Mário Fernando
Oliveira Moura
Esboço biográfico
de Madre Margarida Isabel do Apocalipse
Universidade Nova
Agualva- Cacém
1 de Maio de 1994
1ª fase exclusivamente feminina
1. Nascendo
1.1 Preparando o nascimento biológico: o sair do ventre da mãe
Inês Eufrázia casara aos quinze anos, fizera 29
anos a 29 de Dezembro, em Maio completara treze de casada, em Março morrera-lhe
o seu primeiro filho, José, de onze anos; engravidara passado um mês e, estando
agora no oitavo, esperava o nascimento do seu sétimo filho. Tanto quanto sabemos.
Engravidara do
José, oito meses após o casamento e suportara os meses abafados e quentes do
pino do verão. A segunda gravidez (documentalmente confirmada) surgiria quatro
anos depois, não escapando de novo aos rigores estivais.
Tinha sido o
Joaquim que lhe viera a falecer ainda antes do José e muito mais novo. Já em
1776 dera à luz um outro filho a quem tinham dado novamente o nome de Joaquim.
Se a criança
morresse de tenra idade, a sua morte
seria suportável. Com o José talvez já não se tivesse passado o mesmo. O
“endurecimento” motivado pela frequência da morte explicaria a “adaptação” da mulher a este
“facto social”. A seguir a Joaquim
tivera a Ana que acabara de celebrar os seus cinco anos.. Fizera-a passar um
mau bocado, por isso fora baptizada em casa à pressa pela parteira aprovada
Bárbara Resendes da Matriz que lhe fizera o parto. Depois tivera o Bernardo que
teria quatro anos; Joaquim II teria dois e, Maria acabara de fazer um ano.
(Entre 1775 e 1791, Bernardo, Joaquim II e Maria faleceram).
Iria ter mais três
filhos: Teodoro, no ano seguinte, Mariana seis anos depois e Joana nove.
Todavia, em 1779,
dos dez que “Deus lhe dera, Deus levara-lhe sete.” (expressão plausível mas não confirmada documentalmente)
E, antes
de “dar a alma ao Criador” deixaria atrás Teodoro e Margarida: Margarida,
clarissa no mosteiro de Jesus e Teodoro, solteiro, andava nas milícias e na
governação da vila.
“Coitadinha!”-
exclamou alguém a quem li estas linhas. Seria? Ignes vivia ao cabo da vila, na
rua de São Francisco, junto ao convento de franciscanos de Nossa Senhora de
Guadalupe, onde se encontrava o irmão e onde
quase toda a sua família se encontrava sepultada ou iria ser sepultada.
A mãe e
a tia Florência ,solteira, moravam na rua de São Sebastião, a dois passos dela.
A sogra vivia numa casa da rua João do Outeiro, já na Matriz, entre a “ribeira
dos moinhos” e a Ribeira Grande, a nascente muito perto do Largo da Fonte
Grande e do Largo do Pelourinho. Da sua casa à da sogra era um pulo.
Estava-se no Natal, o ano novo
estava à porta e não tardariam as procissões da Quaresma. A dos Terceiros saía
da igreja ali ao lado.
Com filhos, marido e uma casa para
cuidar, estava pronta para “dar à luz”.(repare-se na expressão) Ou seja tinha
que estar adaptada (uma teoria da adaptação lançaria luz nesse ponto) às
circunstâncias. Ela ou o filho que trazia no ventre ou ambos sobreviveram “ao
parto” ou não. (“parto” e “dar à luz “ dois termos carregados de significado.
Aludirei a eles no ponto seguinte).
A família, a mãe a tia e a sogra,
“aconselhavam-na” tanto mais que a outra irmã casara em Água de Pau no outro
lado dos montes ( para sul ). A ligação estreita entre Ignes e a mãe
prolongar-se-ia até à morte daquela.
Inverno
não seria a estação mais trabalhosa para uma casa rural. Matara-se, tal como de
costume, certamente, o porco pelos Santos, recebera-se as rendas pelo São João
e tinham-se feito as colheitas no verão.
José
Francisco Pacheco de Sousa , o seu marido, que vivia dos seus bens, era alferes
das milícias da vila e almotacé.
Do lado de trás das janelas
(possivelmente ainda sem vidraças.) via passarem os almocreves na rua e as
enchentes de povo para a praça. Não era contudo um lugar próprio para uma mulher “séria e honesta “, a não ser aos domingos, durante quase todos os
do ano inteiro, em que passavam as procissões. A janela seria um sitio
“discreto “ que desse para ver sem se ser visto. (As janelas das residências e
dos mosteiros eram parecidas).
Encomendava-se escrupulosamente a
Deus, a Jesus Cristo, a sua mãe e a todos os seus santos protectores ,
sobretudo os que se “invocava” durante a gravidez e o parto.
Sr.ª do
O, N. Sr ª do Bom
Despacho, N. Sr ª do Carmo, cada
uma era a “ advogada” precisa e possuía determinados atributos. Modelos de
“paciência” e de “obediência” e de “conformidade” à vida tal como ela era não
lhe faltavam , a começar pela própria mãe. Ouvia-os nas homilias, nos sermões,
da boca da mãe, do confessor ;via-os nas procissões e lia-os nos seus livros
devocionais .
Esperava
ter um “bom despacho”. Estava pronta, era assim e seria assim com ela, tal como
com as outras nas mesmas circunstâncias. Tinha uma fita de N. Sr ª do O à volta
do ventre.
Observações
É preciso confirmar a aplicabilidade da teoria da
distânciação de Philippe Ariès.
1-
A distânciação da mãe perante os filhos diminuía à medida que estes
crescessem.
2-
Tentar provar a sua aplicabilidade à Ribeira Grande e à mãe de M ª
Margarida.
Questões de outros espaços culturais e de “ outras
idiossincrasias pessoais”
Leituras recomendadas:
Ariès, Philippe,
“L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime”.
Cota
da Biblioteca Geral da F.C.S.H.-Universal Nova.c.s.1383.
Idem,”Essais
sur l’histtoire de la mort en occident du Moyen age à nous jours “-
c.s.1123.
Idem,”L’Home
devant La mort” c.s. 947
2ª fase exclusivamente familiar
2.1.
Nascimento biológico: 23-02-1779
A parteira do costume fora chamada. Como homem em casa só atrapalha, sobretudo nestas
ocasiões, o alferes José Francisco saíra a “terminar a vida”( termino de vida
=). Ana e os miúdos ficaram sob a vigilância das avós. A mãe tomara as rédeas
da casa. Era preciso fazer comida, matar a fome aos animais e aos miúdos.
Estava descansada. Ignes invocava o nome dos seus intercessores e rezava para
que lhe dessem um bom parto .”Parto” do seu ventre onde “germinava” durante
nove meses ,daquele ventre que “tanto poderia ser vida ou morte”. Dar à luz, ou
seja trazer das trevas do ventre um ser. A “partida” das trevas para a “luz
“era delicada e como um Deus era dono senhor e criador de todos os seres e
coisas, só Deus através da intercessão da sua Mãe (símbolo de vida) poderia evitar
que a travessia fosse contrariada pelo Senhor das Trevas .O Senhor da luz,
Deus, contra o senhor das Trevas, o Demónio .Esse, tal como Deus, actuava
através de intermediários ou espíritos malignos que poderiam “perder o novo ser
“.Era , por isso, preciso ter muita ajuda divina e todo o cuidado seria ainda
pouco.
Estavam perto do dia de Santa Margarida de Cortona de
quem conheciam as virtudes. Se nascesse uma “rapariga” seria correcto chamar-se
Margarida. Era costume e ficava bem.
Ferveu-se água e trouxeram-se panos limpos e lavados de
fresco. A parteira, a mãe e as criadas fecharam-se dentro do quarto de Ignes.
Rezava-se enquanto Ignes fazia força. Nos intervalos Ignes rezaria.
Invocavam-se os protectores.
Era 23 de Fevereiro do ano de 1779 quando nasceu-lhe a
sua terceira rapariga e seu sétimo filho. A primeira água que a “lavou “ foi
como de costume cuidadosamente vazada para o quintal. Só assim Margarida seria
“caseira “. Se tivesse sido um “rapaz “, vazar-se-ia para a rua a fim de ser um
homem de vida. O espaço de Margarida seria, tal como a da mãe, da avó e de
todas as mulheres, casadas ,freiras ou solteiras, “ em casa “.
A vizinhança não precisava de ser avisada ; era “ Uma
rapariga fêmea “. (hoje ainda se usa esta expressão ).
Tinha corrido tudo bem “graças a Deus “ e a todos os
intercessores. Fizera promessas e iria cumpri-las. Deram-lhe, pois, o nome de
Margarida. ( Promessa ? ).
Margarida descendia em recta masculina de Gonçalo Vaz
Botelho, o grande, um dos primeiros e mais ilustres povoadores de quatrocentos
da ilha de São Miguel Arcanjo. ( Devo esta informação ao Dr.º Hugo Moreira ).
Isto a família deveria “saber de cor e salteado “. Muito
me admiraria se o não soubesse. Tão importante como ter posses era ter
ascendência ilustre.
Este património
linhagístico era transmitido como como o era transmitido todo o
património, fosse móvel ou de raiz.
Pertencer aos “Botelhos” não seria pertença que se
devesse ocultar. A este propósito veja-se que a mãe usava o nome “ Botelho de
S. Paio “, tal como mais tarde o seu filho Teodoro. Registe-se que o filho
herda o nome de família da mãe tal como o pai já o tinha herdado de sua mãe.
Atente-se, porém,que o nome de família da mãe, pelo menos, nestes dois casos,
prevaleceu sobre a família paterna. (Tal como em Espanha ?-seria interessante investigar esse aspecto ).
Ter um nome todos tinham, mas ter “ Um Nome “ só alguns.
Margarida nasceu numa casa (linhagem) que, apesar dos poucos haveres ( não se
entenda que eram pobres,mas remediados ? ) possuía “Um Nome como Património “.
(a averiguar, porém, melhor este assunto ).
