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A Ribeira Grande nos séculos XV, XVI e XVII: «Assim a vejo e assim a sinto.»

 

A Ribeira Grande nos séculos XV, XVI e XVII: «Assim a vejo e assim a sinto.»

 

 

 

   O Prof. Dr. José Mattoso, prestigiado medievalista português, numa sólida e bem fundamentada lição proferida, já lá vão, dois ou três anos, na Universidade dos Açores, problematizou muito sagaz e proficientemente a temática da história local inserida na mais recente epistemologia histórica.

   Em traços largos, e em jeito de súmula ao seu rico e profundo pensamento, ouso respigar uma ou outra trave mestra da sua síntese.

   Assim como primeira consideração, torna-se necessário ao historiador local não só almejar o auto-conhecimento da comunidade ou das comunidades que investiga, mas também todo o seu contexto espácio-temporal abrangente a que ela está, directa ou indirectamente, mas sempre indissoluvelmente ligada.

   Como nó górdio de toda esta epistemologia histórica, e, seu âmago essencial, está a sua vocação problematizadora, ou seja a perspectiva ou a visão de que a história local, em particular e em geral toda a história, não se deve esgotar no mero registo erudito de factos e de acontecimentos, mas, pelo contrário, utilizá-los metódica e criteriosamente na resolução de questões mais vastas.

   Se me permitem, passo a exemplificar. O saber-se quem e quando construiu a magnífica fachada da Igreja do Espírito Santo, vulgo Igreja do Senhor dos Passos, ou da Misericórdia, só adquire verdadeira relevância científica quando, entre infinitas questões que se lhe poderiam colocar, a perspectivarmos em perguntas deste jaez:

   «Que lugar ocupa a fachada barroca da Igreja do Espírito Santo no barroco insular, no barroco nacional e no barroco brasileiro.» A história como qualquer ciência deve formular como ponto de partida, hipóteses de trabalho e neste caso uma das hipóteses válidas seria «Os Açores foram peça fulcral na conciliação de dois estilos arquitectónicos nacionais, o do norte e o do sul do país, e, que se consubstanciou na arquitectura brasileira.» Segue-se-lhe a verificação metódica deste pressuposto concluindo-se por um talvez, um sim ou um não.

   O objecto de estudo desta visão renovada e renovadora da história local continua a ser o passado do homem, aliás outra coisa não poderia ser, porém, acentua e aprofunda a sua dimensão de agente cultural interagindo e reagindo aos espaços e ao tempo em que, consciente ou inconscientemente, variando em grau e em intensidade, se insere.

   Assim sendo, as fontes de potencial conhecimento histórico a que o historiador local deve e pode recorrer, são praticamente inesgotáveis, pois, ultrapassam as tradicionais, mas sempre imprescindíveis fontes arquivísticas, intrometendo-se, no bom sentido, em áreas até agora reservadas a outras ciências ou simplesmente ignoradas por elas, porém, e ressalve-se esta insistência, manuseadas à luz das novas exigências históricas.

   Resumindo, o historiador local, e o historiador em geral, deve utilizar como fontes de informação histórica (como documento) tudo o que seja susceptível de lhe ajudar a, em primeiro lugar, perceber, e, em segundo lugar, explicar as diversas inter-relações do passado do homem  no espaço e no tempo, a saber, entre outras: as lendas, as crenças, os usos e costumes, os divertimentos, os símbolos e as ligações ao poder político, económico,  a literatura tanto oral como escrita, o relevo, a fauna e a flora, os recursos naturais, o clima, a situação geográfica, os transportes, a hidrografia, os monumentos e as demais obras de variada índole e valor... Isto sempre numa perspectiva global e sem esquecermos que o historiador é um homem do presente e no presente.

   Por vezes, e em meu entender a Ribeira Grande inclui-se neste exemplo, o conhecimento da localidade só romperá com as suas apertadas limitações, depois de tudo aquilo que há para ler, estar lido, de tudo aquilo que há para ouvir, estar ouvido, e de tudo aquilo que há para ver, estar visto; ler, ouvir e ver tudo o mais que deve estar no seu subsolo. E se há terras ricas de coisas para ver, ler e ouvir no subsolo a Ribeira Grande é uma delas. Há um grande e único livro debaixo dos nossos pés, é preciso ter o cuidado de lhe não rasgar indiscriminadamente as páginas.

