava e carrega algum trigo; e perto dele a ribeira do Machado.’

[10] Barrett, Briant, Relato da minha viagem aos Açores 1812-1814, Letras Lavadas, 2017, p. 161

[11] Testemunho de José Manuel Penacho Palanca, 2 de Abril de 2023.

[12] As Calhetas (porto) eram (relativamente) abrigadas dos ventos da ponta de Santo António e (totalmente) desabrigadas dos do lado da ponta de Santa Iria. E ainda (mais) desprotegidas do vento que sopra do mar largo. Serviu (segundo me dizem, mas que ainda não confirmei), de refúgio (por vezes) a alguns barcos de Rabo de Peixe. E Rabo de Peixe serviu (igualmente) de abrigo a barcos das Calhetas.

[13] AMRG, Livro de Actas, 1820-24, n.1, Vereação de 31 de Dezembro de 1820, fl.32: O estatuto do Pico da Pedra e das Calhetas melhora no período da Revolução Liberal de 1820, quando Porto Formoso e Maia entram no Concelho. Nesta altura, são nomeados ‘juizes “opidanos” para o lugar da Lomba da Maia, do Porto Formoso, da Ribeirinha, Lomba, Rabo de Peixe, Calhetas, Pico da Pedra.’

[14] APSBJ, Rol de Confessados da igreja do Senhor Bom Jesus, Rabo de Peixe, 1826-1840, Calhetas, 1836

[15] AMRG, Livro de Registo de Alvarás da Prefeitura, registo de 11 de Julho de 1835, fls. 49 v - 50 v: ‘Em uma recta da estrada pública entre Rabo de Peixe e Calhetas, [fica antes das Calhetas a que nos estamos a referir, mas não menciona a rua do Porto, que ficaria a poente] do Norte ao Sul dos biscoitos da Tronqueira, tendo princípio à primeira Canada Nova junta à dita estrada que confronta, Nascente dita Canada que dá servidão (…).’

[16] PT/BPARPD/ACD/ALFPDL/054/0001, Estas avenças e fianças dizem respeito a barcos de pesca dos portos da Bretanha, São Vicente Ferreira, Porto Formoso, Faial da Terra, Ponta Garça, Água de Pau, Santo António, Nordeste, Calhetas e Capelas, 1867-07-09/1875-01-28; PT/BPARPD/ACD/ALFPDL/00017, Mapas do movimento portuário. Relação dos barcos de pesca de Rabo de Peixe e Calhetas, 1870/1879; PT/BPARPD/ACD/ALFPDL/054/0002, Barcos de pesca dos poços de São Vicente, Faial da Terra, Santo António, Calhetas, Porto Formoso, Caloura e Bretanha.

[17] PT/BPARPD/ACD/ALFPDL/00017, Mapas do movimento portuário. Relação dos barcos de pesca de Rabo de Peixe e Calhetas, 1870/1879, localização física: 4/1262 Dep. 1, 88/1, Relação dos barcos pertencentes ao porto de Rabo de Peixe e Calhetas, a meu cargo, até à data presente do ano corrente de 1870, de Guarda Bernardino de Sousa, Rabo de Peixe, 16 de Fevereiro de 1870

[18] PT/BPARPD/ACD/ALFPDL/054/0001, Estas avenças e fianças dizem respeito a barcos de pesca dos portos da Bretanha, São Vicente Ferreira, Porto Formoso, Faial da Terra, Ponta Garça, Água de Pau, Santo António, Nordeste, Calhetas e Capelas, 1867-07-09/1875-01-28, Localização Física; 1312 Dep. 1, 88/2, Termo de Fiança de José Inácio, Ponta Delgada, 30 de Junho de 1870, fl. 15: ‘Aos 30 de Junho de 1870 (…) compareceu José Inácio Arrais e dono de barcos de pesca do Lugar das Calhetas (…) se responsabilizava por Manuel Inácio, do dito Lugar das Calhetas e arrais de barco de pesca do dito Lugar (…).’ (não sabia escrever); Termo de Fiança de João Pereira, Ponta Delgada, 4 de Julho de 1870, fl. 16: ‘(…) compareceu João Pereira arrais e dono de barcos de pesca do Lugar das Calhetas (…) se responsabilizava por José Pereira do dito Lugar das Calhetas e arrais de barco de pesca pelo pagamento do imposto sobre o pescado (…).’ (não sabia escrever)