Mas se pelo nome se reconhecia e legitimava o novo ser
isto só acontecia, por enquanto, ao nível da família no seio da qual “ele
nascera “.Saíra do ventre materno e entrara no mundo, saíra do caos. Urgia,
quanto antes, sem demoras, baptizá-las. Só assim seria verdadeiramente
arrancada não só ao “caos original “mas sobretudo, ao “pecado original” da Mãe
Eva .Toda a mulher por isso seria a “tentação do pecado “ Maria fora a única
concebida sem o labéu do pecado
original.
O mundo temia a mulher .{Toda a
tentativa de explicação que aqui já propus e que irei no decorrer destas
páginas continuar a propor baseia-se na cosmologia católica que saiu do
concílio de Trento no seu confronto com o sincretismo anterior que foi
“resistindo e permanecendo “. A este respeito leia-se a “Prova de Aptidão “da
Dr ª Fernanda Enes sobre o concílio de Trento e os Açores. Além de toda a
pesquisa no terreno a que procedi.}
Era tanto premente quanto a vida de um bebé era frágil e
precária. Se morresse , ao menos, iria para o “Limbo”, um espaço aceitável para
as crianças de tenra idade.
Duas semanas após o parto, Margarida
iria nascer espiritualmente.
Observações
Continuo a socorrer-me como “pistas
heurísticas “,dos livros já atrásmencionados.Continuo a tecer as mesmas
objecções.Apesar de, e isto faltou-me precizar anteriormente, estar a proceder a um estudo que, à falta de melhor termo
{descoheço},designaria de “etno-histórico “ou “micro história”; e através
dele,tenho-me apercebido daquilo que me parece ser a permanência de “gestos”(
ou fragmentos de gestos) que plausívelmente foram também gestos de outrora.
Sinto-me a meio caminho entre Tucidedes e Herodoto. A M ª Margarida e eu
partilhamos o mesmo espaço e a mesma história (até 1858, pelo menos ) bem como
um “estrato religioso comum”. Todavia, apesar disso, ela teria vivido numa
“variante cultural “ outra da minha, num contexto diferente. Outro
possivelmente. Tenho que “representar “ a realidade de “ então “de modo a
“traduzi-la “ acessívelmente na nova linguagem (?) do meu contexto. Ainda por
cima sou homem.
Ao tentar perceber a vida e a obra de uma mulher
concreta tenho que ter constantemente em mente a sua dificuldade até mesmo nas
suas facilidades aparentes. Foi-me útil também a leitura de diversos trabalhos
sobre identidade, sobretude um que fala do nome.Em seminário coordenado por
Claude Lévy Strauss “L’Identité”-
(existe na biblioteca da Universidade). Contude não me inclino a concordar com
o carácter “universalista”do estruturalismo Straussiano. Estou mais inclinado a
supor que o conhecimento é “local “. Aqui me desmascaro como um “aderente “ (no
sentido Boudoniano do termo ) do novo paradigma da ciência. Sigo aqui um pouco
Thomas Kuhn.
3ª fase-família cristã e paroquial
3.1. Nascimento Espiritual:
Baptizado-10/03/1779
A água que lhe lavara o “corpo”, dezasseis dias antes, não era suficiente,
era necessário “lavar-se-lhe a alma “, através da água benta e pelos ritos
baptismais.O sacramento do baptismo lavar-lhe-ia a alma, agora incarnada, do
pecado original de Adão e Eva, nossos primeiros pais.
Cristo, sendo “o caminho e a vida”,apesar de ter nascido de uma virgem
imaculada do pecado original, “apontou o caminho” ao ser baptizado aos trinta
anos por São João. ( De trinta a poucos
meses, passou o baptismo. Existem explicações, porém, como serão marginais a
este ensaio, deixá-las-ei para outra “ pergunta” ).
Margarida foi arrancada ao pecado original pela palavra ( in Nomine) e
assim ela nasceu de “iure”. Através deste acto “criador “( tal como Deus pela
palavra ordenara o mundo e o universo subtraindo-o ao caos.) nasceu. O
sacerdote invocando o Pai, filho e o
Espirito Santo, conforme o “ poder da ordem “, baptizou Margarida, em cerimónia
pública. A paróquia participando, com a sua presença, legitimava testemunhando
aquele acto. O Cristianismo é uma religião profundamente social. Veja-se o
mandamento novo que Cristo deu: “ Amai-vos uns aos outros como eu vos amei “.Pelo
baptismo, limpa do pecado original, Margarida acedeu à família católica da
paróquia de N.Sr ªda Conceição, na vila da Ribeira Grande, ilha de São Miguel.
Ela não era só uma Botelho São Paio.
Era não só necessário “testemunhar a correção dos ritos mas, no caso do baptismo, “institucionalizar
“a memória daquele baptismo como em qualquer outro. Por isso se registava em
livro. Não se poderia correr o risco da perda da memória da adesão do novo
membro. Era também um acto “social “ na medida em que comprovaria que Margarida
era uma “ Cristã Velha” (?). Apesar
desta distinção ter acabado legalmente poucos anos antes que era a que teria
idade para professar, se fosse caso disso. O concílio de Trento decidiu
organizar adesorganizada estrutura eclesial e “instituir “os sacramentos numa
altura em que a Igreja romana se encontrava “sitiada “pelo movimento da
Reforma.
O padrinho terreno era uma personagem importante neste processo, não só no
rito religioso mas também no desempenho social posterior. No caso de Margarida
foi o seu tio paterno. Manuel João do Canto. O cura Manuel Cordeiro da Silva baptizara-a. Era mais importante
que a parteira que lhe tirara do útero.
Foram
testemunhas, pelo menos os padres beneficiados José Dias Tavares e Jorge
Caetano de Sousa.
A
escolha do padrinho parece-me que não seria arbitrária. Conhecê-la,
possivelmente, significará aceder ao conhecimento de uma estratégia e táctica
familiar, núcleo este muito dependente (parece-me) “da Família”, sobretudo de
quem tinha ou iria ter o “morgadio”. Notam-se outras razões, porém. Vejamos.
Dos 10 padrinhos dos 10 filhos Ignes e de José Francisco, um era o tio materno,
capitão-mor da vila de Água de Pau, outro era seu cunhado. Outro ainda o seu
tio frade franciscano professo no mosteiro fronteiriço. Ou o tio João Caetano
Botelho, alto e bexigoso (conforme salvo conduto de Pina Manique ), regressado
intempestivamente de um casamento fugaz no Brasil e que iria ocupar todos os
cargos importantes da governação da vila e das irmandades, do Mosteiro de Jesus
e das milícias. Ele desempenharia um papel importante na profissão de Margarida
como veremos, na altura em que era Síndico e Procurador geral do mosteiro.
Outros
eram reverendos padres, ou freiras, essas últimas do citado mosteiro.(tenho
vindo a distinguir convento e mosteiro conforme o proposto nas “Provas de
Aptidão” da Dr ª Margarida Sá Nogueira Lalanda, todavia, na prática, mosteiro e
convento são palavras expressas indistintamente quer se refiram a frades ou a
freiras- Ainda quero confirmar ).
Toda uma
teia se iria revelando mutuamente útil. Reafirmam-se ( parece) laços familiares
ou criam-se novos com elementos importantes dos “estratos sociais dominantes”
(grupos sociais ).
O
baptismo concedia direito de pertencer à comunidade paroquial, uma pertencente
que lhe deu garantia de caminhada para a vida eterna.
As
festas, na igreja e em casa, foram também importantes para “vincarem” a
importância deste rito de passagem. O caos ultrapassou-se pela ordem e esta foi
obtida através da estrita observância do preceituado. Ficar mal baptizado seria
fatal tal como seria fatal ter nascido
mal.
Observações
1-Seria
interessante conhecer pormenorizadamente os termos precisos do ritual baptismal
de então.
2-Até há
pouco tempo ( tanto quanto sei ) seria inconcebível nos atrevermos a estudar “
antropologicamente “o Catolicismo.
3-Afigura-se-me
mais útil a esta abordagem conhecer ( tal como tenho tentado fazê-lo ) toda a
eclesiologia tridentina que introduz um novo paradigma heurístico à cosmologia
e cosmogonia anteriores, tal como o Vaticano II veio fazer em relação a Trento.
Encontramo-nos tenho esta convicção, pelo menos )numa encruzilhada em que os
velhos valores de Trento ainda “estão vivos “.
De certo
modo, tal como os astrónomos podem estudar estrelas já mortas, poderei estudar
Trento, aqui e agora .
4-O
racionalismo desta comunidade e deste grupo ( séc. XVIII e XIX ) é o
racionalismo do “ Common Sense “ ( não gosto da tradução que fazemos ) mas um “
Common Sense “ enraizado na cosmologia e cosmogonia de então. Por isso optei
por esta estrutura interpretativa e excluí qualquer estrutura Cartesiana. É mais do que uma cosmologia e
cosmogonia “ sincrética “, sincretismo esse que mergulha em usos e costumes
não-cristãos.
5-Entendi
que deveria, por tudo isso adoptar igualmente “ o tom coloquial “mais próximo
da vida.
4ª fase - Aprendizagem de códigos e símbolos
A ordem
social e histórica.
4 . Crescendo
4.1. Socialização primária da Cidadania Católica: O que é ser-se mulher em geral
e uma Botelho Sampaio em particular.
4.1.1.A transmissão da memória nos espaços da Família, da Igreja (
paro-quial e conventual ) e da Vila.
Através
de :
-Gestos de mulher - No primeiro e único andar sobradado
da casa dos pais de Margarida não havia “ corredor “ a separar as divisórias da
casa. O toque dos sinos da igreja marcava toda a vida da comunidade: toque de
trindades, toque para a missa, toque de finados, toque a rebate. A igreja
conventual tinha os seus. Margarida acabaria por os conhecer tal como a sua mãe,
suas irmãs, seu pai e seus conterrâneos.
Aos
recém-nascidos até se tornarem “ rapazes e raparigas “, o que numa sociedade
rural, acontecia muito cedo, prestava-se-lhes uma “ atenção distanciada “
quanto bastasse “ Muitas vezes nem sequer eram as mães que as amamentavam. Não
existia nada dos afectos e do relacionamento que hoje se encoraja mas que eu
ainda vivi, em parte.