   Para que cada uma destas potenciais fontes de informação possa ser considerada pelo historiador válida e credível é necesário dar-se-lhe o tratamento exegético à sua múltipla e complexa natureza. Uma lenda terá necessariamente um tratamento diferente de um documento escrito e este, de  igual modo, um tratamento diferente dos recursos naturais da região.

   Prefiro, para definir o historiador, mais a expressão que diz que ele regressa ao futuro mais do que a que indica o seu regresso ao passado, pelo menos regresso para lá ficar esquecido do tempo em que vive.

   Já não é tanto o rato de biblioteca, mas antes o rato das vidas que  se vão tal como foram entretecendo em todos os espaços e os tempos enquanto o homem for homem e o mundo for mundo.

   Ao que julgo poder deduzir da leitura das «Saudades da Terra» do Dr. Gaspar Frutuoso, esse insigne cronista quinhentista das ilhas atlânticas, cujo 4º. Centenário da morte, este ano muito justamente se pretende comemorar, o espaço físico que veio a ser, desde o início do povoamento, e, devido à sua ribeira, conhecido por Ribeira Grande, só foi arroteado e aproveitado pelo povoador português num segundo impulso do povoamento, porém, plausivelmente muito próximo do primeiro.

   Frutuoso, essa fonte inexaurível e essencial de informação histórica, muito a seu jeito, recolhe e adianta várias versões para o primeiro momento do povoamento da ilha do Arcanjo São Miguel (vide Livro IV, 1º. vol., pags., 13 e segs.), algumas são clara  ou ligeiramente divergentes das outras, todavia, todas, sem excepção, situam o embrião inicial no sudeste da ilha, ou seja no lugar da Povoação e nos anos quarenta da centúria de quatrocentos.

   Este incipiente núcleo teria, mercê sobretudo de más recolhas agrícolas, fracassado, ou pelo menos ficado muito aquém das expectativas dos seus impulsionadores. Deste modo os arroteadores que persistem também atemorizados pela grave crise sísmico-vulcânica de então, deslocam-se ao longo da costa sul da ilha em direcção ao poente e fixam-se  preferencialmente na área de Vila Franca, que veio a ser durante largos anos a charneira do desenvolvimento da ilha.

   O isolamento e o terror dos vulcões era tal que, e isto vem referido no «Arquivo dos Açores» sendo dado a um condenado a escolher entre a pena perpétua no norte de África e a pena de cinco anos nos Açores, este escolhe sem hesitar a primeira, por considerar a segunda terra imprópria para seres humanos.

   Mas o reino precisava das ilhas e as ilhas tinham de ser povoadas custasse o que custasse, as rotas transatlânticas assim o exigiam.

   O rei prodigalizava incentivos aliciadores. Em 1443, D. Afonso V, isenta de dízima por cinco anos os moradores dos Açores. O mesmo monarca, em 1447, isenta de dízima especificamente os moradores da ilha do Arcanjo, não já por cinco anos, mas para «d'este dia para todo sempre a todollos moradores que ora vivem e moram, ou morarem d'aqui em diante em a dita ilha...[1]»

   É possível que no decurso do segundo impulso que atinge Vila Franca, alguns deles ou outros que, entretanto se lhes juntaram, penetrem para o interior da ilha e se fixem na Ribeira Grande.

   Fr. Agostinho de Monte Alverne, no século XVII, ao que julgo saber, recolhendo a riquíssima tradição oral, refere-se aos nossos antepassados ribeiragrandenses, nestes termos:

 

   «1º. Eram tão poucos os lavradores que fundaram, ou dizendo melhor, que povoaram este lugar da Ribeira Grande, ...[2]»

 

  Detenha-mo-nos um pouco na análise da morfologia e nos recursos desta área e tentemos perceber as razões da sua escolha pelos povoadores.

   A ilha do Arcanjo São Miguel, como sabeis, situada a 25º 30' de longitude oeste e a 37º 50' de latitude norte, tem uma superfície de 759,41 Km2, tem de comprimento 65 Km e uma largura máxima de 12 Km e uma mínina de 5 km. O clima é ameno com valores médios de 16ºC na Primavera, 21ºC no Verão, 18ºC no Outono e 14ºC no Inverno.

   É ladeada quer a nascente quer a poente por duas cadeias montanhosas, respectivamente a da Tronqueira e a das Sete Cidades.

   É dividida ligeiramente no centro pela serra de Água de Pau, que, todavia, se abre a oeste, a partir da Lagoa.

