Afinações, reparações e acrescentos aos modelos interpretativos da vida de Me. Margarida: comentários auto-críticos. Novo ponto da situação.
Mário
Fernando Oliveira Moura
Afinações,
reparações e acrescentos
aos
modelos interpretativos da vida de
Me.
Margarida: comentários auto-críticos.
Novo
ponto da situação.
Ribeira Grande 1996
Afinações, reparações e acrescentos
aos modelos interpretativos da vida de
Me. Margarida: comentários auto-críticos.
Novo ponto da situação.
I - Where
is your heart?
II - Quadro
paradigmático que me serve de modelo.
III - Base
conceptual do modelo; tríade: memória, espaço e tempo. Algumas explicações.
IV - Alguns
dos meus limites conhecidos.
AS PALAVRAS
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Andrade, Eugénio de, “As palavras”,
Textos literários. Poemas de Eugénio de Andrade, pág. 89 e 90.
WHERE IS YOUR HEART?
O que pretendo, no fundo, com este estudo? Tenho experimentado e sentido várias coisas. Algumas nunca havia sequer suspeitado delas. Apaixonei-me, se calhar não tão perdidamente como o Tóni pelo Benfica, mas apaixonei-me com a paixão que Santo Agostinho “recomendava”. Se calhar.
Será tentar devolver às memórias da cidade, à paróquia e a mim próprio, sendo paroquiano e cidadão, a minha versão das suas memórias? Neste caso, a vida e a obra de Me. Margarida, minha “vizinha”.
Só me interessarei pelo seu quotidiano, na medida em que ele me parece ser útil para aceder à obra, e da obra tentar aceder à sua dimensão plena; tanto estética, ideológica e técnica, tanto como um ícone de identidade local?
Tentarei recuperar a memória dos seus gestos mantidos ocultos, para os revelar à minha comunidade, para que ela os desenvolva? Recupere a arte do arcano?
O que pretenderei, ou poderei pretender, com esse diálogo?
“Time past and time future
What might have been and
what has been
Point to one end which is
always present.”
William Shakespeare, sonnet 18.
Não será o conhecimento sem sabedoria, um conhecimento mal aproveitado? Não será a sabedoria o grau mais alto do conhecimento? Isto deve ser almejado ainda, quando e após se encontrar o conhecimento?
Daria duas respostas:
1 - Sabedoria e conhecimento são unha e carne do mesmo corpo.
2 - É esta a razão do meu paradigma de “conhecimento”.
QUADRO PARADIGMÁTICO QUE ME SERVE DE MODELO
Sigo o modelo proposto por Peter L. Berger e Thomas Luckmann na “A construção social da realidade”, 8ª edição. Incluo aqui aquilo que, meio a sério, meio a brincar, designo por “metáfora do carocha ou teoria do conhecimento da lógica do bom senso (common sense).”
Já conduzi um FIAT (poderia ter sido António Gramsci), um CITROEN (Marcuse e Sartre) e um B. M. W. (Marx, não os irmãos, mas o próprio), agora irei experimentar um carocha. Parece-ma ser um bom carro.
É certo que não sou nem engenheiro mecânico nem mecânico de carros, sou antes um condutor de fim de semana. Sei, ao que julgo, o mínimo dos mínimos, o suficiente para mantê-lo a funcionar entre dois pontos, desde que não surjam grandes ou pequenas complicações.
Prefiro exprimir-me deste modo. Faço-o por formação. Adoro os diálogos Socráticos do mesmo modo e com a mesma intensidade com que me devoto aos diálogos com os meus amigos do café, da tasca, das “Poças” ou em qualquer lado que os encontre. Ao ar livre. Corro, julgo conscientemente, o risco do pensamento analógico, não deixando, porém, o pensamento analítico.
Haverá melhor maneira de apreender a totalidade (as totalidades) dos actos científicos, enquanto teoria e prática, do que o diálogo “maiêutico”, seja em Platão seja no Ti Mané Gil? Ambos já falecidos. Refiro-me, é com referi-lo, às Ciências Sociais. Ambos foram gente de e do bom senso, sem contudo, o primeiro, deixar, tal como o segundo, de desejar o absoluto. É certo que um foi mais alto do que o outro, não é menos certo também que o “senso comum” é uma das lógicas, não a única. Todo o desenvolvimento das ciências naturais foi feito contra o senso comum, porém só ele poderá falar ao real social, só ele poderá ser o mediador, a ponte. Além do mais o facto social só poderá ser explicado por ele.
O carocha é um carro bom, repito. Confesso que já tinha andado umas voltas com ele nos Estados Unidos. Prometo dar outras tantas. O êxito, dependerá, quero crer, das estradas, dos sítios por onde circula, do condutor e dos outros veículos e dos seus condutores.