[19]PT/BPARPD/ACD/ALFPDL/054/0002, Barcos de pesca dos poços de São Vicente, Faial da Terra, Santo António, Calhetas, Porto Formoso, Caloura e Bretanha, 1872-03-08/1876-06-17, localização física: 1282 Dep. 1, 88/2, Calhetas, 5 de Agosto de 1872, fl. 4: ‘Calhetas, aos cinco do mês de Agosto de mil oitocentos setenta e dois, nesta Alfândega de Ponta Delgada, compareceu José Inácio do Lugar das Calhetas, e por ele foi dito que se responsabilizava por sua pessoa e bens, por Manuel Inácio arrais de Barco do dito Lugar das Calhetas, pelo pagamento do imposto por que é avençado e a entrar com a referida quantia até o dia trinta de Junho de 1873 na tesouraria da Alfândega desta Cidade.’  

[20] Fl. 3 v.: Poços de São Vicente: pelos arrais dos barcos de pesca do porto de S. Vicente; Santo António (fl. 3): ‘arrais e donos dos barcos de pesca no Lugar de Santo António.’ Porto Formoso (fl.5): ‘ ‘arrais de barco de pesca do Lugar do Porto Formoso.’ Bretanha (fl. 6): ‘arrais de barco de pesca do Lugar da Bretanha.’

[21] Albuquerque, Luís da Silva Mouzinho da e Inácio Pita de Castro Menezes, Observações sobre a Ilha de S. Miguel recolhidas pela Comissão enviada à mesma Ilha em Agosto de 1825 e regressada em Outubro do mesmo ano, Lisboa, Imprensa Régia, 1826, p. 31: ‘não tem porto, pois tal se não pode chamar o fundeadouro em frente de Ponta Delgada (…).

[22] APNSBV, Rol de Confissão, Nossa Senhora da Boa Viagem, 1906. Para saber mais sobre vendedores de peixe, recomendo: Ataíde, Luís Bernardo Leite de, O vendilhão de peixe, in Etnografia, Arte e Vida Antiga dos Açores, Volume III, Coimbra, 1974, pp. 165-170.

[23] Essa fotografia publicada no National Geographic Magazine ‘Azores: Transatlantic Aviator’s half-way House,’ ilustra a preto e branco o que titula, alguém a reutilizou e traduziu. Quem era Arminius? https://politicalstrangenames.blogspot.com/2012/10/arminius-titus-haeberle-1874-1943.html. Vejamos: ‘Born in St. Louis, Missouri on January 23, 1874, Arminius Titus Haberle was the son of the Rev. Louis F. (1838-1928) and Flora Lemen Bock Haeberle (1841-1909). Arminius attended school in St. Louis and later went on to study at both the Elmhurst College in Illinois and Washington University in St. Louis. After completing his studies Haeberle embarked upon a career as a teacher, eventually becoming an instructor at the St. Charles College in St. Charles Missouri. After a number of years of teaching and serving as a principal at various locations in Missouri, Haeberle was named to the position of vice director of the Institute Ingles in Santiago, Chili, serving here from 1898-1903. After returning to the United States at the conclusion of his service in Chili Haeberle became the head of the modern language department at St. Louis's McKinley High School, holding this post until 1907. In the year following his leaving McKinley High School Haeberle was appointed to his first diplomatic post, that of U.S. Consul at Manzanillo, Cuba.Tudo leva a crer que a Fotografia do Porto de Santa Iria, identificada erradamente como sendo do porto das Capelas, utilizada no artigo da National Geographic Magazine, foi tirada por Amâncio Júlio Cabral. Já fora utilizada para ilustrar um artigo em 1909, uma parceria do Coronel Chaves e do Príncipe de Mónaco.[23] E a das Calhetas?[23] Pode bem ter sido tirada pelo Fotógrafo José Pacheco Toste. Porquê? Por dois indícios apenas. Toste adquiriu uma casa sobranceira ao porto das Calhetas em 1916. Há alguém na fotografia com chapéu de explorador colonial que pode bem ser Armenius. Aliás, em 1919, na legenda, ele é identificado como tendo sido cônsul americano em São Miguel. Então, a fotografia pode ser de Armenius mas ter sido tirada por Toste? Sim. Outro candidato bastante provável é o Coronel Afonso de Chaves, a quem Armenius agradece no final do texto: ‘The author is greatly endebted to Colonel Chaves (…).’Photograph from H. T. Haeberle.’