As
crianças eram mantidas envoltas em roupagens que quase as imobilizavam (intencional-mente ) por completo. Macho e fêmea só
se distinguiriam pela cor das roupas para, pouco depois, talvez após começarem
a andar, se lhes imporem roupas de adulto. Eram mulheres e homens em ponto
pequeno. Não se lhes pegava ao colo a não ser por razões muito fortes para não
se habituarem “ao calor do colo “. “ Deixa berrar que lhes faz bem aos pulmões
“. Dizem ainda uns. Conheço pessoas ( usos antigos dizem eles ), sobretudo
homens, que me disseram que “ não presta pegar nos bebés ao colo. Só o farão
quando for atinado, aí para os dois anos “.
Se as
mães lhes pegassem sempre que chorassem seria uma desgraça, pois, não haveria
tempo para “ amanhar a casa “. Talvez fosse um “ modo aprendido “de auto -
defesa psicológica face à enorme taxa de mortalidade infantil , “não se
afeiçoar muito ao bebé “. Alimentava-se a criança , adormecia-se a criança,
sempre com o mínimo de embalos e tentava-se mantê-la com a barriga o mais cheia
possível , o máximo de tempo adormecida, ou sossegada.
Ter tido
sorte era ter um bebé manso. Nesta fase a criança, já baptizada e protegida no
seu corpo e no berço pelos mais diversos amuletos, figas, jaculatórias e outras
“receitas eficazes” tanto para o proteger dos espíritos malignos, dos invejosos
e de doenças específicas. No quarto às escuras, quase sempre. “Vai ver o miúdo
não esteja ele a finar-se”. Às vezes trazia-se para perto do local onde os
adultos trabalhavam. As paredes eram grossíssimas.
Quando
já andava e começava a falar dava-se a conquista decidida do resto da casa,
sobretudo do quintal; o local onde tudo era mais “permissivo”, ou melhor o local onde se
poderia fazer coisas com um grau maior de liberdade em relação ao interior da
casa. O quintal não era um espaço apropriado para meninas ,pois é sobretudo um lugar
“masculino”. A irmã mais velha ( Ana ) teria sido a sua educadora ( elo de
ligação entre os mais velhos e ela ), “socializando-a “através da brincadeira
ou da simples imitação.
Brincadeira,
não no sentido actual, como tentaremos interpretar adiante. Às vezes os bebés
eram mais filhos das irmãs mais velhas do que das próprias progenitoras visto
que estas estavam menos disponíveis.
O quintal seria ainda, apesar de tudo, o local
onde se poderia experimentar qualquer coisa, sem grandes “perturbações , a rua,
nunca.
Nesta
idade ( tal como já dissemos )o rapaz vestia-se como um homem e a rapariga como
uma mulher. Teodoro , um ano de diferença da irmã, foi mostrando, pelo
tratamento que lhe davam, o que era ser rapaz e o que era ser rapariga.
Ao rapaz
“enxota-se das saias das mães “,e, encoraja-se a ir com o criado às compras ou
com o pai.
A
rapariga desenvolve-se uma certa cumplicidade com a irmã mais velha. Em relação
que ao invés, da do irmão com a irmã era encorajada.
Por ela
vai aprendendo, de modo seguro, a aprender a seguir os gestos femininos.
Segue-os e pratica-os, em primeiro lugar de uma forma lúdica, para logo depois,
se lhe começar a dar responsabilidades à medida que ela ia provando ter
capacidade e “jeito” é a palavra chave em todo este processo de socialização.
Não
haveria (tanto ) uma idade cronológica precisa para se executar cada tarefa,
exceptuando-se aquelas que exigiam para além da destreza a força física e mesmo
estas, pela necessidade, viriam mais cedo, tal dependeria mais do “jeito” ou de
se “ajeitar “no desempenho. Jeito que era feito de gestos corpóreos. Um “jeito”
normalmente esquecido é o “jeito que se tem ou não para levar as pessoas “ ou o
“ jeito para cativá-las “. Este jeito abre todas as portas, dizem-me os mais
velhos. Seria Margarida assim ?Seria obediente e trabalhadora ?Parece que sim. Seria
cortês ? Parece que sim também. Mas teria aquele quê de jeito que faz diferença
? Não sei . Saberia cultivar amigos e amizades ? Há indícios disso. Gostaria de
mostrar o Arcano a quem o queria ver e
perdia-se a falar da sua obra. Todavia, parece que era tímida. Ser “jeitosa
“era ser-se inteligente e era uma qualidade de inteligência muito apreciada na
mulher. Mas era-se “jeitosa “nos gestos de mulher.
Numa
casa, como a dos pais de margarida, o rendimento familiar dependia “ dos
rendimentos “de José Francisco. Era Miliciano, foi almotacé , possuía terras,
recebendo rendas delas ou tirando ele próprio o fruto delas. Parece que viviam
com dificuldades, como iremos ver mais tarde, ou pelo menos assim aconteceu
numa fase das suas vidas.
A vila
da Ribeira Grande, que, na altura se estendia uma légua em redor do “pelourinho”, a nascente até ao cabeço onde
se avistava o porto de St Iria e a poente até às Calhetas, confinando a sul com
a serra de Água de Pau, era uma terra onde cresciam grandes cearas, extensos
campos de linho e numerosos laranjais.
Existiam
teares familiares por toda a vila e os seus panos eram exportados até ao
Brasil. Junto ao mosteiro de Jesus ( segundo a tradição ) teria existido uma
manufactura pertença do capitão - do -donatário , então conde da Ribeira Grande
. (a documentação fala disso também, mas não sei se refere o local. Tenho o
documento em S. Miguel ).
A
laranja ( há quem lhe chame o “ciclo da laranja “ )cultivada até pela St Casa
da Misericórdia seguia para o mercado Inglês. Era uma actividade muito
rentável. Antes fora o trigo e o pastel. Até ao século XVII, agora era,
sobretudo a laranja. ( Penso que não terá havido propriamente uma monocultura
mas isso seria objecto de outro estudo ).
A
família de Margarida, a sua avó materna, administrava uns morgadios, o seu tio
Caetano ainda administrou outros, porém, não viviam desafogadamente. Os
testamentos deles no-lo atestam, por exemplo. As terras vinculadas não
permitiam a sua alienação só o seu usufruto e só o mais velho acederia à sua
administração. Parte dos seus bens tinham vindo de um filho “ emigrante no
Brasil que falecera “. A ligação aquela parcela portuguesa da América do Sul
era bastante estreita, Aliás tal como acontecia com a Ribeira Grande. A vila
estava mais ligada ao Brasil do que ao continente português.
Seriam
uma “família remediada”, com um quintal farto e muitos animais domésticos. A
casa ficava a poente junto ao convento e por ela passava todo o comércio da
vila com o exterior, sobretudo a sua ligação a Ponta Delgada por onde escoava a
sua produção. A vila a segunda maior da ilha, faltava-lhe um porto de mar, pois
a costa norte não o permitiria. Tinha portos secos, um no cabo da vila a leste
e outro a oeste, no Rosário (ao contrário “.
a sua
rua era a mais importante da vila e nela se erguiam as suas principais
construções, exceptuando-se dois ou três “solares “ ao centro da vila era o seu
coração político, religioso e administrativo (económico ) e distava a sua casa
pouco mais de um pulo.
Tinham
pelo menos um criado para as voltas da casa e para tratar do quintal. Teriam
criada de casa ? A mãe, dona de casa, superintendia todas as operações
domésticas e participava nas lides (?). Tudo deveria começar de manhã muito
cedo o galo cantasse: “Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer “. uma
dona de “casa esperta ”era aquela que se conseguia despachar cedo das limpezas
dos animais e das refeições. Assim seria para além de esperta “terminada
“(desembaraçada). O almoço era servido pelas nove da manhã e a esta hora, para
além do galo já os sinos do convento tinham muitas vezes tocado, muita coisa
estaria pronta.
Uma boa
dona de casa tinha sempre coisas para fazer, nunca parava, descansava fazendo
outras coisas de manhã à noite. Assim me dizia minha avó Deodata. O criado já
teria “amanhado os animais (dado comida) ido buscar os ovos das galinhas. Teria
de ir à praça comprar o peixe no barracão ou a carne no açougue. O peixe vinha
fresco da Ribeirinha ou de Rabo de Peixe. A carne vinha das manadas que
pastavam acima das terras cultivadas, a caminho da serra, perto dos matos de
onde vinham as lenhas grossa e miúda.
Arejar a
casa, limpar a casa, espanar os tapetes, refazer as camas de folha, despejar os
bacios, dar de comer aos filhos, ao marido e ao criado .Cozia pão várias vezes
por semana. Era preciso fazer lume, tender pão, enforná-lo e saber tirá-lo no
momento certo. Tudo isso constituía um património de gestos a transmitir aos
mais novos.
No
rés-do-chão ,nas” lojas” do piso térreo, arrumavam-se as lenhas que o criado
“rachava”, os pipos de vinho, a baia da égua ou do cavalo e a sua comida. Depois de despachados estes serviços e de se ter lavado a loiça e a
roupa, sentavam-se a costurar ou a bordar. Este seria “o tempo e o espaço de
tempo”, que concomitantemente aos gestos, serviria para transmitir “natural e
informalmente” a memória. Esse era um espaço feminino, tal como todas as
tarefas anteriores. Teodoro não participaria dos primeiros mas poderia “estar e
ouvir ”o que se dizia. O professor precisava tanto do aluno como este daquele.
Conversar não era só uma forma de suportar a rotina dos “ gestos” mas uma forma de transmitir ideias e valores.
As “conversas de propósito” (com
o propósito de ensinar cada um aquilo que deveria ser ou fazer na vida para se ser uma mulher de propósito ) ocupavam
um espaço primordial. As conversas “triviais” sobre a vizinhança, a família da
vila , fora dela na ilha ou no Brasil,
também (tal como sempre) ensinavam aceitando
ou rejeitando modelos de conduta.
Tudo
levava a ensinar à mulher (ou ao homem)
o que era próprio à condição feminina e
à sua situação social na comunidade e na família. Era, sobretudo, o espaço
da oralidade. Teodoro teria outros espaços, por exemplo, a rua e a praça, bem como outros gestos a
aprender.