Contudo, apesar de tudo, não é nem um submarino (Freud) nem um avião (metafísica), como o próprio o reconhece. Será o carro ideal para o historiador? Creio que sim. Aquele ao querer perceber e explicar a sua realidade social poderá confiar nele. É um todo o terreno, robusto, flexível e resistente. Pode levá-lo à confiança? Com as devidas cautelas.
Escrevi ainda à margem do livro outras anotações. Isto é um Volkswagen teórico de tecnologia anglo-saxónica. John Lock sempre foi cabeça de cartaz nas universidades norte-americanas. Nos anos sessenta, nas mais “progressistas”, estava em voga o existencialismo Sartriano. Ainda apanhei na década de setenta parte desta “intelligentsia”. Grande parte dos meus professores tinham feito aquele trajecto. Estiveram em todos os Woodstocks, marcharam contra o Vietname, alguns foram discípulos de Timothy Leary e eram quase todos brilhantes.
É um modelo fiável, económico, prático e funcional. Parece-me, pelo menos. Mas, existem Fiats, Peugeots, e outros, outros até que constróem os seus próprios carros. Eu compro, ou melhor, alugo-o. Satisfaz-me, por ora, embora saiba, como toda a gente saberá, que existem outros “modelos”. Apetecia-me, porém, pensar que este seria o único capaz. Felizmente não será. Sempre foi assim e sempre assim será? Insisto. Conheço pouco de mecânica.
É no “senso comum” (common sense) e com o “senso comum” que pretendo encontrar o “racionalismo” de Me. Margarida que nada tinha a ver com o cartesianismo. Era “Tridentino” e baseava-se na fé da História da Salvação.
Gostaria que o novo paradigma fosse, não sei se já o é, se o irá ser, ou se conseguirá vir a sê-lo. Qualquer que ele venha a ser, qualquer aspecto que ele venha a tomar, faço votos para que ele fosse:
1 - Todo o conhecimento será local e universal?
2 - Todo o conhecimento será auto-conhecimento?
3 - Todo o conhecimento científico visa em constituir-se em senso comum?
4 - Todo o conhecimento científico, dito natural, é científico natural?
Tenho muitas reticências, não tenho a fé do prosélito e mantenho a minha desconfiança metódica. Pirateei, como se depreenderá, o índice do livro do Prof. Boaventura de Sousa Santos. Em todo o caso, este novo paradigma, ainda tão-só, “a wonderful wishful thinking”, parece-me ir ao encontro de Berger e de Luckmann. Existem neles todos, Me. Margarida, Sousa Santos, Luckmann e Berger, uma coerência comum.
Já se tornou claro, para quem me está a seguir, que busco o meu “norte” nesta área. Menos claro, porque só de raspão confessado, muito devo às “Universidades da Avenida de Berna”: Gulbenkian e Nova.
Até que ponto o que quero encontrar se alimentará útil e validamente naquele modo de sentir, pensar e agir no mundo? Útil e válido para a minha dissertação final (“credo in crux” - te arrenego Satanás, como dizem os meus patrícios. Última do curso, mas não o último possível e desejável discurso sobre o tema.) que se debruçará (é esta a minha proposta) sobre a museologia e a museografia da biografia de uma freira que viveu “fisicamente” na Ribeira Grande entre 1779 e 1858, mas que ainda “vive entre nós”. Ou tão-só a sua biografia?
Quais os modelos ideológicos que serviram, para além do paradigma que acima tentei esboçar, como modelos ao modelo operatório que propus testar?
Antes devo, contudo, reflectir sobre o tipo de conhecimento que nos será possível obter na história. Sobretudo depois de ter falado na generalidade.
Parecendo-me, neste momento, a história ser uma ciência, se calhar arte e “savoir faire”, ou simplesmente uma ciência social, uma ciência do tempo, como o pretende Jacques Le Goff, das memórias dos homens concretos nos seus tempos e nos seus espaços. Procura, sem se obstinar, algumas verdades dos homens. Competirá ao historiador compreender os diversos sentidos que as histórias e a história (material do historiador que existe em si mesmo, para além e não obstante o historiador) tem tido em cada cultura e em cada época. Ajudar, pois, a dar algum sentido ao presente esclarecendo o passado? Veja-se o poema da página 3. Fornecer ao presente outros modos de sentir, agir e pensar, contribuindo, deste modo, para a ampliação do “corpus de reflexão” de todo o homem cidadão, possível espelho de experiências. Talvez nunca chave “do devir”. A não ser que acreditemos como Mr. Margarida acreditou.
Qual, pois, o meu possível contributo, como aprendiz de historiador, na tarefa de compreender os diversos homens e os vários mundos em que ele foi “vivendo”?