[24] Rua do Porto: peixeiros: António Soares de Sousa; Serafim Resendes Pereira; Manuel dos Santos Ferraz; (Boa Vista) Manuel Bento Pacheco; José Carreiro Renda; Manuel Tavares Mourato (peixeiro); (Rua Central), José Resendes Pereira; Pescadores: José Inácio Pereira e filho José; Mariano Inácio Pereira (marítimo); Manuel Amaral Barroso (marítimo); José Tavares Grilo (marítimo); José Inácio Pereira (marítimo); Victorino de Sousa (marítimo); (Boa Viagem) Jacinto Pereira Brás (marítimo); (Boa Vista) Jacinto Inácio Pereira. 

[25] Rodrigues, M. M. Sarmento, Ancoradouros das Ilhas dos Açores, Edição dos Anais de Marinha, Lisboa, 1943, p. 103.

[26] Testemunho de mestre Carlos Silva, 29 de Abril de 2023.

[27] A mais pobre do concelho: Aqui não morre a Esperança! Inquérito do Açores às Juntas de Freguesia, Açores, Ponta Delgada, 16 de Março de 1968, pp.1, 3

[28] D.S. [Daniel de Sá], O mar e a terra de mãos dadas fizeram Rabo de Peixe, Inquérito do Açores às Juntas de Freguesia, Açores, Ponta Delgada, 10 de Março de 1968, pp.1,7, 9; D.S. [Daniel de Sá], D.S. [Daniel de Sá], Vontade e bom gosto. Ribeirinha, Inquérito do Açores às Juntas de Freguesia, Açores, Ponta Delgada, 24 de Março de 1968, p. 7. ‘cerca de uma dezena de barcos’ para o Porto da Ribeirinha, D.S. [Daniel de Sá], Porto Formoso – Merecendo o nome, merece também mais, Inquérito do Açores às Juntas de Freguesia, Açores, Ponta Delgada, 14 de Fevereiro de 1968, pp.1,3.e uma dezena e meia para o Porto Formoso.

[29] AJFC, Livro de Actas [1963-1987], acta da Assembleia de Freguesia, de 22 de Novembro de 1977, p. 31.

[30] Testemunho de José Manuel Penacho, Palanca, 2 de Maio de 2023. ‘O Farreca (ajudante) foi para a América e meu pai vendeu o barco para Rabo de Peixe.’ ‘Morreu em 1985. Tinha 63 anos. Casou aqui nas Calhetas. Morou na rua do Porto.’ ‘O barco era à vela. Apanhava bodiões, garoupas, abróteas, camelos, congros, peixe gata. Iam vender para o Pico da Pedra. O peixe gata era para Ponta Delgada. Quando o mar não deixava, pescava de tarrafa nas pedras. O barco ia lá para fora. De noite e vinha da manhã. Quase que não via terra. Ia à pesca desde os três quatro anos escondido do cabo de mar nos barcos de Rabo de Peixe.

