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Azulejos oitocentistas da casa das meninas Jordoas na cidade da Ribeira Grande

 

 

Mário Fernando Oliveira Moura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Azulejos oitocentistas da casa das meninas Jordoas[1] na cidade da Ribeira Grande

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ribeira Grande 1992

 

       A suave luz matinal reverberava na superfície azulejada da casa n.º 84, rua de Nossa Senhora da Conceição, cidade da Ribeira Grande. ( f. 1 )

         Do carro alugado saíram turistas. O guia, em voz audível, começou a explicar:

         Os ribeiragrandenses de oitocentos, confundindo o azulejo com o tijolo e desconhecendo ou dispensando o rigor matemático dos números de polícia assim tê-la-iam baptizado.

         João Vieira Jordão, um emigrante endinheirado regressado do Brasil tê-la-ia construído ou azulejado, a crer na placa azulejar datada do frontispício, em 1874, ou em ano muito próximo.[2]

          Pertencia ao partido progressista, era  correligionário do editor do jornal “Noticiarista”, foi vereador municipal e explorava  estufas de ananás no Rosário:

 

“Ananazes. Presentes, Festejos. Banquetes!! Ananazes. Divina  Fructa. Vende-se todos os dias para comer já, e para embarque. Todos os tamanhos de primeira qualidade a esco-lher na estufa a 500 rs o Kilo.Vende o Estufeiro.Nas estufas do Jordão, ao Rozário, d’esta Villa. Há caixinhas promptas para encaixotar.”[3]

 

         Este edifício atrai logo o olhar. Tal deve-se não só ao facto de ser o único azulejado ali por perto, mas também ao equilíbrio volumétrico que transmite assim como ao entendimento que resulta do diálogo encetado entre o azulejo e a estrutura arquitectónica.

         É um exemplar bem conseguido do bom aproveitamento das potencialidades do azulejo nacional de exterior e de interior da 2ª metade do século XIX.

         Criteriosamente aplicados, espalhavam-se pelo interior e pelo exterior do edifício. Até há uma década atrás, seria possível apreciar inseridos no contexto arquitectónico, seis modelos e duas ligeiras variantes de azulejaria oitocentista, um dos quais, o da fachada, considerado único,[4] outro, o da antiga cozinha, conhecido, mas muito raro.[5]

         Lamentavelmente, o anterior proprietário, ao reorganizar o espaço interior, permitiu que os arrancassem. Recentemente o museu local conseguiu expor exemplares de cada um dos modelos retirados.[6]

         Na fachada, virada para a rua principal da cidade, a escassos metros da igreja paroquial, encontram-se, razoavelmente conservados, quatro exemplares.[7]

         Estudê-mo-los. A parte inferior do beiral sobreposta à cimalha foi revestida de placas cerâmicas rectangulares relevadas estilizando, com elegância, uma forma vegetal próxima da flor-de-lis.[8]

         Parte deste motivo estilizado repete-se nos panos centrais do frontispício.[9] Diferem, no entanto, os últimos dos primeiros por serem mais pequenos e quadrangulares.[10]

         Acompanhando os vértices do edifício e percorrendo a cimalha, duplicando uma primeira barra de argamassa pintada em amarelo discreto, segue uma barra de azulejos rectangulares relevados de motivos vegetais estilizados.[11]

         Ao azul anil dos azulejos do beiral e dos do pano central acrescentou-se, no seu motivo quadrifoliado central, um amarelo mais vistoso.

         A separar o rés-do-chão do 1º andar está um friso de azulejos estampados manualmente, em dois tons de azul.[12]

         São duas faixas exteriores paralelas, ambas em azul anil, e uma terceira central, em azul marinho. Na central estamparam-se discretos motivos florais.

         Quanto a datas, João Manuel dos Santos Simões, adiantou:

 

« Julgo que os de relevo da  fachada, os ornatos do telhado[13] e as estatuetas,[14] terão sido importadas do Continente, com probabilidade de Gaia (Devezas ?) centro bem conhecido para aqueles tipos de cerâmica e particularmente favorecido por “ brasileiros” daquém e dalém Atlântico.»[15]

    