À luz daquilo que nos últimos meses tenho estado a “ingerir” e ainda mal digeri, a refeição tem sido pantagruélica, tento evitar a congestão, enquanto vou ordenando os alimentos. Sinto alguns já a chegar ao sangue e sinto-os serem transportados às células. Tenho, porém, digestões lentas e prolongadas. Por isso, tal como as três horas da digestão alimentar, mais minuto menos minuto, aguardo com curiosidade e muita expectativa a “minha digestão intelectual”, que, poderá demorar um dia, um mês, um ano ou até nunca chegar. Cada qual tem o seu tempo, cada um terá os seus circuitos neuronais mais ou menos oleados, familiarizados ou não com o alimento ingerido. O importante é ingerir não o tempo da ingestão.
Ainda enquanto ingiro e enquanto vou digerindo, enquanto ainda quase tão-só saboreio os novos pitéus, vou-me apercebendo de certos contornos, de certas formas, de certos conteúdos e parece-me vislumbrar, em voo de pássaro, a planta de um todo que me parece, insisto, coerente. Miragem? Não sei.
Como poderei dar o meu contributo para a Ribeira Grande de agora (presunção, suponho) perceber ou simplesmente para eu perceber a mulher que foi Me. Margarida Isabel do Apocalipse. Até há pouco julgava que já tinha soado a hora de propor a “musealização” da vida e da obra dela, agora, porém, neste momento, sinto que ainda não “atingi” a compreensão suficiente, capaz de me orientar funda e fundamentadamente naquela proposta. Normalmente, sei-o por experiência, estes “impasses” resolvem-se nos momentos em que quase sem tempo, com o prazo a expirar, sob pressão, surge-nos algo parecido com “uma revelação ou intuição ou ...”
Daria, primeiro, uns traços biográficos, depois, partindo destes, escreveria o guião museal (programa). Já o fiz para a cadeira do arquitecto Sommer Ribeiro, mas estou insatisfeito. Para além de não estar satisfeito, como disse, com a biografia estou igualmente insatisfeito com a encenação. Ela não me dá (ainda?) a obra total (posso dizer que o confirmei com a opinião de André Leroi-Gourhan). Aliás, já na proposta que fiz em Março à Gulbenkian, o tinha afirmado. Procuro uma nova proposta de musealização da obra, obra total, já não só objecto estético, religioso, funcional, etc., mas todo o objecto e o objecto total nas suas relações com o seu espaço e o seu tempo. No caso do arcano nos seus tempos e nos seus espaços. Já há muito o pressentira e o dissera, mas como o transpor para o museu? Como musealizar ideias? Como musealizar as três leis que Deus deu ao mundo? Como exprimir a sua intenção catequética? A sua mensagem Tridentina? E tudo isso num espaço físico concreto e limitado? Bastará ir fazendo exposições, todas à volta do tema, ao longo dos anos? Penso que é por aí que deveremos ir. Que linguagem se adequara ao paroquiano actual? Todo o paroquiano, tal como o arcano foi destinado, independentemente da idade, da cultura e do sexo? Agora, não estou tão certo nem seguro de a ter alcançado, como até há pouco presumi. Preciso ver outras coisas e ter outras experiências das que tenha pedido para ir a Mértola e a Rennes. Quero sentir naqueles sítios o que eles sentem das suas memórias e como as fazem sentir uns aos outros .
Vejo-me, por conseguinte, envolto num dilema, para o qual, não estava preparado. Ou sugiro a sua musealização baseando-me naquilo que já possuo, ainda que não esteja satisfeito, ou “atiro-me” a ela até a achar suficiente? Será isso exequível?
Ser-me-à exigido na dissertação final, ambas as coisas ou qualquer uma delas? Será possível, desejável fazê-lo deste modo? Um trabalho sobre “museologia e património”, neste âmbito, não pressuporá, antes do mais, e numa primeira fase, um estudo “aprofundado do património”, para só depois, se propor a sua exposição? O que competirá ao mestre em museologia e património? Estudo? Sim, mas o estudo racional, por etapas, cada qual cuidadosamente examinada. E qual seria o tema? “Ela e nós, ontem e hoje” (?).
Ao ler, na última revista do jornal “Expresso” (28-5-94), páginas 30 a 34 um artigo sobre Jacqueline (Kennedy) Onassis, Templesman, isso tudo, mas sempre Bouvier, ela própria, entendi um pouco mais, quero crer, de idiossincrasia. Não pude deixar de pensar na minha Me Margarida, nem de me interrogar como teria sido ela? Estaria mais próxima da “individualidade” dos Nuer, estudados por Evans-Pritchard ou desta mulher sempre Bouvier ou ... Nestes últimos dias, enquanto leio a autobiografia de Margaret Mead outras questões, outros ângulos, se me têm revelado. Agustina Bessa-Luís já me dera outros na sua monja de Lisboa. Tal como Camilo e Diderot o tinham feito. Aqui, porém revela-se-me as idiossincrasias femininas vistas por elas próprias. São, pelo menos nestas leituras, dois mundos diferentes. Outros mundos. Menos estereotipados e muito mais complexos e ricos.