- Oralidade
Havia,
no ciclo anual, no quotidiano, dois momentos mais trabalhosos para o lar: o
tempo das colheitas no Verão e a matança do porco, em regra, pelos santos. Quem
dependia da banha do porco sabia que a pior altura para o abater seria no
Verão. Sábados e Domingos seriam dias diferentes. A dieta seria diferente como
seria diferente o que se fazia. Em quase todos os domingos do ano havia
procissões. As festas religiosas, os nascimentos, os casamentos e as mortes
quebravam as rotinas do lar. Através
deles se aprendia.
A
Páscoa, ou melhor toda a quaresma e o Natal eram os momentos mais importantes.
As presumíveis idas a P. Delgada à festa do Santo Cristo e a Água de Pau (mais
essa, se calhar, pois aí tinham parentes )a N.Sª dos Anjos, constituiriam as
únicas saídas possíveis da vila por parte das mulheres, Sair de casa só para a
igreja ou a casa de família em circunstâncias especiais e sempre bem
acompanhadas e durante o dia.
O
trabalho de Verão e de Outono apesar de redobrado renderia mais, pois os dias
então eram maiores. As ruas sem iluminação pública regular eram locais a evitar
logo que a noite caía. Acendiam-se, então, as candeias dentro de casa.
Habitualmente deitavam-se muito cedo. Depois das trindades não era recomendável
andar-se fora de casa nem “ seria de gente de propósito “.
Enquanto
se costurava ou se bordava ( gente de
propósito arranja sempre ocupação, pois o ócio é a fonte de todos os vícios ),
os mais velhos iam educando os mais novos. Os contos com desfechos morais ,
(“Isto é para se saber que...” ) a vida dos santos, sobretudo os protectores, “estórias
da família” segundo a mãe “se
lembraria da avó”, por exemplo, que, por seu turno as ouvira das avós, estórias”
da família ausente no Brasil, . Simples admoestações, encorajamentos ou repreensões
mais duras, não excluindo os castigos entre os quais os corporais, funcionavam
como potentes” elementos de socialização”. “Oh rapariga ou aprendes a bem ou
aprendes a mal” .A história de Cristo e do cristianismo, da vila, da ilha e do
reino. Transmitiam-se contos; longas” lengalengas” que se destinavam a ser
memorizadas.
Comentavam-se
acontecimentos da família sou mesmo do mundo porém, é crível que para eles
tivesse tido mais impacto a morte súbita de um vizinho simpático do que a morte
do rei da Turquia, por exemplo. Ainda é assim hoje.
Importante
teria sido a destruição da vila em 1563/1564, era tão importante que até vinha
escrito em livros. As pestes e as epidemias locais eram mais importantes do que
outras fora da vila. Fora da vila o Brasil era um local importante para eles e
Lisboa nunca tinha sido tão falada desde o terremoto de1755. A ilha sentira os
abalos e a vila também. Os maus e os bons anos agrícolas, os pequenos furtos e
os “enredos locais” tinham mais importância do que os “grandes acontecimentos”
de fora. Temiam tudo o que estava fora da vila tal como temiam a morte mas o
seu “mundo real “ começava e acabava na vila depois de passar pela família e
pela paróquia a que pertenciam. Para a mulher, se calhar, o” mundo real” seria
a casa . Para o homem um pouco mais.
O que se
teria dito da Revolução Francesa, por exemplo? ( quando a notícia da
decapitação real chegou ) Seria a noção de que o mundo estaria a chegar ao fim
tanto mais que o século estava quase no fim? Há um ribeiragrandense, pelo
menos, que andou em Paris na altura da revolução, um tal Bento
Viana, tradutor de Chateaubriand. Descobri um filho de um capitão de milícias (salvo erro) local que vendo fundeado na baía
um navio de nação francesa (como diz o documento) dele se acercou e nele
embarcou. Tal seria em parte a revolução francesa na vila: A fuga do jovem.
Todas as
“estórias “ ordenavam e interpretavam o “mundo”. Aquela quer-se fazer mais do
que é “. Ou “Não vá o sapateiro além da chinela”.
O mundo
era habitado pelos vivos e pelas almas numa coabitação nem sempre fácil. As
“almas penadas” ( com penas a cumprir ) eram potencialmente boas e bastaria
tão-só aos vivos ajudarem-lhes a cumprir a pena. Com a ajuda dos vivos
salvar-se-iam as “ almas penadas”. Rezava-se a elas em casa ou na igreja.
Algumas precisavam mais do que orações. ao invés as “almas danadas “ não tinham
remissão e para estas era necessário encontrar “ remédio “ para afugentá-las
para longe. Elas causavam todo o tipo de problemas desde o simples infortúnio
nas últimas colheitas até casos mais complicados de “possessão”. Ou ainda a
morte. Ainda pior do que tudo isso, e a chefiar toda a hierarquia do mal,
sentia-se a presença real do demónio. A igreja falava dele. A cruz e os
amuletos e as orações eram imprescindíveis. O mau olhado e a inveja dos
vizinhos eram outras forças potencialmente malfazejas . Morar perto de uma
igreja, sob a protecção da santa cruz era o local ideal para morar. O fim da
vila, ou os seus pontos altos eram os lugares favoritos das forças das trevas
mal a noite caía sobre a vila. Eram os lugares do mundo do além. Tudo isso se
transmitia através de relatos, os ditos casos verdadeiros, legitimados por
inúmeras experiências de gente de todos conhecida. Tinha peso quando provinha
de gente “idónea”.
Quem
sabia ler lia os livros sagrados, como, de certeza, foi o caso da mãe e das
avós e do tio de Margarida.
As
famílias mais auto-suficientes possuíam capela onde, as suas expensas, se
celebrava missa e até onde se enterravam. É o caso de N. Sª das Preces perto da
avó Joana, de N. Sª do Vencimento, ao atalho para São Pedro, S. Vicente
Ferreira ( suspeito de familiares ), N. Sª da Salvação, junto ao último e um
pouco mais fora, no termo da vila, o recentemente construído solar de St
António. Tinham, porém, um pequeno oratório onde faziam as suas obrigações.
Ignes (
suspeito ) tinha-o dedicado a S. João Evangelista tal como a mãe já o fizera,
tal como Margarida o haveria de fazer, como adiante veremos.
- Escrita
A mãe e as avós de “Margarida e o tio ( tanto quanto sei
) sabiam ler e escrever. Não sei se o
convento onde mais tarde ela professaria também desempenharia este papel. É
possível que sim. Os “ manuais” mais vulgares de então seriam os livros
sagrados e devocionais. Curiosamente ensinava-se as crianças pondo o acento
tónico na memorização. saber de cor, de trás para a frente e de frente para
trás, era ter aprendido bem. Aprendia-se o latim quanto bastasse para “não
naufragar” durante a missa. Aprendia-se as orações como a do “Pai nosso” e a “Ave
Maria”, para além de outras orações incluindo as especiais. A santa Barbara, quando fazia trovões, a St
Luzia quando algo afectava os olhos ou a
visão, a St Antão quando algum animal adoecia, a S. Cristóvão quando alguém
viajava e por aí adiante. Saber isso significava estar-se preparado para
funcionar na “vida concreta”, a que lhes interessava e a que dizia respeito ao
seu universo específico de necessidades. Se calhar saber mais
naquele sistema de auto-suficiência seria considerado um desperdício.
Era a oração e a mezinha que, os mais sábios, deviam
saber. Rezava-se a Santa Luzia logo que vista doesse, se não resultasse era
porque era necessário acrescentar-se o
chá de malvas ou ir à botica da Stª Casa da Misericórdia, ali ao lado da
ribeira.
Encontrei no testamento de Margarida uma lista de livros da sua
biblioteca . O livro não seria um bem acessível a toda a comunidade, estaria
ligado a um determinado grupo social que soubesse ler e que os herdasse ou pudesse adquirir. O
grupo social a que Margarida pertencia , pelo menos o seu círculo familiar mais próximo, sabia
escrever. Os familiares dela, os que tiveram tempo para o fazerem, fizeram
testemunhos e alguns deles fizeram-no pelo seu próprio punho. Ter “Nome”, ter
livros e saber lê-los, mais saber lê-los, mais saber de cor o latim dos respónsios,
as orações, fazia parte, para além dos afazeres domésticos e dos trabalhos
manuais, do perfil da mulher cristã e da Botelho Sampaio que Margarida era?
Da sua roda familiar faziam parte três tipos de mulheres
: as casadas, as solteiras e as freiras. Isso seria também ser uma Botelho de
Sampaio. A família dela ou administrava vínculos ou participavam na governação
da terra ou fazia parte do clero tanto regular como secular ou também pertencia
às milícias. Os quais faziam parte do clero poderiam fazer parte de tudo
excluindo-se os cargos da governação e os da milícias.
O mundo dos vivos (socializava-se ) estava próximo do dos
mortos e com ele entretinha estreitos e contínuos contactos feitos de respeito
e de temor. O mundo dos mortos era mais poderoso do que o dos vivos.
Os seus familiares ou estariam enterrados no convento dos
frades ou no das freiras, nas igrejas paroquiais locais, tudo locais que ela
frequentaria. Irmãos morreram-lhe enquanto ela crescia e estava em casa dos
pais. Ela apanhou ainda a morte da avó Joana. A morte era uma presença
constante, constrangedora mas familiar. Todos os anos, tal como havia
aniversários, também havia o dia de finados, o dia 2 de Novembro. Era preciso
rezar pela alma dos familiares defuntos e dedicar-lhes (um dia) em exclusivo.
Era preciso ajudá-los a salvarem-se. Os testamentos ao prescreverem missas,
para além das de corpo presente, encorajavam este convívio para além da vida,
mantinham bem viva a presença dos mortos muito mais de um simples avivar da
memória. Era o culto devido aos mortos que nos poderiam estar a ouvir e a ver.
A crença na presença palpável do além ( familiar) era
forte e alimentava-se nas missas que se celebravam todos os anos nos dias em
que os familiares tinham falecido “ad aeternum “, enquanto o mundo fosse mundo.