[31] AJFC, Pavimentação do acesso ao porto de Calhetas e rampa de varagem, Julho de 1992.

[32] AJFC, Acta de sessão, 29 de Janeiro de 2010: Esteve nesta freguesia a Arquitecta da Câmara para melhoramentos no Porto de Pesca; AJFC, actas, sessão de 30 de Julho de 2010

[33] AMRG, Livro de Actas, 1820-24, n.1, Vereação de 31 de Dezembro de 1820, fl.32

Comentários

Mensagens populares deste blogue

História do Surf na Ribeira Grande: Clubes (Parte IV)

Clubes (Parte IV) Clubes? ‘ Os treinadores fizeram pressão para que se criasse uma verdadeira associação de clubes .’ [1] É assim que o recorda, quase uma década depois, Luís Silva Melo, Presidente da Comissão Instaladora e o primeiro Presidente da AASB. [2] Porquê? O sucesso (mediático e desportivo) das provas nacionais e internacionais (em Santa Bárbara e no Monte Verde, devido à visão de Rodrigo Herédia) havia atraído (como nunca) novos candidatos ao desporto das ondas (e à sua filosofia de vida), no entanto, desde o fecho da USBA, ficara (quase) tudo (muito) parado (em termos de competições oficiais). O que terá desencadeado o movimento da mudança? Uma conversa (fortuita?) na praia. Segundo essa versão, David Prescott, comentador de provas de nível nacional e internacional, há pouco fixado na ilha, ainda em finais do ano de 2013 ou já em inícios do ano de 2014, chegando-se a um grupo ‘ de mães ’ (mais propriamente de pais e mães) que (regularmente) acompanhavam os treinos do...

Moinhos da Ribeira Grande

“Mãn d’água [1] ” Moleiros revoltados na Ribeira Grande [2] Na edição do jornal de 29 de Outubro de 1997, ao alto da primeira página, junto ao título do jornal, em letras gordas, remetendo o leitor para a página 6, a jornalista referia que: « Os moleiros cansados de esperar e ouvir promessas da Câmara da Ribeira Grande e do Governo Regional, avançaram ontem sozinhos e por conta própria para a recuperação da “ mãe d’água” de onde parte a água para os moinhos.» Deixando pairar no ar a ameaça de que, assim sendo « após a construção, os moleiros prometem vedar com blocos e cimento o acesso da água aos bombeiros voluntários, lavradores e matadouro da Ribeira Grande, que utilizam a água da levada dos moinhos da Condessa.» [3] Passou, entretanto, um mês e dezanove dias, sobre a enxurrada de 10 de Setembro que destruiu a “Mãn”, e os moleiros sem água - a sua energia gratuita -, recorriam a moinhos eléctricos e a um de água na Ribeirinha: « O meu filho[Armindo Vitória] agora [24-10-1997] só ven...

Quem foi Madre Margarida Isabel do Apocalipse? Pequenos traços biográficos.

Quem foi Madre Margarida Isabel do Apocalipse? Pequenos traços biográficos. Pretende-se, com o museu do Arcano, tal como com o dos moinhos, a arqueologia, a azulejaria, as artes e ofícios, essencialmente, continuar a implementar o Museu da Ribeira Grande - desde 1986 já existe parte aberta ao público na Casa da Cultura -, uma estrutura patrimonial que estude, conserve e explique à comunidade e com a comunidade o espaço e o tempo no concelho da Ribeira Grande, desde a sua formação e evolução geológica, passando pelas suas vertentes histórica, antropológica, sociológica, ou seja nas suas múltiplas vertentes interdisciplinares, desde então até ao presente. Madre Margarida Isabel do Apocalipse foi freira clarissa desde 1800, saindo do convento em 1832 quando os conventos foram extintos nas ilhas. Nasceu em 1779 na freguesia da Conceição e faleceu em 1858 na da Matriz, na Cidade de Ribeira Grande. Pertencia às principais famílias da vila sendo aparentada às mais importan...