Ninguém, pelo menos eu, aprende nada, a não ser que esteja “predisposto” (seja capaz em todos os sentidos) a aprendê-lo. Jacqueline e Mead, nestes últimos dias, insisto, abriram-me outras portas “da alma de Me. Margarida”. “Me. Margarida foi freira e considerou-se sempre como tal”. Portanto, a sua biografia (as suas biografias) terão de ter como eixo ou como atractor a sua condição de freira. Se me perguntarem a mim o que me considero, provavelmente, direi , tal como digo e redigo, que sou um aprendiz de historiador. E ao Eusébio? Jogador de futebol. Ao Carlos Lopes? Atleta de fundo. E o Mário Soares? Político. Apesar de todos serem ou terem sido muito mais. Ainda por cima, ela sempre se confessou ser freira, sendo sepultada, por vontade expressa, com o hábito da sua congregação. Só agora lhe dou toda a razão.
Ter sido freira dir-nos-á mais do que ter sido simplesmente mulher. Será caso para se dizer que o senso comum nem sempre vê melhor que uma abordagem científica? Penso que sim. A mulher era tida e havida como a origem do mal, veja-se a nossa mãe Eva, da morte e da vida. Era temida. Era necessário aparecer Maria, mãe de Cristo, para se ter uma possibilidade, um modelo, que invertesse a situação. Não havia “sequer ainda” a noção de sexo feminino já que a mulher fora tirada da costela de Adão, e, pior do que tudo, enquanto este dormia. Adão, é certo, pedira a Deus uma companhia. Adão fora logo depois ludibriado pela tentação da maçã e, por isso, todos os Adões, desde então, têm o pedaço fatal atravessado na garganta, mas não as Evas. Além do mais Sto. Agostinho (trata dele no Arcano) considerava-as, na sua douta sapiência, um “mal necessário”. (Já não era nada mal) São Paulo na epístola aos Telassonicences (salvo erro) adverte a mulher de que ela devia toda a obediência ao marido. Advertia e adverte para desespero da minha mulher no dia do nosso casamento. Preferi outra epístola de São Paulo, a que ele define magistralmente o amor. É esta freira concreta que eu quero perceber.
Base conceptual do modelo: tríade, memória, espaço e tempo. Algumas explicações.
Farei agora um esquema que sintetize a “filosofia que alimenta” o modelo operativo ou o modelo conceptual que sustenta o operativo. Não esquecendo, ou procurando não esquecer, que ambos se inserem (pelo menos é assim que penso) no modelo paradigmático que atrás tentei enunciar. Aqui, já não colocarei objecções à utilização do termo biografia, já que o empregarei no sentido de vida e obra como tenho implicitamente defendido. Escuso-me de repeti-lo.
BIOGRAFIA (inter)ligações complexas e constantes
Na Memória - ritos/oralidade/escrituralidade/festas/identidades (idiossincrasias/ /pessoalidade/corporalidade).
Mas interagindo num tempo
“vivido” tanto ciclicamente (vida dela, dos santos seus modelos de vida e dos
outros, de Cristo “o Modelo”, das colheitas e da vida de cada ser vivo, tanto
animal como escravo como homem ) como de “ascensão” após a queda do paraíso
celeste. A meu ver, helicoidal. Encontrei, ontem, numa leitura que fiz, em
N. Kratzmann e Paul Ricoeur, numa leitura em diagonal na feira do livro, num ou
no outro, ou em ambos, tenho que o confirmar, uma ideia parecida com a minha.
Julgo que se referia a “uma espiral alargada ao infinito”. Claro num tempo
que existe num espaço. Tempo, espaço e memória, constituem, assim, o
território da minha biografia da freira clarissa Margarida.
Há dias reli um texto que escrevi sobre a minha experiência de “imigrante sempre regressante” e recordei-me de um outro de Paul Connerton, “Como as sociedades recordam”, salvo erro, a minha memória já não é o que era, antes lia um poema uma ou duas vezes e fixava-o, e dei por mim assentando algumas ideias dispersas sobre a memória. Memória, mas que memória?
As memórias de Me. Margarida são as de uma freira. Ao ouvir com atenção o excelente trabalho sobre a colecção de Orlando Vitorino o meu pensamento voava para Me. Margarida. Evoquei ou rememorei os seus testamentos , os seus arcanos, a festa de São João Evangelista, das suas casas, do que resta do convento. Para além da relação jurídica, a Ana foi me ajudando a revelar, por intermédio de um homem do século XX, a relação, ou a importância da relação, “feminina” de Margarida com a sua memória material. Já o tinha atingido, mas não lhe tinha ligado tanta importância. Porque é que ela oferece o seu melhor capote à prima Umbelina? Porque ela fora a sua melhor amiga, segunda ela o confessa no testamento. Por exemplo. Os seus livros, etc... Descobri, para além do seu valor monetário, o seu valor de chave para abrir a própria memória dela. Já comecei a experimentar, com bons resultados, devo confessar. O arcano como seu espelho? Como seu e da comunidade que se foi revendo nela. E ela na comunidade, nunca o esqueçamos. Hoje, ao avançar na autobiografia de Margaret Mead, pareceu-me sentir que descobrira “o valor das memórias de Margarida”, a freira. Tenho um possível filão a explorar.