   Espremida entre aqueles dois maciços montanhosos, e, na parte central da ilha, desenvolve-se a maior e mais fértil planície da ilha e das ilhas.

   Limitada a nordeste e a sul pela referida serra da Água de Pau, mas expandindo-se para oeste até às Capelas, junto às faldas das Sete Cidades, e, para sudoeste, já na costa sul, atingindo a Lagoa e Ponta Delgada, a Ribeira Grande faz parte desta extensa e úbere planície verdadeiro e incontestado celeiro atlântico.

   À fertilidade do solo, própria de um terreno nunca dantes cultivado (Frutuoso relata-nos casos espantosos, alguns até parecer-nos-ão algo exagerados, porém, nem todos. Atente-se, por exemplo no seguinte trecho em que o próprio Frutuoso deixa transparecer o seu espanto: «Um Pedreanes, sapateiro, morador no Nordeste, casado com Beatriz Lopes, estante agora na vila da Ribeira Grande, comprou um moio de trigo por uns sapatos de vaca, que naquele tempo valiam três vinténs; e saia a real o alqueire.[3]») À fertilidade, muito acima da média europeia de então, aliava-se a existência de muitas e perenes águas, designadamente as da ribeira Grande.

   Portanto, eis três das razões:

 

   1. Extrema fertilidade do solo e sua vocação cerealífera.

   2. Abundância de águas perenes seja para as moagens seja para a fauna agrícola seja ainda para consumo dos moradores.

   3. Um muito razoável acesso à costa sul local de entrada e de saída das produções agrícolas.

 

   O grande incremento desenvolvimentista da ilha de São Miguel, em geral, e da Ribeira Grande em particular, ao que parece e tudo indica, não ocorre com a primeira vaga de povoadores em 1440's mas a partirde 1474, com aquela que se poderia designar com alguma propriedade e fundamento, de segunda vaga, da responsabilidade do 3º. Capitão-do-donatário, Rui Gonçalves da Câmara.

   Com ele e por sua iniciativa chega uma leva notável de povoadores oriundos sobretudo da ilha da Madeira, que nesta como em muitos outros casos, serviu de balão de ensaio e de trampolim para novos povoamentos. Será com eles que se operará o verdadeiro milagre económico da ilha.

   Até 1474, as ilhas de São Miguel e de Santa Maria faziam parte de uma só capitania, residindo o capitão em Vila do Porto.

   João Soares de Albergaria, último capitão da dual capitania, exaurido de suas fazendas, mercê de vicissitudes familiares, e sem recursos para potenciar as possibilidades da ilha vizinha, resolve propor ao Donatário o desmembramento da capitania e a venda da ilha de São Miguel. Por seu turno, o Donatário, neste caso a sua viúva, D. Beatriz, aceitando as razões invocadas pelo seu capitão e querendo desenvolver a ilha acede prontamente ao pedido. São concedidos novos e grandes privilégios, e, cedo a ilha se desenvolve. O capitão distribui sesmarias e arroteia terras organiza e monta toda a máquina político-administrativa centralizada em Vila Franca. Em pouco menos de 30 anos começam a surgir novas vilas: 1º. Ponta Delgada e de seguida a Ribeira Grande.

   Dois dos seus filhos, por exemplo, fixam-se na área da Ribeira Grande, entre os quais destaco aquele que muito justamente se deveria considerar e homenagear senão como o fundador da vila, pelo menos um dos seus mais influentes fundadores.

   Refiro-me, obviamente, a Pêro Roiz da Câmara que se encontra sepultado algures nos terrenos do ex- Mosteiro de Jesus de freiras Clarissas, do qual ele e a esposa, D. Margarida de Bettencourt, foram doadores e fundadores.

   Para além deste enorme e generoso contributo, concorreram de igual modo para a construção da primitiva igreja Matriz quinhentista, feita, segundo Frutuoso, à imagem da de S. Miguel em Vila Franca, assim como para a concretização de outras infraestruturas da candidata a vila e já vila: Ribeira Grande.

   Estou em crer que se não fora a sua vontade, e  não devemos esquecer que à altura da elevação do lugar a vila, o dito Pêro Roiz da Câmara era, com frequência, pelo facto do seu irmão amiúde se ausentar da ilha, o capitão-do-donatário substituto.