         Sem quaisquer provas, a não ser os próprios azulejos, limitado à observação do padrão colocado, sem poder examinar o tardoz, ou analisar a pasta e o vidrado, [16]desconhecendo documentos de encomenda, os azulejos da casa da rua Direita tanto poderão ser originários  da Lagoa, do Porto, ou de outro  qualquer local. No Porto e no Brasil, tanto quanto se sabe, não se conhece o modelo patente nas fotografias 2 e 3.[17] Haveria, além do mais, que fazer um levantamento exaustivo dos padrões oitocentistas de fachada, bem como estudar os catálogos das fábricas. Ao certo, sabe-se que os fundadores das fábricas da Lagoa vieram da área do Porto. Ao certo, conhecem-se alguns milhares de padrões,  e reconhece-se  o modo como a Lagoa e as demais fábricas do país os copiavam umas das outras. Mesmo a análise das pastas poderá não ser um método seguro, já que tanto as fábricas do norte como as do centro, sul e ilhas, tanto quanto se sabe, recorriam a pastas e  a vidrados  muito semelhantes.[18] Talvez só o consigamos através do estudo comparativo  das marcas distintivas no tardoz das diversas fábricas,[19] da análise  mais detalhada da composição dos vidrados, ou ainda através da documentação referente à casa ou à fábrica que os produziu.  Até ao momento não encontrámos nada referente a encomendas para a  casa das “Meninas Jordoas”. Dada a natureza complexa e refinada  do azulejamento daquela fachada, com frisos e demais elementos de enquadramento, sou tentado a pensar que seria mais lógico e talvez mais económico, já que se produzia azulejo na Lagoa, mandá-los vir de lá. Todavia, conclusões definitivas e irrefutáveis só perante a existência de provas. Adianto tão-só hipóteses. Santos Simões não se  referiu aos azulejos lisos de estampilha da fachada.[20]

         O mesmo investigador, referindo-se à casa, escreveu :

        

« É dos mais completos exemplares de fachada azulejada e dos mais belos comprovando eloquentemente ‘ o brasileiro’ desta modalidade de revestimento que tanto haveria de proliferar em Portugal no século XIX.»[21]

 

         Antes de entrarmos no n.º 84 e franquearmos a formosa cancela que separa o bulício exterior da calma interior, admiremos as duas belas estatuetas cerâmicas alusivas ao comércio (?) e à industria, colocadas nos ângulos superiores do edifício.[22]

         O pequeno saguão abre-se. Envolve-o um silhar de azulejos estampados manualmente subindo a escada de pedra, encurvando-se pela direita e abrindo-se, pela esquerda, numa pequena balaustrada de acácia e de corrimão de pinho resinoso. [23]

         Uma luz doce e branda introduz-se por um lanternim rasgado no telhado.

         Lá em cima, ainda há dez anos, o visitante poderia ver na cozinha um singelo mas notável conjunto de azulejos de estampagem manual de sugestão “ trompe l ‘oeil “.[24]

         Saindo ao alpendre, hoje sala de estar e salão de jogos, ver-se-iam outros modelos.

          Recobrindo o mainel, e por certo alastrando-se às áreas envolventes, corria um silhar de composição enxaquetada .[25]

         Rematava-o, possivelmente, o friso inspirado no modelo da fachada exterior.[26] Porém, este de menores dimensões, recorre a azuis mais claros e mantém o branco esmalte na faixa central.

         Tal indicará outra execução técnica, talvez mesmo outra proveniência.

         Aliás, este e os demais do interior, como insinuou Santos Simões, poderão provir dos ‘ engenhos’ da vila Lagoa ( São Miguel ) já activos desde 1862.[27] Pelas mesmas razões aduzidas anteriormente, não vejo que se possa provar, ou não, a sua ligação à Lagoa.

         A ‘casa de tijolo’ da Ribeira Grande, seja pela variante de modelos que alberga e albergou seja, como já foi referido, pelo diálogo que propõe entre estes e o edifício, constituía e constitui um precioso mostruário da produção e da aplicação azulejar oitocentista.

         Cumpre tanto o objectivo funcional de protecção das alvenarias e de embaratecimento da sua manutenção como atinge o objectivo estético-estrutural ao aliar-se, tal como sempre o fez na azulejaria portuguesa à reedificarão dialogante dos espaços e dos vãos arquitectónicos.

         O azulejo permite quebrar a hegemonia das linhas verticais e horizontais próprias da estrutura arquitectónica ao introduzir linhas e ritmos divergentes, regra geral oblíquos.

         No caso dos relevados da fachada principal, oferece-se ao espectador atento, incessantes jogos de luz e sombra, subtis infinitudes cromáticas, desmultiplicações do espaço, agora perpetuamente agitado.

         É como se a parede, estática por natureza, se movimentasse tal como o desejava Barromini, nos tempos áureos do barroco romano. Se tornasse espelho interventor, sisudo às vezes, lúdico sempre, do ambiente envolvente.

         Nestas fachadas, os arquitectos são as formas e a luz.

         Esta casa integra-se perfeita e exemplarmente no surto azulejar português que se seguiu à Regeneração política liberal de 1850. Atesta, simultaneamente uma continuação com a sua herança matricial, de quinhentos a oitocentos, ao mesmo tempo que se abre, tal como sempre se abriu, às sugestões, aos gostos e às técnicas de então sopradas dos quatro cantos do planeta.

O carro encheu-se de novo e arrancou rumo ao museu: o guia deu descanso à garganta.