Como se lê nas clausulas testamentárias.
Às vezes as almas, tal como já se disse, por qualquer
motivo que teria de ser apurado, andavam a querer contactar através de sinais,
com os vivos e fa-lo-iam até que conseguissem o descanso eterno. Tal, se
atingisse proporções anormais ou se os sinais fossem difíceis de descodificar,
ter-se-ia de recorrer a um especialista. Este tanto poderia ser um clérigo como
um outro vidente a quem lhe fosse reconhecido o “dom” que lhe era imposto e não
adquirido. Os pontos mais altos da vila eram (como já vimos ) os preferidos
“das almas”. Aí se levantavam nichos denominados alminhas. Para aí se dirigiam
grupos de orantes masculinos nocturnos. Ao cabo da rua dos Foros na rua das
Dezasseis Pedras, ao fim da rua da avó, há um local chamado “Alminhas”.
Era aí que as almas eram “convocadas” e apaziguadas com
cantares e regras dolentes.(registei em 1984 alguns destes cantares na Pedreira
de Nordeste auxiliando um colega o Dr.º David de Carvalho).
Fora dos limites da vila era o caos, o mundo hostil e
desconhecido. A simbologia era minuciosa e precisa. O Diabo rondava a partir do
escurecer, e, a partir da meia noite quem desgraçadamente andasse pela rua e
visse um cão preto poderia estar certo como dois serem quatro que “o
encontrara”. A partir daí só deveria olhar em frente fazendo cruzes canhoto e
chegar depressa a casa ou ao abrigo de uma cruz.
Aos sábados, o areal, ali a dois passos, era o palco de
danças e de bruxedos demoníacos. Havia ruas e locais favoritos dos seres
diabólicos e este era um deles. Era preciso usar figas, era bom ter-se nascido
num Domingo e se possível ter-se um sinal nas costas que só pudesse ser visto
ao espelho. Um bom padrinho ajudava. Este mundo sincrético assentava
perfeitamente no modelo bíblico.
Cristo era o defensor da luz e o Demo, o senhor das
trevas. O mundo andava dividido.
-Festas
(religiosas e profanas. Esta distinção seria a que a
hierarquia da igreja pós- Trento gostaria que existisse. Todavia a comunidade
não os distinguia).
As festas, para além da sua importância lúdica
fundamental ao equilíbrio psíquico da comunidade e de cada membro da
comunidade, eram também momentos ímpares em que cada um vendo todos, “se
situava” na sociedade e onde se (re)abastecia da ideologia sincrético-cristã
que impregnava a sociedade.
As festas eram cíclicas tal como o era a vida de cada um
e de todas as famílias.
A morte devolvia a pessoa à linearidade da história
cristã que se prolongava para o além até à salvação. A história sendo tanto
unilinear e cíclica era “aprendida “ sincreticamente . Esta ideia (
Eliade Mircea, Marcel Mauss e outros),salvo raras excepções, não tem sido
aceite com entusiasmo pelos historiadores.
Enquanto sociedade rural que vive o dia a dia, vê-se o
retorno das novidades, mas ao mesmo tempo, enquanto pessoa que envelhece e
enquanto pessoa cristã, caminha-se não em elipse mas em linha recta. Eu diria
que aquela sociedade caminhava “helicoidalmente”, em termos de tempo.
A comunidade, em termos de ideologia cristã, estaria
muito influenciada pela interpretação que dela fazia o “franciscano”, na altura
o único, para além do clero regular, muito naturalmente. Eles eram os
“ideólogos” das procissões e dos grandes “sermões”. Eles eram os formadores da
opinião pública local. Até há pouco tempo tinham partilhado esta influência com
os jesuítas, ficaram sozinhos após a expulsão daqueles.
Tinham os franciscanos dois conventos, um dos frades, a
poente da vila, perto da casa de Margarida, já o disséramos, o outro de freiras
clarissas, a sul a caminho da Mãe d’Água de onde provinha a água para a sua
arquinha e de onde provinha a água dos
moinhos do conde.
É através da dor, tal como padeceu e morreu Cristo o
“Redentor do Pecado”, que se poderia vir a aspirar à salvação, se Deus assim o
entendesse. O destino de cada um estava escrito mesmo antes da nascença. A tal
ponto que o que nos acontece, de bom e de mal, é porque Deus assim o quis e
porque também estava escrito. Estava “destinado”. A resignação ao destino era
uma virtude. Veja-se o caso emblemático de Job.
A Salvação é uma graça de Deus. Poder-se-ia assim a
traços largos tentar esboçar a “filosofia dos franciscanos”? É difícil.
Pedagogia intencionalmente encenada nas duas procissões maiores (hesito na
palavra maior), a primeira, dos irmãos franciscanos Terceiros, organizada pelos
Franciscanos, a segunda, do Senhor dos Passos, sob a influência destes mas
organizada pela Sª Casa da Misericórdia. Eram procissões penitenciais
quaresmais (se calhar as mais importantes) e nelas se punham em prática todos
os cerimoniais “barrocos” (pós-tridentino) que descia à rua e percorria as
principais artérias da vila para educar, convencendo, comovendo e esmagando.
Nelas se consubstanciava o “sentir”, o pensar e o agir em uníssono.
John Webster descreveu-nos (no início do século XIX), em
Ponta Delgada uma destas procissões. A dor como educadora o medo como zelador
da ordem cristã e social, já que os dois não andavam “senão um no outro”.
Cada pessoa e de acordo com a sua importância social, ia
na procissão, ou não ia, e desde logo via a sua posição e a posição de todos.
Era uma pauta hierárquica ambulante onde cada um se distinguia pelo sítio que
ocupava e pelo modo como trajava.
As listas da procissão dos Passos, por exemplo, eram
minuciosamente feitas e registadas nos livros do Consistório da Sª Casa. Perto
do Pálio só o capitão-mor e os vereadores mais velhos e outras “individualidades”.(
hesito no uso do termo individualidade). Cargos, repita-se, que foram
ocupados pelo tio e mais tarde pelo irmão Teodoro. (excepto o de capitão-mor,
porém estavam bem relacionados com eles).
Na dos Terceiros, os participantes (seria igualmente
“hierárquica”) flagelavam-se (alguns) em sinal de humilhação e de
arrependimento. É eloquente a descrição de Webster a este respeito. Não era só
o lugar que cada um ocupava era também, e insisto, o modo como trajava que os
distinguia. Não havia “mobilidade social” tal como a concebemos hoje. Cada
grupo social desempenhava um papel mas não era “permitido” a alguém de um
determinado grupo desempenhar o papel de outro grupo. As mulheres, por exemplo,
pertenciam ao subgrupo do grupo da elite. Refiro-me a Margarida. As mulheres se
iam no desfile (não tenho a certeza) iam no seu lugar de acordo com o seu
estatuto. Nas igrejas era assim. Em casa também. Veja-se que até em casa havia
partes menos femininas, o quintal, as lojas (para o grupo de Margarida) e mais
femininas, a cozinha, os quartos, em suma o primeiro andar. Mesmo aí a janela
não era um sítio próprio. Havemos de ver que nos conventos era a mesma coisa.
Os escravos e os “mal-enroupados” ocupavam o lugar mais
baixo. Alguns escravos eram, sobretudo por morte dos “proprietários”,
aforrados. João Caetano, tio de Margarida, por testamento “aforra” o seu mulato
Jerónimo. Aqui há uma certa possibilidade de modalidade, a passagem das franjas
confusas da sociedade para o mais baixo da sociedade.
Nas procissões (quase todos os domingos do ano como já
dissemos) se reafirmava que o “Trono e o altar” estavam lado a lado,
tanto mais que o padre que levava o viático seria filho, irmão, ou aparentado,
ou amigo do vereador mais velho, ou do Provedor da St Casa, ou da Abadessa do
Mosteiro de Jesus.
Atentar contra um seria atentar contra o outro. Daí o
desbarretar-se perante Cristo, o padre e o senhor?
“O Arcano Místico” obra de Margarida tem igrejas, casas e
procissões onde Margarida reflecte este mundo. Evidentemente que ela também
teria usado gravuras e estampas. O corpo de Deus, procissões de iniciativa da Câmara,
como outras, era feita na sede do concelho e na igreja Matriz, ou melhor nas
ruas das paróquias da vila. A” Câmara”( nome já em si elitista) era
gerida pelos que podiam andar na “governação”.A este respeito fiz há tempos um
pequeno rastreio de alguns lugares importantes, sobretudo de familiares de
Madre Margarida, e constatei da sua presença constante nas listas da governação.
Às vezes era convocado o “Povo e a Nobreza”, essencialmente para tratar
de assuntos muito importantes. As atribuições e a composição das Câmaras foram
variando ao longo do período de vida de Madre Margarida.
Portanto, o “Corpo de Deus”, a procissão, seria mais um
exemplo da simbiose entre o clero e as gentes da governança. Esta última, na
altura, seria mais gente de poder do que de ter. Muitos iam ao Brasil para
fazer o seu pé de meia, como é o caso do seu tio Caetano que não teria sido “bafejado
pela”sorte, outro exemplo, o dono do solar de São Vicente Ferreira. O
grande senhor, o conde da Ribeira Grande era absentista e nunca morava na vila.
D. José I, através do Marquês de Pombal, retirara-lhe o “ verdadeiro poder”, o
que ainda lhe restava, a troco de dignidades. O monopólio dos moinhos, por
exemplo, acabou. De capitão-do-donatário da ilha, de cada uma, passou a haver
uma capitania geral em Angra, acabando assim com o que restava do poder do
então já Marquês (?). Os seus moinhos e as rendas deles eram a sua presença
visível. São contínuas as queixas contra os moleiros dos moinhos do conde.
O ouvidor do eclesiástico tinha, porém, sede na vila e a
área da ouvidoria excedia em muito a área concelhia que então ia das Calhetas a
poente à Ponta de Sª Iria a nascente. A ouvidoria ia da Bretanha a nascente
até, salvo erro, às Furnas, então ainda curato (?).