   Assim, se não fora o seu empenho e o seu interesse (a D. Manuel I interessava paulatinamente retirar poderes aos capitães, daí a política concelhia de dividir para reinar, típica da sua governação...) a Ribeira Grande não teria acedido fácilmente a vila.

   São inúmeros os exemplos de separação mais ou menos litigiosa a começar pelo exemplo de Ponta Delgada abundantemente relatado por Frutuoso e assaz conhecido pelo dito Pêro Roiz, que presidiu, na qualidade de capitão-do-donatário substituto, à cerimónia de constituição de vila.

   O trigo, o pastel (planta tintureira), até mesmo a cana-de-açucar (ruinosa segundo Gaspar Frutuoso) e os moinhos constituiram os grandes esteios do desenvolvimento espectacular da Ribeira Grande. E, algum tempo depois, o linho e os teares.

   As potencialidades agrícolas desta ubérrima área, mormente o trigo, cedo se revelaram vitais para a prossecução da complexa arquitectura política colonial portuguesa em que a intercomplementaridade das parcelas deveria obrigatoriamente concorrer para, em primeiro lugar, engrandecer a coroa, e, só em segundo lugar, beneficiar as ditas parcelas. Nos Açores esta subalternidade (aliás comum a todos os reinos da época) das parcelas ao  rei e ao reino não provou ser desvantajoso, ao invés do que, por exemplo se passou noutros locais, porém  impunha algumas e gravosas restrições.

   A astúcia dos locais, assim como a não inclusão de outros produtos neste sistema rígido (linho/pastel) foi, todavia, atenuando os possíveis danos, como adiante se tentará demonstrar.

   O constante défice carealífero metropolitano, aliado ao igualmente constante défice  cerealífero das praças portuguesas de Marrocos (as do sul do Norte de África), por um lado, e, por outro, a definição da Madeira como espaço produtor, numa primeira fase, de açucar sacarino, e, numa segunda, de vinho, impeliu o donatário da ilha a incentivar, essencialmente e obrigatoriamente o cultivo e a exportação do trigo.

   Todo o circuito do trigo, desde a produção à sua exportação era regulado e vigiado pela coroa desde a área do cultivo (2/3 de trigo para 1/3 de pastel), passando pelos preços decididos e não sujeitos à lei do mercado, até à sua colocação na Madeira e praças do sul e do norte de África.

   Daí que quer a governança dominada pelos diversos terratenentes, quer a demais população, se mancomunassem recorrendo às mais diversas tácticas e subterfúgios para se furtarem, o mais que podiam, a esta imposição.

   Para o Dr. Alberto Vieira, o contrabando de cereais, representaria cerca de 40% do total das exportações legais. Tentavam igualmente furtiva mas constantemente aumentar a área legal de cultivo de pastel (1/3), este sim não sujeito às regras coloniais mas à livre lei do mercado. Tanto mais que o mercado da Flandres, consumidor de pastel, era altamente vantajoso[4].   

   Dada a natureza do mar do norte, impróprio para a construção de bons portos de mar (em meu entender a geografia atraiçoou o total crescimento da Ribeira Grande), e, dada a importância das exportações da Ribeira Grande,  sem o ter a norte e fora do espaço concelhio, tinha-o a sul, e isto, é deveras espantoso, o porto dos Carneiros na vila da Lagoa.

   E tinha-o por decreto real livre de quaisquer deveres para com o município lagoense o que, como seria de esperar, ao longo dos tempos, foi provocando, debalde, acesa constestação. O rei e o reino precisava da Ribeira Grande.

   E não fica por aqui a relevância político-económica da vila nortenha.

   Também por imposição superior, neste caso do capitão-do-donatário, detentor do monopólio dos moinhos (situação que se prolonga até 1763), Ponta Delgada não podia, em circunstância alguma ter moinhos de qualquer tipo, exceptuando-se desta norma, as pequenas mós manuais para uso caseiro, e obrigava-se a ir moer os seus trigos aos seis magníficos (segundo Frutuoso) moinhos da Ribeira Grande.

   Cedo os almocreves da vila dominaram o circuito de ida e volta.

 

   «há na dita vila  mais de cinquenta homens que os servem neste trabalho moinhos, com duas bestas cada um, levando por cada um alqueire meio vintém, que em cem carregas somam cada seis mil réis, que ao cabo do ano valem seis mil cruzados que, com 4.000 do linho, vêm a montar dez  mil cruzados.