 

Técnica

 

Os fragmentos de relevados,  iguais aos do frontispício da casa em questão, de motivos flor-de-lis, parecem ser de meio-relevo prensados manualmente - as partes mais salientes não foram adelgaçadas : barro amarelo prensado com um molde e um contramolde. A sua superfície  esmaltada de branco ‘ recebia pintura opaca muito grosseira, a azul, amarelo ou verde, destinada apenas a colorir os volumes ou a revestir o fundo liso, estando totalmente ausentes os efeitos picturais da mesma.’[28] Não têm marcas no tardoz.

Pelo que observei na superfície dos restantes relevados colocados no local, seguem o que se disse acima.

Quanto aos estampilhados, apesar de execução distinta, temos, ao que parece, do tipo manual: ‘ consistia na utilização de papel encerado, a estampilha, no qual eram recortados os motivos a reproduzir nos azulejos. A passagem de uma trincha com tinta sobre este papel, colocado na superfície esmaltada dos azulejos, deixava nestes a decoração pretendida, frequentemente acompanhada pela marca dos pêlos da trincha e por ligeiros alastramentos da tinta junto dos limites’[29]  



[1]Cf. Livro de Registo de Sepulturas do Cemitério de Nossa Senhora Da Estrela,  uma das meninas Jordoas, Beatriz Noémia Dutra Jordão,  faleceu aos 96 anos, na freguesia da Conceição,  no dia 28 de Junho de 1980, sepultando-se no dia seguinte no cemitério de Nossa Senhora da Estrela,  freguesia da Matriz da Ribeira Grande, no quartel n.º 4, jazida n.º31.

[2] A data pode-se referir tão-só ao seu azulejamento.

ARFRG , Matriz Predial Rústica Freguesia da Conceição, Ribeira Grande, n.º153

« Rua Direita- Conceição - João Vieira Jordão [riscado]; 1899 - D. Maria da Glória Dutra Jordão e irmão. 1905- 1904 - Lydia Dutra Jordão e irmão ; Izabel Maria Dutra Jordão.»

[3]“O Noticiarista”, 3 de Agosto de 1887

[4] Vide foto. 3

[5] Vide foto. 7

[6] Vide foto. 7-9

[7]  Vide foto. 1

[8]  Vide foto 2

[9] Vide foto. 3

[10] Vide também desenhos 2-4 de fragmentos que encontrei em Março de 1991 em uma vala de saneamento na rua el-rei D. Carlos I, que corria paralela à berma do passeio norte da ponte do Paraíso, no troço entre a entrada  principal do Teatro Ribeiragrandense e a referida ponte. Já perto e dentro da área da ponte, para ser mais exacto. Tendo sido a mesma ampliada em 1875 ( conforme se poderá ler nas: « Memórias da ponte dos oito arcos da Ribeira Grande , Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1996 - Mário Moura ) e a casa  plausivelmente azulejada em 1874 ( conforme cartela datada), poder-se-á supor que os fragmentos, à mistura com entulho,  tenham vindo daquela casa para as obras de ampliação da ponte do Paraíso. O desenho n.º 1, igual aos azulejos do friso  ( foto. n.º 5) também foi encontrado naquele troço. Mais uma prova ou pura coincidência. Estes fragmentos estão expostos no Museu da Ribeira Grande  

[11] Vide foto. 4

[12] Vide foto. 1 e 5 e compare-se com 9. Este último esteve colocado no interior e parece de execução inferior.

[13] Vide foto. 2-4

[14] Vide foto. 11

[15] Simões, João Manuel dos Santos, Azulejaria Portuguesa na Madeira e nos Açores, Gulbenkian, Lisboa, 1963,  p. 128

[16] Pode ser feito.

[17] Departamento de Museus e Património Cultural da C.M. do Porto, 24-10-1997: « Após a recepção da fotografia referente aos azulejos de fachada de uma casa na cidade da Ribeira Grande, procurei este padrão junto do nosso ficheiro de azulejos recolhidos na cidade do Porto. Como já seria de esperar, até pelas informações que nos envia, não temos no nosso depósito de recolha de materiais, exemplares semelhantes a estes. Ainda consultei uma publicação referente a azulejos da cidade da Póvoa de Varzim, onde aparecem vários modelos de azulejos de relevo, sem no entanto aparecer qualquer paralelo com este.»

[18] Haveria aqui que avançar na análise exaustiva.

[19] Terão todas elas utilizado marcas? Não vislumbro marcas nos fragmentos recolhidos. 

[20] Vide foto. 5 Nem tão pouco ao seu primo mais rudimentar 9 do interior.

[21]Simões,  Op. Cit ,  p. 127  

[22] Vide foto. 11

[23] Vide foto. 6. Temos um painel no Museu da Ribeira Grande.

[24] Vide foto 7. Temos outro no Museu da Ribeira Grande. Foram feitos com azulejos encontrados em cestos em lojas da dita casa.

[25] Vide foto. 8

[26] vide foto. 9

[27] Simões, op. Cit. , p. 128

[28] José Meco, O azulejo em Portugal , Alfa, Lisboa, 1989,  p.79

[29] Idem, p.75


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