Ao fim e ao cabo, ela além dos quadros mais circunstanciais, como sejam, a Igreja Militante, o dogma da Imaculada Conceição, entre outros, selecciona, repito, selecciona, portanto opta. Ao fazê-lo revela as suas preferências. Deixa-se ver. A sua selecção é chave para a compreensão da sua mentalidade. Mentalidade que atravessa o “Cisma de 1832 a 1841 entre a Santa Sé e o estado português, a assinatura da concordata de 1848, a possibilidade desde 1835, salvo erro, das freiras serem consideradas à luz da lei, e no que concerne a heranças, quase iguais aos outros portugueses, situação que viria a ser alcançada com o código civil.
Descobri que a freira não era uma mulher igual às outras perante a lei. Isto acontecera desde o tempo do marquês de Pombal. Desde que ele legislara sobre a desamortização dos bens. Aliás tal ia constituir o elemento fulcral nos anos seguintes. Penso também ter começado a descobrir, ao invés do que pensara, que o Deus dela era autoritário mas não chegava a ser ditador. Tenho que explorar mais esta pista e só o poderei fazer quando regressar à ilha.
Relendo algumas notas, à distância, penso que terei de corrigir aquela visão. Até mesmo desconhecia o facto de ter havido em 1868/1870 o concílio Vaticano I. Facto que talvez me Leve a ter da alterar muito do que antes disse. E o que disse era essencial. A etno-história que desenvolvi para , no presente, “olear” a compreensão mais “humana” dos documentos que recolhi baseado na “evidência” de que a geração que entrevistei era herdeira de Trento. Eu procuro sempre o homem nos documentos.
Ao meditar sobre um artigo que li na enciclopédia “Logos” sobre o tempo e o espaço, cheguei à conclusão que a minha ignorância tinha sido atrevida. O tema é mais complicado do que supora. Enquanto lia, ia escrevinhando algumas reflexões, algumas das quais passo, sem grandes preocupações, a registar.
A racionalidade católica refiro-me à época de Me. Margarida, ainda que o pudesse dizer da actual, ancorada na cosmologia e na cosmogonia bíblicas, fala da queda como o afastamento e o corte com o “eterno e o ilimitado”, onde só pode existir a verdadeira felicidade, lá onde mora o pai e toda a sua corte celestial. Um acto de liberdade “irresponsável” (será que eu estou a interpretar correctamente?), uma desobediência, precipitou a queda. O retorno, está-se processando, quase desde então, porque Deus se condoera do homem, e faz-se no sentido da subida, da ascensão. O céu está sempre no alto, tal como o inferno é referido nas profundezas. O ciclo em que o fim e o começo se confundem, segundo Gusdorf.
Sinto que, para tentar escapar ao “anacronismo”, ou seja escapar ou evitar impor o meu tempo de agora, ao tempo dos meus antepassados eu deva deixar de ser “presentocêntrico” (não sei qual é validade deste neologismo. Lá que ele é útil, não o nego. Não me vão os gramáticos, e com razão, me crucificar). Só assim poderei, talvez, insisto no talvez, aceder a um conhecimento suficiente do passado (mesmo sendo uma representação da memória, desde que uma memória e um passado autenticados. Memória e passado serão a mesma coisa? Nem tudo o que passou constitui memória.) como uma outra cultura, que, no meu caso, herdeiro daquele espaço e daquela cultura, poderei dizer que a herdei, passe a redundância e retenha-se o sentido.
Naquela “cultura” o progresso fazia-se para o alto. Ao tentar perceber a vida de Margarida terei de “ouvi-la no seu tempo”. E na sua cultura. A “audição” arqueológica (passe a expressão) e fragmentária, e certo, nunca será, ao que suponho, ou ao que julgo saber, a audição do antropólogo ou do etnólogo ou do sociólogo. Em certos casos acontecerá o mesmo. E à audição do que chegou até nós. Tenho que torná-lo audível e só o conseguirei fazer na medida em que o consiga “traduzir” para o presente o entender. Sem, contudo o desfigurar. O que, convenhamos, não é nada fácil. Mas é aliciante, reconheça-mo-lo. Sinto a euforia, às vezes, idêntica à que experimentava quando marcava um golo num desafio difícil. Esta tradução, à primeira vista, assemelha-se à tradução do galego para o português. Porém, à medida que aprofundo a audição, afasta--se para o castelhano e dirige-se para as línguas latinas. Julgo que a metáfora, pelo menos presumo, ajuda a perceber. Tem raiz comum, todos o sabemos, partilha do mesmo espaço, mas, aqui residirá o busílis da questão. Até onde nos levará esta aparente semelhança?