Havia um enorme corpo de “mesteirais” (mestrança) que
desempenhavam todas as tarefas de uma sociedade rural auto-suficiente. Os seus
representantes tinham direito a lugar nas procissões. Além dos “mesteirais”
havia os que trabalhavam no campo à jorna ou por enfiteuse. Eram poucos os que
se ocupavam do mar. As mulheres eram padeiras tecelãs e amas, entre outras
coisas.
Os “enjeitados” eram lançados nas rodas da Câmara ou da
St Casa e eram dados a criar a amas de
leite.( percentagem substancial de ilegítimos ou incógnitos ). No fim da
pirâmide social estavam os escravos. A julgar pelos Róis de confessados e
deserdados das famílias de nome da vila e de seus arredores . Alguns eram de
fora da vila.
O império dos Nobres (Espírito Santo) organizado pelos
irmãos da St Casa da Misericórdia, ao que julgo saber, ( é curioso que as
cúpulas eram sempre constituídas por gente da governação, porém, a irmandade
aceitava outros grupos sociais até mesmo freiras professas. O mesmo verifiquei
em relação a outras confrarias) era uma festa que servia para os que tinham
poder e alguma “coisa” se lembrassem do dever de dar a quem não tinha poder nem
tinha que comer, aliás, na continuação do que diariamente se fazia às portas da
Misericórdia, dos conventos e das casas com “posses” da vila. Esta
solidariedade social ajudava a manter a situação social e legitimava-a, de
certo modo. Vejamos. Pelo menos enquanto “durasse o império”
invertiam-se os papéis: o senhor servia e o servo era o senhor. Era também um
acto de humilhação pública.
O tio Caetano pretendeu ser sepultado do lado de fora da
porta de S. Sebastião onde se “humilharia” para além da vida a fim de lhe serem
remidas as faltas.Tinha abandonado a mulher poucos meses após o casamento.Tal
qual acontecia ( de outra índole, é certo) no Carnaval, em que a ordem estabelecida
permitia, controladamente, ser provisoriamente ( “pervertida”) “subvertida”.
Tal como ainda nos dichotes carnavalescas. Às festas da “ordem social
correcta” ( Passos e Terceiros entre outras ) antecediam-se ou seguiam-se
as festas da “desordem social correcta”. Eram as válvulas que
ciclicamente se abriam e com as quais se descomprimia a sociedade. A inversão
de papéis era mutuamente benéfica. Psicologia social multissecular? Eficaz,
registe-se. Há contudo indícios de “levantamentos de povo” contra a saída de
trigos, por exemplo. Ou até, em St Maria, do povo que expulsara o padre que
queria ser mais papista que o bispo da diocese na sua repressão contra o culto
sincrético do Espírito Santo.
Neste jogo se promoviam o equilíbrio e a ordem social
vigente. O mascarado que se travestia de mulher ao “subverter a ordem sexual
natural” e ao fazê-lo caricatamente não reforçaria também a sua masculinidade,
por tanto, “a ordem natural das coisas”?
Também acentuariam a precaridade da vida e das coisas
terrenas ( apesar da lei dos morgadios ) e que só Deus, que tudo sabe e pode,
seria capaz de ordenar a vida e a morte, faces da mesma moeda. Deus era senhor
do destino.
Os sermões ( pense-se em António Vieira ou nos de
Bartolomeu de Quental muito disseminados nas livrarias da ilha), os hinos, os
desfiles processionais, ensinavam ao povo cristão da Ribeira Grande a sua
história da salvação, a doutrina providencialista cristã. Respondiam-lhes às
perguntas fundamentais da sua existência davam-lhes a sua essência: quem eram e
para onde iam, todos e cada um deles. Legitimava-os naquilo que eram ou que
poderiam, vir a ser, conforme o estatuto que cada um tinha e conforme o
destino. Eram, pois, conformistas e situacionistas. Nada lhes ensinava a
rebeldia ou a ser-se ele ou ela própria, ensinava-se a sofrer com paciência e
resignação as dores. Havia, contudo, como vimos, para o Carnaval e para o
Espírito Santo, uma margem de tolerância.
A consulta dos sermões, dos livros sagrados e de outras
obras devocionais da época leva-nos à interpretação do que acima aludimos.
A vila, no seu todo, seria uma família, daí que lhe
competisse “cuidar” de todos os seus membros. Existiriam rivalidades
inter-paroquiais facilmente detectáveis ao nível das procissões e outras
festas. Igualmente existiriam rivalidades entre e dentro famílias. Os pais de
Margarida estão numa sociedade que condena a separação no entanto suspeita-se
que por motivos que possam passar pela rivalidade, separam-se. Estes mecanismos
são indispensáveis ao papel social de identificação à “terra”, ao sentido de
pertença a um determinado modo de sentir, agir e pensar integrado num espaço
especifico (social). Havia a certeza de se pertencer a uma família, a uma
paróquia e a uma vila. Mais difusamente a um arquipélago e talvez ainda mais
difusamente a um reino. As colagens do “poder do Trono” ao “poder do altar”
visavam aproveitar este último poder para se impor em todo o território. As
festas obrigatórias do nascimento dos príncipes, dos seus esponsórios dos seus
falecimentos e de algumas grandes batalhas, durante três dias e três noites,
destinavam-se igualmente a “ensinar” os súbditos, a fazer com que eles se
identificassem com um “reino proposto e imposto” de fora para dentro. O fausto
destas festas (a expensas da Câmara) não poderia ser inferior ao de outras
festas. O poder sentia-se pelo fausto.
Sentir-se-ia Margarida ao ir a Água de Pau visitar os
tios e os primos, uma ribeiragrandense?
O saber situar-se socialmente era um conhecimento
ministrado quer em casa quer fora dela pelos do mesmo grupo social ou pelos
membros de outros grupos sociais. “Aquela não está vestida como uma menina” ou
“Aquela está vestida como se fosse uma menina”, por exemplo. São
simultaneamente modos de controlo social.
A comunidade, como um corpo social, está dialéctica e
simbióticamente interligada a todos os níveis. Cada corpo comunitário é formado
por subcorpos ou corporações e este “corpo total” só se tornará visível à
medida que nos afastamos dele.
A mulher e o homem aprendiam, vendo e ouvindo e nalguns
casos lendo ou sentindo os seus papéis e a sua importância. O espaço por
excelência da festa era fora de portas ou voltado para a rua, ou então nos
espaços sagrados das igrejas e do lar . Tudo isso confirmava,
corporizando, a ordem e o poder. O seu centro físico privilegiado situava-se na
praça. A começar pelo pelourinho passando pela cruz da igreja matriz, ou pela
imponência invulgar e bizarra da fachada da igreja da Misericórdia. O poder
vivia-se ali todos os dias de sol nado a sol posto. Até mesmo depois das
trindades e do sol posto o Demo não se atrevia a penetrar naquele espaço onde o
poder era palpavelmente total.
A igreja sede do concelho, a Câmara (também) sede de
concelho e a Misericórdia, sede de solidariedade social concelhia, formavam um
triângulo em cujo interior tudo se decidia e fazia. No seu interior físico,
todas as actividades económicas eram desenvolvidas e regulares. O Pelourinho
legitimava o poder.
O barracão do peixe, o Açougue da carne, o mercado dos
animais e de legumes.
Aí se arrematavam as rendas. Daqui partiam as decisões
que diziam respeito à vida dos “vilãos”. É neste local que a vila mais
caprichou a sua aparência. É o barroco tardio algo barrominiano fabuloso da
igreja da Misericórdia é o imponente edifício com arco e torre sineira da
Câmara é ainda a imponentíssima fachada da igreja Matriz no alto do morro.
Deste centro parte o traçado ortogonal da vila já definido (segundo tentei
explicar noutro trabalho) no século XVI. Nela “desagua” a rua Direita que vai a
São Francisco (composto pelo de João do Outeiro a de N. Sª da Conceição e no
fim de S.Francisco ) verdadeira veia que alimenta toda a vila e arredores. Nela
moravam as principais famílias ( Exceptuando-se as dos solares adjacentes ).
Morar nela era ser-se alguém na vila.
Ao lado da praça, passa a ribeira que, segundo Frutuoso,
( cronista quinhentista local ) deu o nome à vila bem como a sua vida. A Sua
água servia para beber( em condições que algumas vereações de então consideram
impróprias ) para fazer mover os rodízios dos cinco ou seis moinhos do conde,
para regar as terras e “demolhar os linhos” e regar os laranjais. Esta ribeira
era a fertilidade da vila e também, como em 1563/64, a sua tragédia. A ribeira,
tal como a terra e a mulher tanto poderia dar a vida como a morte, era perigosa
era preciso ser controlada.
Para isso fizeram-se paredões, plantaram-se árvores nas
margens, afastaram-se as principais casas delas e mudaram-se os moinhos para o
interior. A este espaço, este coração e este cérebro comunitário, juntaram-se,
propositadamente nos arredores, dois
pólos extremamente influentes. O primeiro, a poente, o convento Francisco, o
segundo, sensivelmente a sul, junto à ribeira, o de freiras clarissas.
Estavam indissoluvelmente e consaguinamente ligados e
tanto era assim que as procissões que passavam pelo triângulo por estes dois
pontos formando um novo e maior triângulo. Seria intencional?
Observações
Continuo a tentar perceber-me recorrendo às leituras que
fiz e faço sobre temas tratados pela história das mentalidades, pela
psicologia, pela sociologia, enfim pelas ciências sociais. ( Vovelle, Duby,
Philippe Ariés, Jean Lois Flandrin Louis Réau, José Andrés- Gallego, Margaret
Mead, Piaget...).
Todas estas leituras, no entanto, têm sido sempre
confrontadas com as recolhas que tenho procedido no terreno , quer no
arquivo e nas bibliotecas clássicas quer nos arquivos e bibliotecas não
clássicas, a arqueologia e as conversas com os “vilãos” agora cidadãos mais
velhos ou mais “eruditos”. Tenho-o feito desde 1983.Nesta base tenho
“arriscado”, não sem o recurso à rede para me aparar na queda, a escrever o que
neste capítulo escrevi. Considero que tenho que sacudir as fontes e arriscar.
Antes porém, e não a propósito do que acima disse mas do que deveria ter dito ou
frisado no decorrer do último capítulo.