   Mais colhem também 400 e, pelo menos, trezentos mois de favas, das quais vendem mais de trezentos, e muita junça, em que mandam engordar porcos de toda a ilha; além do que ganham em carretos de lenha para a vila e de carros da cidade, em pastel que acarretam e outras coisas, ...[5]»

 

   Apesar da catastrófica destruição quinhentista da vila, e, para além das preciosas informações de Gaspar Frutuoso, sobreviveram desta época, poucos mas diversos testemunhos materiais que insofismavelmente nos atestam e confirmam a riqueza de então:

   O famoso tríptico de Stº. André, denunciando a relacionamento comercial com a Flandres, ainda que por vezes fosse através de Lisboa, a bela e enigmática Janela Manuelina a par com o derruído edifício da primitiva Igreja Matriz, testemunhos da estreita ligação ao reino, os azulejos sevilhanos hispano-árabes encontrados no espaço anexado em Março de 89 à rua de Trás-os-Mosteiros indiciando e reforçando toda a nossa ligação às diversas rotas atlânticas, seja às de PoRtugal seja às de Castela.

   Basta relancear os olhos pelos Livros I, II, III e IV, volumes da obra de Gaspar Frutuoso, para se concluir que à Ribeira Grande, de então, chegaram todos os símbolos e requisitos do bem estar e de que esta vila cedo se apetrechou de todas as estruturas próprias de uma vila quinhentista: Igreja Matriz, Paços do Concelho, Cadeias, açougues, barracão de peixe, Praça do Município, Hospital, ermidas, Mosteiro, pontes, chafarizes, essencialmente.

   E isto quase exclusivamente graças aos recursos criados na própria vila.

   Em relativamente pouco tempo, e sem delongas nem burocracias exageradas, os habitantes do lugar da Ribeira Grande, transformaram de modo exemplar o lugar sufragâneo de Vila Franca do Campo numa das mais belas e mais ricas do reino.

   O núcleo habitacional inicial, ao que parece, surge, não se sabe com rigor exactamente onde, mas seguramente na margem nascente da ribeira que lhe deu o nome e muito provavelmente em redor da colina onde se erigiu a sua igreja Matriz, mais áreas imediatamente circunvizinhas, junto à margem da ribeira.

   Em 1515, como V. Exªs. bem sabem, não existiriam mais de duas casas na margem poente da ribeira, porém, à época em que Frutuoso escreve as suas «Saudades da Terra» (1580's): a vila ter-se-ia seguramente expandido para poente.

   No que concerne ao traçado urbanístico da vila, os anos de 1563 e 1564, ao que parece, vieram operar uma decisiva viragem, que, mudaria para sempre e por completo, até ao presente, a face da Ribeira Grande.

   O núcleo urbano que, até então, seguia o percurso das margens da ribeira, quer a poente quer a nascente, orientando-se a partir da colina da igreja e da praça do município, como já sugeri, mercê das cheias que se seguiram ao cinzeiro de 63, e à consequente destruição da maioria do burgo primitivo, bem como pela ligação vital ao exterior (à Lagoa e a Ponta Delgada), optam por uma orientação, no sentido leste oeste, ao longo desta outra ribeira, ou veia, a rua direita.

   Este período trágico e cinzento, pôs à prova, como sempre o põe em tempos difíceis, toda a determinação e a vontade dos nossos coevos. Este período marca indelével e exemplarmente a determinação deste povo, cujo sangue nos circula nas veias, e que, em pouco tempo, e sem quase ajuda externa, consegue renascer das cinzas e se alcandorar de novo ao lugar de primazia que desde o início ocupou.

   É aqui que reside, em meu entender, simultaneamente o segredo e o milagre do carácter e da personalidade do ribeiragrandense: a sua vontade e a sua determinação.

   Para além da destruição física de grande parte da vila, concomitantemente ocorre a destruição, pela alforra das colheitas, assim como ainda a catástrofe dos empreendimentos ligados ao cultivo da cana-de-açucar.

   É justo realçar um facto invulgar em outras paragens e locais do império português de então. Frutuoso refere-se -lhe com indisfarçado orgulho e muito carinho.