É claro que ao tentar fazer a história dos que me antecederam no meu espaço cultural (de memória), tanto geográfico como humano, eu estarei mais perto de encontrar o outro dentro de mim do que fora de mim. Às vezes não é. Não será tão fácil como fazer subir ao consciente o inconsciente. Nem sequer se trata da mesma coisa.
Repito e insisto. Mesmo sendo ambos (em tempos diferentes), e, até certo ponto, parceiros do mesmo núcleo duro cultural, somos outros. Até que ponto não sei.
Os outros que já foram, ao que parece, foram para “debaixo” dos outros de então à espera, tal como todos, do final dos tempos, momento em que os justos pela graça de Deus ascenderão ao céu. De corpo e alma.
A “minha colega” Me. Margarida pode ser considerada, com algumas reservas, “historiadora” (não será o arcano uma história da salvação? Aliás é uma forma de expressão catequética muito comum no catolicismo). Recorreu a sêmola de cereais para materializar a sua versão da história da salvação, e, recorria ao verbo, quando guiava os seus visitantes. Alguns contemporâneos que a visitaram deixam disso algum eco. Gostaria de saber até onde poderei ir com a análise destes testemunhos? Ela própria deixa outros. Ambos estão “razoavelmente” documentados. Numa proposta de musealização que fiz na cadeira do arq. Sommer, como já antes referi, propunha que a explicação do arcano deveria ser dada “pela voz da sua autora”.
Teria sido uma historiadora, mais do que cronista, pois ia além do registo e “analisava” metafórica e analogicamente o passado. Será que as fontes me autorizam esta interpretação? Historiadora, como muitos outros historiadores sacros, alguns célebres outros menos, que, pela fé pertenciam ao povo de Deus, ao povo a quem a história da salvação se destinava. Como ainda hoje para quem acredita.
Cada vez mais penso ver no arcano, nos seus quadros seleccionados, uma resposta actual, de então, quero eu dizer, às ânsias do dia a dia daquela comunidade católica ameaçada, ou julgando-se estar ameaçada, não interessa, por ataques do estado e dos estados bem como pela descrença, alguns referem-se a descristianização, que campeava “pelo mundo fora”. Suspeito até da “correlação” muito estreita, algumas julgo já ter adiantado, preciso, todavia, de explorar o assunto mal regresse à Ribeira Grande, entre o discurso do clero local e os quadros do arcano. As três leis que Deus dera ao mundo para que nos pudéssemos salvar, perenes e eternas, por exemplo, não se contraporão, por si sós, sem mais, analogicamente, carecendo de mais comentários, às leis do estado, limitadas e caducas? Reflexo típico de uma cultura de resistência? Veja-se o que se passa hoje em Timor Leste, por exemplo. Mão será esta a ideia central da obra? Ou será que estou a fazer interpretações fantasiosas?
Espaços/Memórias
As memórias variam com o passar dos tempos (expressão católica). É importante a relação com as pessoas relevantes, ou seja aqueles que potencialmente foram influentes ou serviram de modelo comportamental: pai, mãe, irmã, irmão, avô, avó, tio, primo, prima, prior da Matriz, freiras, confessor. “Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”.
A memória contida e transmitida nos livros da sua biblioteca. A sua memória biológica. Há na sua vida uma grande influência do tio Caetano, da avó materna, da irmã Ana e da prima Umbelina. São João Evangelista, santa Margarida e Nossa Senhora serviram de modelos. Tenho consciência dos limites, julgo ter ao menos, desta interpretação. Por exemplo, só para enquadrar o problema, me referi à memória biológica. Só talvez se encontrasse as “ossadas” dela esta abordagem se revelasse útil.
IMIGRANTES / REGRESSANTES
A este propósito fiz um trabalho, quase de introspecção, no qual verificava o modo como as culturas dos imigrantes/regressantes nos podem elucidar sobre os mecanismos de relações entre espaços, memórias e tempos. Ao pensar na biografia de Me. Margarida não posso deixar de recorrer a ele. Gostaria que lhe desse uma vista de olhos.
Espaços na Ribeira Grande
DEUS
no
tempo ascendente helicoidal
Espaço
na Vila
HOMEM
(real e 1. Sob - Sobre -
em cima
acreditado)
Mortos pessoas Deus e a
e almas corte
celeste
QUEDA Inferno Deus dos anjos
Santos
(Espaços na Igreja
vertical) Casas/Convento
Vila
Plataforma Encontro
do Mundo
dos espaços visível
e invisível
na
horizontal Demónios
etc.