1-O modelo da igreja Católica de celebrar ao longo do ano
as festas da vida Jesuina e de sua mãe poderão ter influenciado o modelo do
Arcano.
2- O tipo de vida de uma mulher do grupo de Margarida no
convento ou em casa não seria muito diferente.
Passo a sintetizar, de seguida, algumas objecções ou
tentativas de correcção.
1- A parte da Escrita contém elementos que talvez
pertençam à oralidade às Festas ou à gestualidade . Senti
dificuldade em conter a informação nos parâmetros que inicialmente propus. Para
além dessa afinação julgo que o modelo funcionou.
2-Ainda que a sociedade rural que “entrevistei” (1983 em
diante) se pareça com o que tento representar (do século XVIII e XIX
)até que ponto as informações da primeira poderão interpretar a segunda?
Etno-história?
3- Ainda que tenha mudado será que a mudança afectou o
“essencial” (existencial )? A história das mentalidades e a abordagem dos
tempos (longos ou curtos) e o modo como as “mentes” mudam (portanto a teoria )
parece legitimar esta abordagem.
4- A etnografia e a história ( permanências) vão atrás ( certa etnografia e certa história ) dos invariáveis mas isto
não significa que não captemos os variáveis . Ao longo deste ensaio
captarei um que se revelará importante: a extinção dos morgadios.
Gostaria, todavia, de me certificar até que ponto os “
invariáveis” que julgo ter apanhado no século XX o eram no século XVIII e XIX.
Até que ponto eles autorizam-me a um discurso contextual
e histórico e não anacrónico?
Não sei mas tive de arriscar.
Na gestualidade dever-se-ão incluir muito mais expressões
não-verbais, tal como o não gestual, o espera aí, o vai-te embora, bem como a
expressão de agrado ou de cólera ou de dúvida, o sorriso, o riso etc.
porém estas como as demais áreas de socialização
interagem, por exemplo, um não, não-verbal, é frequentemente
acompanhado de um não verbal. Este sistema interpretativo interage
integrada e não separadamente.
5ª fase. Fase dupla: Comunhão e Confirmação.
5- Cidadania Católica paroquial de pleno direito.
Acesso à Confissão e à Comunhão do Corpo e do Sangue de Cristo e à Configuração.
Rituais bem
preparados?
Até aí ela seria católica, porque era baptizada, mas,
para o ser de pleno direito, faltar-lhe-iam dois sacramentos fundamentais: A
comunhão e a confirmação. Comunhão do corpo e do sangue de Jesus Cristo, Deus,
feito homem para nos remir do pecado original e nos levar de volta ao pai e ao
Paraíso Perdido. Beber e comer simbolicamente “Cristo” significava fazer
parte dela e da sua igreja. Para isso era preciso preparar-se muito bem.
Primeiramente aprendendo a doutrina da igreja, depois, purificando-se através
da confissão e só então comungar-se-ia. A cidadania ficaria incompleta sem a
confirmação, o sacramento que tornaria perene o desejo provisoriamente
manifestado no baptismo em ser membro da igreja. Fora uma caminhada que durara
alguns anos desde que a água baptismal lhe lavara do pecado original até à
confirmação que lhe dera a possibilidade de aceder a outros dois sacramentos: o
casamento ou a “ profissão no mosteiro”.
Desconheço a idade exacta em que Margarida comungou pela
primeira vez. Igualmente desconheço a altura da sua confirmação. Esta última
vem raramente registada, conhecendo-se apenas algumas folhas apensas ao livro
do baptismo. Os confirmados não tinham muita idade, segundo Fernanda Enes, pois
levavam o padrinho e os pais, facto que parece corroborar tal hipótese.
O primeiro rol de confessados que a igreja de N Sª da
Conceição actualmente possui (vi-os de alto a baixo) refere-se à quaresma de
1799 tinha já Margarida 13 anos feitos. Contudo uma análise atenta de uma série
(obtido através de critérios de representatividade) levou-me à colheita de
dados que me levaram a supor que não haveria uma idade cronológica rigorosa que
determinasse a “altura própria” para o acesso a este sacramento. A
variabilidade de idades, entre 6 e 7 anos até perto dos 9, 10 anos, leva-me a
supor que a “idade” dependeria, em grande parte, na “esperteza” da criança.
Sobretudo o desembaraço e a capacidade de “memorização catecismo” que a criança
dispunha. Exceptuando-se, talvez os casos excepcionais, pois, as crianças
comungariam entre os 6 e os 9, sensivelmente. A confirmação fazia-se depois da
comunhão, ou algum tempo depois ou pouco depois, faltam-nos os dados para o
confirmarmos.
A comunhão era tão importante que o concílio de Trento
instituíra o seu culto. A paróquia de N.Sª da Conceição, ao exemplo das
congéneres próximas, possuía uma Confraria do Santíssimo Sacramento que só se
ocupava daquele culto. As principais pessoas da terra faziam parte dela. Havia
dias próprios para o seu culto e concediam-se indulgências plenárias a quem
neles participasse. Promoviam-se mensalmente procissões. As igrejas conventuais
também tinham capela do Santíssimo. Já no século XVII, por exemplo, a confraria
da Matriz tinha estatutos. A acentuação desta celebração ocorre no momento em
que a contra-reforma de Trento pretende combater os reformistas. Estes últimos
não lhe viam qualquer utilidade séria. Roma, ao invés, investe nela,
revestindo-a de toda a pompa e o cerimonial barrocos. Lois Réau é de opinião
que tal salvara o catolicismo.
Na igreja da Conceição, o Santíssimo ficava ( e fica) ao
lado da capela-mor (tal como em todas as igrejas) do lado da porta de S.
Sebastião, onde à sua saída João Caetano Botelho seu antigo Provedor e tio de
Margarida, foi enterrado.
No altar da capela do Santíssimo insculpira-se um cofre
onde se depositavam todas as hóstias consagradas. Uma lamparina de azeite doce
ardia dia e noite.
Pela Páscoa, em que a desobriga era obrigatória, toda a
comunidade comungava.
Comungar, ao que parece, não era então frequente.
Reservava-se, regra em geral para a Páscoa.
Cristo teria instituído a Primeira Comunhão na última
Ceia.”Reconstitui-la” na igreja e em cada comunidade era reviver a biografia de
Cristo. A Páscoa estava ligada a esta etapa da biografia de Cristo e da vida de
cada cristão.
Ao comungar e ao ser confirmada Margarida passou a ser
uma cidadã católica de pleno direito. Agora poderia casar ou ser freira,
ou até ficar solteira.
Tudo isso, porém, em estrita obediência aos pais. A
mulher seria sempre mulher do marido, irmã do irmão, teria de respeitar os
pais, o homem e os mais velhos.
Talvez sendo freira isso se atenuasse ou sendo viúva,
como se verá adiante.
Desconheço se, na altura, se fazia, tal como hoje se faz,
uma primeira comunhão solene e pública. Como comungar não era um acto frequente
e era obrigatório, uma vez no ano, pela Páscoa, suponho que podemos pensar
plausivelmente, numa cerimónia especial para os neófitos. A confirmação,
sabê-mo-lo exigia padrinho.
A rapariga tornava-se então “reconhecidamente mulher,
ainda que o não fosse ainda biológicamente.O amadurecimento biológico ( a
menstruação ),chegaria no recato discreto do lar entre as irmãs mais velhas e a
mãe. Para se poder ser mulher como qualquer outra, para se poder casar ou
ingressar num convento, não bastaria que se fosse “ biológicamente mulher (só
no 1º caso) era necessário ser-se “espiritualmente mulher”. Só
aqueles sacramentos transformariam o acto da “ procriação “ em acto legítimo.
Ou melhor legitimariam o casamento que por sua vez legitimaria a
procriação.
Era uma cidadania “diferente” da do homem. À mulher
estaria vedado o sacramento da ordem porque sobre ela pendia como ainda pende
(?) o labéu de filha de Eva. O feminino está ligado ambiguamente ao fértil e ao
mal.
Não dissera S.º Agostinho que a mulher e o casamento eram
um mal, melhor seria o celibato. O sangue menstrual tornava-a impura, tão
impura que nem se podia acercar do altar-mor ou da comunhão quando estivesse
com o “período”.
6- Crise Familiar- a eminência da desagregação.
Crise
Pelos documentos que dispomos tudo parece ter sucedido de
um modo rápido e inesperado.
Ignes e José Francisco estavam casados há 34 anos, ela
tinha 50 ele teria 56, tinham três filhos sobreviventes: Ana, a mais velha, com
26 anos, Margarida,20 e Teodoro 19.
Tudo se passou entre a Quaresma de 1799 e a de 1800. No
rol de 1799 ainda estavam todos juntos na sua casa da rua de São Francisco. Em
1800, Ignes está com a mãe e os irmãos na rua de São Sebastião.José Francisco
permaneceu em S. Francisco e com ele Teodoro. Ana e Margarida estão já no
mosteiro de Jesus.
O que se terá passado?
Na quaresma seguinte (1801) Teodoro está junto da mãe e
dos tios. José Francisco fica só com o seu criado. Tanto naquele ano, como no
seguinte, pelo menos, ele não comparecerá a dar obediência à igreja. Diz-se no
fim do rol de 1801 (salvo erro) diz: “ Excepto o Capitão José Francisco que até
hoje não apareceu para dar obediência à igreja”.
Em 1808 já se confessa e comunga (o que não quer dizer
que não o tivesse feito antes. Existe uma falha documental) mas ainda permanece
separado.
Porque é que a paróquia não exerceu ( ao menos parece)
nenhuma coerção institucional?
Deparei com inúmeros casos e de todos eles foram punidos
pelo ouvidor eclesiástico. Terá o capitão, o homem de “posição” escapado por
ser de “posição”? E Ignes?
Em 1812 tem grandes arrelias com as suas terras de nabos.