   Ao invés do que veio a verificar-se, por exemplo, no Brasil (aliás chaga que se mantém insolúvel ainda no presente), na Ribeira Grande, de então, não existia um fosso entre os muito ricos e os muito pobres, existindo, sim, um enorrme e maioritário estrato social constituido por remediados. Diz Frutuoso:

 

   «Pelo que parece que em nenhuma terra do mundo se acharão homens mais isentos que os pobres dela Ribeira Grande, como têm quatro sacos de trigo, 200 abóboras 10 alqueires de favas e algumas cebolas, com dois cachos de alhos e um porco à porta, e cada um tem uma casinha, ou propria ou de foro, sem sentir necessidade alguma, têm-se por mais fortes e ricos que todo o mundo.[6]»

 

   E como que a querer, reafirmar, sem sombra para dúvidas que é este o povo que operou o milagre do renascimento, Frutuoso, de modo assaz assombroso, conclui:

 

   «Mas, a gente honrada e da governança é mais macia, porque não são arreigados em raiz e suas lavouras não lhes abatam tanto conforme ao estado de suas pessoas.[7]»

 

   Cerca de meio século depois de Frutuoso, um insuspeito e corajoso franciscano natural das ilha da Flores, Frei Diogo das Chagas, na sua obra seiscentista intitulada «Espelho Cristalino em Campos de Varias Flores», confirma e reafirma o crescimento e a continuada expansão económica da vila.

   Oiçamo-lo, pois.

   A área concelhia continuava a ser no século XVII a mesma do início: uma légua ao redor do Pelourinho, símbolo da autonomia municipal.

   Em 1642, a freguesia da Matriz, que, até 1699 englobaria a Conceição, mas já não a de São Pedro, que, fora elevada a paróquia em 1577, possuia 1.155 fogos e uma população que rondava os 4.000 habitantes.

   De 1640 a 1642, a Ribeira Grande (e Diogo das Chagas soube-o pela consulta dos «Roes Quaresmais») sofreu um crescimento demográfico da ordem dos 11%. O que, só por si, constitui um atestado não só à pujança da economia ribeiragrandense assim como à forma como a riqueza era distribuida.

  

   «... e oje diz Frei Diogo das Chagas que estamos em 1646, muito mais haverá  população e tudo a Vila sustenta muito bem por sua larguesa e lavranças que são as melhores da ilha e é de tanto tráfico e trato, como a melhor vila do Reino.[8]»

 

   E, continuando a ouvir Frei Diogo das Chagas:

 

   «... se não é tão grande como a Cidade de Ponta Delgada, é um pouco menos do que ela... por a Ribeira Grande ser tão rica e grandiosa que a cidade de Ponta Delgada se lhe não avantaja ...[9]»

 

   E vaticina, antecipando-se em três séculos ao ilustre ribeiragrandense que foi Ezequiel Moreira da Silva:  «ha-de ser esta ainda no decurso dos tempos cidade.[10]» Isto em 1646. Note-se.

   E, se se quiser outro exemplo, não susceptível de ser maculado de parcialidade (aliás o que não é o caso de Diogo das Chagas), é já no século XVIII, refira-se o exemplo de outro cronista António Cordeiro e a sua obra intitulada «História Insulana.»

   Ao intitular cada um dos capítulos, referentes a cada um dos burgos islenhos, Cordeiro refere-se-lhes nestes termos:

 

   1 - «Da antiga e nobre Vila Franca de São Miguel.»

   2. «Da cidade de Ponta Delgada.»

   3. «Da nobre vila da Praya.»

   4. «Da famosa cidade de Angra.»

   E, pasme-se naquilo que ele diz acerca da Ribeira Grande.

   5 - a) «Da famosa Vila da Ribeira Grande.»

   E em nota à margem da página.

        b) «A grande e rica vila da Ribeira Grande é o maior povo que há em São Miguel, abaixo da cidade.[11]»

   É, ao que parece, no século XVII, prolongando-se até  meados do século XVIII, que se fixa o perfil arquitectónico, sóbrio mas equilibrado, da Ribeira Grande.

   «Essa modalidade arquitectónica a que julgo poder chamar-se Estilo Micaelense, possuidora de personalidade própria e inconfundível, vem, pois, pouco mais ou menos de 1600 a 1750, ...[12]»

   À luz de novos estudos e de novas descobertas no campo da história da arte ocorridas depois do insigne historiador Dr. Luís Bernardo ter escrito a sua obra, e, para o caso das ilhas destaco o Dr. Nestor de Sousa, discordamos da denominação de «Estilo Micaelense.»