2. Fora da Vila - Fora da Vila, mas na ilha,
(espaços na nas ilhas, no Brasil, no reino,
horizontal) em espaços mais longínquos.
Obs. Se calhar esta será
a hierarquia dos espaços para Me. Margarida
Espaços sobre de Me. Margarida - Casa na rua de São Francisco, igreja paroquial de Nossa Senhora da Conceição, o convento de Jesus, a casa da rua das Pedras, as de João d’Horta, as casas das avós da prima do irmão, a igreja Matriz, sobretudo o altar de São João. O Brasil, Água de Pau.
Espaços sob de Margarida - Covais do convento de Jesus (Ana), covais dos Frades (avó, mãe e tio), covais da igreja da Conceição (o tio e o pai) e no cemitério novo de Nossa Senhora da Estrela (o irmão e colegas freiras).
Em cima - Céus onde está Deus.
O sob, espaço dos mortos e lugar tenebroso do inferno. A ascensão dos mortos ao espaço de cima através da salvação. A Bíblia é uma história da Salvação.
Tempos na Ribeira Grande
Conforme
a perspectiva: 1 -
Católica/ascendente helicoidal ou cíclica e linear ascendente.
2 - Tipo sincrético - a visão camponesa por
ser religiosa e por trazer em si memórias pré-cristãs é sincrética. Coincide
com a 1.
3
- Tipo individual/pessoal.
Apesar das a)
- Tempo biológico. Viveu 79 anos e tantos meses.
diferenças b)
- Tempo psicológico. O tempo que passou retida na cama do
a Matriz convento de certo não foi sentido da
mesma maneira que sentiu
é quando não estava. Por exemplo.
Religiosa. 4
- Tempo social (?) - tempo da elite a que Margarida pertencia.
5
- Tempo eclesial puro.
a)
calendário cristão.
tempo dos sinos, tanto do convento como da
paróquia. Tempos
diferentes.
b)
- Tempo litúrgico anual.
Não existirá um só tempo mas vários tempos. Não existirá também a noção de progresso no futuro, mas a noção de melhoria/ascensão de retorno a um tempo em que, tal como Gusdorf disse, fim e princípio se tocam. Progresso é recuperar aquilo que já foi feito. Progresso ético e moral, nunca o tecnológico. Este último era tido com certa desconfiança. Muitas vezes aliado ao diabólico. Veja-se a imagem dos alquimistas.
Passarei a transcrever alguns aspectos que me ocorreram os quais considero relevantes. As leis que Deus dera ao mundo eram também as leis do mundo. A lei natural, de Moisés e da Graça. As leis dos cânones, passo a redundância, tridentinos eram leis aceites e incorporadas nas ordenações Filipinas. Portanto, existira uma só lei.
O liberalismo e a sua legislação
ferira as leis divinas e as leis do estado. O arcano ao acentuar as três leis,
parece-me sobrelevar aquelas às outras. Afinal a vida eterna, o bem mais
precioso que o homem pode aspirar, obtém-se obedecendo a elas e não àquelas.
O arcano parece chamar insensatos e cegos aos liberais por estes desprezarem a vida eterna. Não é, contudo uma obra de vingança, mas uma obra para reavivar a memória. O facto das coisas parecerem estar a mudar na política portuguesa talvez lhe tivesse dado a esperança de que o homem estivesse a regressar ao bom senso. Não pretendeu ela instituir uma festa? Ao bom senso católico ao seu espaço e às suas memórias. Em conversas que mantive com os meus conterrâneos actuais, detectei, sempre que se sentiam ameaçados pelo presente, a tendência para se ficarem num tempo, algures no seu passado, real ou imaginado. Também notei reacções a esta postura, no estilo, “então não te lembras já dos tempos de miséria”. E outros. “Para trás mija a burra!” E Madre Margarida? Tudo me leva a crer que era uma convicta mas prudente passadista. No sentido católico. Ela , a meu ver, e de acordo com a filosofia cristã, não se considerava “reaccionária”, se alguma vez a ideia lhe passou pela cabeça, reaccionários seriam os que reagiam contra a única via capaz de obter a salvação.
A interacção dos três factores (agentes) - tempo, espaço e memória - parece-me dar vida à vida colectiva e a de cada um. Será desta interacção que surgirá, ou irão surgindo, os diferentes tempos de Margarida. Mais espaços e memórias, bem entendido. Dentro destes três parâmetros, destas coordenadas, andam à vontade, sem esforço, espontaneamente, os ritos, a memória materializada. Ou seja, entre outros, a entrada para o convento, a comunhão, o baptismo, a imagem de São João Evangelista, o Arcano, o testamento, o Rol , o Codicilo, a sua casa, o quintal, a rua, etc...