   É talvez preferível tentar enquadrá-lo (verificar, pelo menos, se é possível) no «Estilo Chão e no Maneirismo português», porém, ressalvando-se-lhe pequenas e encantadoras peculiaridades  que, no entanto, não chegam para definir um estilo mas tão-só uma variante decorativa. A sua singularidade reside na singularidade decorativa dos seus linteis de pontas de diamante, duplos ou triplos, quase sempre, destacados, nos belos aventais e variantes de pedra.

   Porém, «a Ribeira Grande é hoje continua o Dr. Leite de Ataíde, o único ponto desta ilha onde existem os mais puros exemplares deste estilo arquitectónico dizia ele, dizemos nós variante decorativa.[13]»

   «Como em nenhuma outra vila [ continua Leite de Ataíde ] encontramos tão perfeitamente conjugados o interesse histórico e artístico, e o valor etnográfico com a beleza e o pitoresco ao  meio ambiente envolvente. »

   «Pelo que deixo dito, sendo a Ribeira Grande a vila açoriana que mais acentuado caracter possui ainda, e, consequenteemente, mais vivo interesse desperta, deve ser considerada como o nosso -  Lar Regional.[14]» Propõe Leite de Ataíde

   Concluo como Leite de Ataíde, fazendo minhas as suas palavras:

   «Assim a vejo e assim a sinto.[15]»

  

Solar da Chicória

   91.04.12.   

 

 

 

  

 

  

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Falta referir a fonte ................................................

[2] Fr. Agostinho Monte Alverne, ..................................................

[3] Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, ....................... ................

[4] Existiam três tipos de produtos agrícolas: 1- produto colonial (trigo); 2- produto internacional  livre (pastel e linho); 3- produto interno (também o linho mais favas, lenhas, farinhas, etc...). (V. verso p. VIIIº)

 

[5] Gaspar Frutuoso, ...........................................

[6] Idem ..............................................

[7] Idem ........................................

[8] Frei Diogo das Chagas ........................................

[9] Idem .......................................................

[10] Idem .................................................

[11] António Cordeiro, ................................... (referir as páginas)

[12] Leite de Ataíde, num artigo dedicado a Ezequiel Moreira da Silva e vindo a lume no Livro IV da sua Etnografia Arte e Vida Antiga nos Açores, ................................. Registe-se que Leite de Ataíde destaca além de Ponta Delgada a Ribeira Grande.

[13] Idem ..............................................

[14] Idem

[15] Idem ..............................................


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“Mãn d’água [1] ” Moleiros revoltados na Ribeira Grande [2] Na edição do jornal de 29 de Outubro de 1997, ao alto da primeira página, junto ao título do jornal, em letras gordas, remetendo o leitor para a página 6, a jornalista referia que: « Os moleiros cansados de esperar e ouvir promessas da Câmara da Ribeira Grande e do Governo Regional, avançaram ontem sozinhos e por conta própria para a recuperação da “ mãe d’água” de onde parte a água para os moinhos.» Deixando pairar no ar a ameaça de que, assim sendo « após a construção, os moleiros prometem vedar com blocos e cimento o acesso da água aos bombeiros voluntários, lavradores e matadouro da Ribeira Grande, que utilizam a água da levada dos moinhos da Condessa.» [3] Passou, entretanto, um mês e dezanove dias, sobre a enxurrada de 10 de Setembro que destruiu a “Mãn”, e os moleiros sem água - a sua energia gratuita -, recorriam a moinhos eléctricos e a um de água na Ribeirinha: « O meu filho[Armindo Vitória] agora [24-10-1997] só ven...

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Quem foi Madre Margarida Isabel do Apocalipse? Pequenos traços biográficos. Pretende-se, com o museu do Arcano, tal como com o dos moinhos, a arqueologia, a azulejaria, as artes e ofícios, essencialmente, continuar a implementar o Museu da Ribeira Grande - desde 1986 já existe parte aberta ao público na Casa da Cultura -, uma estrutura patrimonial que estude, conserve e explique à comunidade e com a comunidade o espaço e o tempo no concelho da Ribeira Grande, desde a sua formação e evolução geológica, passando pelas suas vertentes histórica, antropológica, sociológica, ou seja nas suas múltiplas vertentes interdisciplinares, desde então até ao presente. Madre Margarida Isabel do Apocalipse foi freira clarissa desde 1800, saindo do convento em 1832 quando os conventos foram extintos nas ilhas. Nasceu em 1779 na freguesia da Conceição e faleceu em 1858 na da Matriz, na Cidade de Ribeira Grande. Pertencia às principais famílias da vila sendo aparentada às mais importan...