Tudo isso serão memórias. Estabelecer a relação valorativa entre elas, os espaços e as memórias concretas, e ao longo dos tempos, seria cartografar as suas memórias, seria perceber a sua vida e a sua obra. Tarefa possível? As suas identidades emergem desta relação (a imagem dela foi evoluindo ou foi-se alterando - filha, irmã, freira, nova, velha, ribeiragrandense, etc...)
A partir dos anos 40, século XIX, a sua relação com a comunidade intensifica-se. Porquê? A memória dela passa a ser relevante para a comunidade: festa de São João, o Arcano, por um lado, por outro, segundo a tradição, os seus conselhos artísticos (Não confirmado satisfatoriamente, registe-se.) são procurados. A sua memória torna-se influente porque se tornara relevante para a identidade da comunidade. A identidade, insisto, não pode ser entendida separada da memória, pois, sem memória não pode haver identidade.
Mas como fazer isso? Como dar carne e osso ao modelo? Estou a ler, como me recomendou, o Lutero. Acrescentei, como já referi, a autobiografia de Margaret Mead. Irei de seguida tentar o Miguel Torga.
Alguns dos meus limites
conhecidos
Tudo tem limites. É certo que já fui além dos limites iniciais. Descobri o segredo bem guardado da feitura da massa do arcano. Descobri que abrindo o móvel não se esboroava o arcano. Descobri a freira. Hei-de descobrir ainda outras relações. Mas tudo tem limites, repito. Além do mais nem tudo me interessará? Pelo menos à pergunta que formulei.
A sua história da salvação é uma biografia de Cristo. Eu e ela, dois biógrafos limitados. Duas representações de realidades complexas. Quanto mais conheço, ou presumo conhecer os homens, mais tenho a sensação de a perceber melhor. Sinto, a terminar mais este ponto da situação que explorei um outro patamar e descobri que nunca a descobrirei totalmente. Descobrirei sempre o suficiente circunstancial? Sempre o suficiente que dependerá do ângulo da pergunta? Felizmente, por muito que nos custe, e, felizmente, a vida de cada um de nós será sempre mais rica do que supomos. Mais subtil, feita de uma coerência irregular e livre que alguns denominam simplisticamente de incoerência.
É evidente que eu também sou limitado. Acresce ainda que a oralidade era predominante. Como “apreender”, para além do sentido, o conteúdo específico, por exemplo, das relações familiares? Significaria, em parte, a aceder à sua idiossincrasia. É certo que descobrimos fragmentos “dela”, tal como especulamos no teste que fizemos ao modelo 1. Apareceu-nos algo tímida, muito senhora de si, perseverante, minuciosa, boa conhecedora da alma humana, digna. Mas, apesar de tudo, não deixa de ser especulação.
Estes documentos orais perderam-se com ela. A sua obra e o pouco que nos resta dela são comportamentos, exteriorizações, manifestações desta idiossincrasia. Revelarão aquilo que ela pretendeu revelar? Serão ao invés revelações espontâneas? Serão ambas as coisas em ocasiões diferentes? Onde estará ela?
A memória oral dominante dificulta o conhecimento dela. A falta de provas, quero eu dizer. Que livros lia? Sabemos, em parte, os livros, ou alguns dos livros que possuía e que possivelmente lia e meditava ou consultava. É o testamento que no-lo diz, já o dissemos. História Sagrada, em vários volumes, suponho dois. Uma biografia de Santa Margarida de Cortona. O modelo, ou um dos modelos comportamentais de Margarida, e fonte da sua inspiração iconográfica. Uma das fontes, precise-se.
Nunca chegarei a percebê-la como gostaria, ficarei sempre aquém. As aproximações parecerão plausíveis, serão suficientes, mas serão realmente representativas do seu todo? Tê-la-ei deformado, tê-la-ei recriado à minha imagem e semelhança, como acontece a todo o criador? Como escaparei a essa sina? Serão as cautelas que me ensinaram, suficientes para exorcizar este mal? Será mal?
Em qualquer caso, nunca, insisto nunca, gostaria de ver alguém que me lesse e não me ajudasse a ver. Detestaria que alguém que me lesse não desconfiasse da minha versão.
Mário Fernando Oliveira Moura
29-05-1994
Cacém c. 11:07.
Descobri há dias um indício deveras interessante. As verdadeiras freiras não poderiam testar como ela o fez. Ao morrer, ao que tudo indica, morreu “renegada”. Para poder testar teve de deixar de ser freira, à luz da lei do país. Como explicar que ela cedeu à lei do estado, sem ceder à lei de Deus? Como continuaria ela freira, perante a sua consciência, se perante a lei, tivera de o renegar? Só uma egressa o poderia fazer, nunca uma freira. Todavia, ela confessa que o poderia fazer à luz dos direitos tanto canónico como civil. Não obstante, ela enterra-se amortalhada no seu hábito de freira clarissa. Morrera renegada à face da lei, e freira à face da sua consciência?
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