O rendeiro do ver, Domingos Carvalho leva à audiência o caso. José Moniz da
Ribeira Seca é responsabilizado pelo furto praticado pela mulher. O mesmo
sucede a Manuel das Almas e a José Cacilhas, aquele pelas filhas e este pela
mulher. (a mulher “desresponsabilizada”) Depois é o silêncio. Permanece em São
Francisco até que na quaresma de 1817 já está com a mulher. O cunhado tinha
falecido em 1808 . No ano em que José Francisco se junta a Ignes .Rosa Felicia,
irmã de Ignes, morrera tal como a sua filha Ana, ou Madre “Ana Tiodoro” (sic).
Ficara Teodoro ainda solteiro e margarida no mosteiro.
Até parece “um esquema de um romance de Camilo”.
Foi tudo tão rápido e inesperado que o anotador do rolo
de confessados ainda registara os nomes de Ana e de Margarida na rua de S.Francisco
enquanto a mãe já estava com a avó ( ou melhor com os tios) e apesar de ambas
já terem professado. Riscou-as, porém.
Repito e insisto: “O que se terá passado?”.
Em Fevereiro de 1800, Ana e Margarida estão e ingressar
no convento de Jesus. João Botelho, tio, seu síndico e Procurador geral deverá
ter tido uma palavra influente(?). Decisivo foi a contribuição de 840 mil reis
pelos seus dotes oferecidos pelo Morgado e Capitão João Borges de Medeiros. As
influências são importantes. O que levou aquele homem a oferecer aquela quantia
bastante avultada, pelo sinal ? Apoiar vocações? Remediar uma situação?
Certo é que existiu uma crise familiar que permaneceu
durante quase duas décadas. Talvez esta tenha contribuído para a entrada rápida
no refúgio conventual, com ou sem vocação, por necessidade ou fruto das
circunstâncias. O convento, como iremos ver, era um “porto seguro” tanto
do ponto de vista de comodidade como de, certo modo, “liberdade”. Há quem diga
que a mulher só se emanciparia sendo viúva ou
freira, como já referi anteriormente.
As coisas são como são e a boa filha, mesmo em caso de
conflito familiar, deveria seguir o uso corrente.
Mas porque se separaram os pais? Problemas de heranças.
Teria o tio Caetano alguma coisa a ver
com o assunto?
Observações
Evidentemente que me falta aprofundar certos pontos aqui
enunciados. Aqui ative-me mais à documentação recolhida. Prefiro as explicações
contextuais às causais . Foi o que tentei “demonstrar” no último
“emaranhado” de perguntas que só levam a uma infinidade paralizante. Talvez até
laterais à preocupação da história .
7ª fase- A preparação e a Morte para o mundo. Morrendo
7- (Re) Socialização: O que é ser freira clarissa no Convento de Jesus. Ela
e a irmã.
Os
documentos que dispomos parecem suportar a ideia de que Ana e sua irmã Margarida não poderiam a 18 de
Fevereiro de 1800 ter completado um ano ininterrupto de noviciado no convento
de Jesus. Eles até reforçam a ideia de
que o acto foi algo inesperado, pelo menos para o arrolador dos Confessados da
paróquia.
Suspeita-se
pois, que a resocialização (ou socialização contínua) não se tenha (dado)/
processado como seria habitual. Consulte-se o processo da noviça Eufrazia
Ludovica chegar-se-à a esta suposição.
Não
cremos, todavia, que tenha havido um choque entre aquilo que Margarida
lá encontrou e aquilo que ouvira que lá encontraria. Só neste sentido. E,
afirma-mo-lo, porque o convívio da família delas com o convento seria regular e
frequente. Aliás a mãe tinha lá ou tinha tido uma comadre freira madrinha de um
dos seus irmãos já falecidos e o tio João Caetano Botelho, irmão da mãe, era
seu Síndico e Procurador Geral. Portanto o homem que tratava de toda a vida
material do convento no exterior e que estaria a par de tudo o que se passaria
dentro e fora. E bem relacionado a julgar pela celeridade de processo. O
contacto com a realidade conventual deveria ser algo comum quer para Ana quer
para Margarida tanto na sua frequência às festas e aos locutórios conventuais
tanto provavelmente em alguma estadia no seu interior. Em caso de uma crise
familiar (1800- crise no país) integrar-se-iam,
logo que vagassem lugares, sem grandes transtornos. Coincidência ou não
vagaram os lugares de Madre da Natividade, que Margarida ocupou e o de Madre
Antónia Faustina, ocupado por Ana, por falecimento daquelas.
A
aprendizagem das “regras e das constituições” não seria algo de
longínquo para uma comunidade sob a protecção dos franciscanos e onde para a mulher casar ou professar eram
duas realidades normais. Tinham um tio professo no Mosteiro dos frades. O
conhecimento das regras no exterior ou em estadias anteriores no seu interior
facilitaria a socialização. Portanto não seria uma resocialização. O facto de
ambas terem estado algum tempo imediatamente antes de professarem veio de certo
contribuir para aprofundar os seus conhecimentos sobre a história da ordem e
dos seus patriarcas bem como da história daquele mosteiro e das suas ocupantes
com fama de santidade. Para além do mais Frutuoso e Monte Alverne tinham escrito
sobre aquele convento e a vila. Até o conhecimento das idiossincrasias de cada
uma das actuais Madres; as boas e as menos boas, com os seus feitios, tudo isso
seria do conhecimento delas ainda cá fora. ( Poderia ser)
Havia,
pois, se calhar, mais que se prover à socialização. ( familiarização) com os
novos espaços e com as suas novas companheiras até que a morte as separasse.
Era preciso aprender a lidar com os feitios de cada uma, saber as regras não
expressas mas por todas aceites, saber enfim o seu lugar. Sobretudo. Sobretudo
fazer amigas e não fazer acima de tudo e antes do mais inimigas. Estariam elas
à altura?
O
convento fora fundado, após ter recebido bula de Paulo I I I, em meados do
século XVI por um irmão influente do então capitão-do-donatário, Pedro
Rodrigues da Câmara e sua mulher Margarida de Bettencourt, em suas próximos
casas, tal como os cunhados o haviam feito em Vila Franca em Ponta Delgada e na
Caloura.
Tal como
os da mesma estirpe o faziam pelo país fora, melhor dizendo pelo reino.
Em 1563,64,
ruíra quase por completo na crise sismico-vulcânica, mas apesar das muitas
dificuldades, fora reconstruído pelo padroeiro e de novo habitado em finais do
3 º quartel daquela centúria. Ficava situado a sul da vila, voltado para a
serra de Água de Pau e de um ponto que se avistava distintamente a enorme baía
onde a Vila da Ribeira estava implantada. A Ribeira corria ali perto. ( Hoje
está quase totalmente destruído. Parte deste trabalho destina-se a orientar a
sua escavação sistemática ).
Entraram
pela porta Regral, como era costume logo de manhã após terem ouvido a missa na
igreja e foram conduzidas ao espaço destinado às noviças. Ficaram sob a
responsabilidade da Madre das noviças. As suas idades não eram propriamente a
idade normal de noviça, Ana com 26 e Margarida com 20. Puseram-lhes véu branco
para as distinguir das Madres que usavam véu preto ou das pupilas ou das
servas. Pelo vestir via-se o que cada uma era. Eram 35 Madres ( o topo da
hierarquia ) mais algumas noviças que esperavam, à vez, que algum lugar
vagasse. As servas ocupavam-se, tal como em casa de cada uma as criadas, de
todos os trabalhos domésticos sob orientação de cada uma. Havia as servas
particulares e as da comunidade.
A igreja
era uma só nave e no altar-mor estava colocado em posição de destaque o símbolo
do orago do convento; Um crucifixo de 5 palmos. Pelos outros altares,
encontravam-se, creio que no altar-mor também, os patronos e fundadores da
ordem: St Clara e S. Francisco de Assis. S. João Evangelista, padroeiro da
Província Franciscana dos Açores, santo da devoção familiar de Margarida e do
qual retiraria o nome da sua obra para o seu novo nome. N. S. ª da Vitória e
Santo António também tinham lugar no corpo da igreja. Nos coros, alto e baixo,
muitas outras devoções tal como em cada cela individual. A igreja já ela
conhecia. O coro alto e baixo espaços que passariam povoar e de onde veriam com
frequência parte do mundo que para trás ficara. De lá e dos locutórios mais os
mirantes.
A partir
de então ficariam sob a alçada da ordem mas só se desligariam do século quando
o ordinário lhes fizesse perguntas e a comunidade as aceitasse.
Esta
parte era importante pois marcava o corte simbólico entre a paróquia a que ela
pertencera e o convento a que ela iria pertencer.
Paredes
meias com a parede da igreja, voltada a norte, desenvolvia-se para sul, o
claustro para onde davam as celas individuais. Parte das freiras, das noviças e
das pupilas que lá encontraram já as conhecia de vista ou de nome. Estavam
avisadas dos seus feitios até. Sabiam a quem deveriam recorrer.
Ao lado
do convento e dependente dele ficava a Casa do Oratório dos padres, junto à
ribeira e a poente do convento, que assistiam às necessidades espirituais da
comunidade. No ângulo sudeste da cerca ficava a arquinha, ao lado da porta do
carro, onde ia a água do aqueduto das freiras. Ao lado da casa dos padres
erguia-se um Passo e, defronte deste, um cruzeiro, no meio de um campo onde
frequentemente se faziam os “alardes” das milícias da vila. A nascente, a porta
regral e a roda conventual, no primeiro andar, os locutórios. Neste lado,
erguia-se o altar-mór. A poente, os coros, alto e baixo. ( são reconstituições
quase todas conjecturais carecendo confirmação arqueológica) No início do campo
das freiras, o pomar conventual. Todo esse espaço correspondia a uma casa
solarenga, talvez ainda mais pequena que a de S.Vicente, mas não muito maior. O
espaço da mulher solteira ou casada, na realidade, também não seria muito
maior. Até poderia ser mais pequeno. O problema seria viver ou conviver
harmoniosamente naquele espaço com tantas outras, cada uma com o seu feitio,
cada uma com a sua doença, umas novas , outras idosas.
Só uma
boa abadessa, poderia aliviar as tensões que daí poderiam advir. Ou punir os
casos mais graves inclusive o encarceramento no cárcere conventual. Apesar de
conhecerem as regras e do que se fazia no interior do convento, deve ter sido,
ainda assim, difícil a adaptação da
saída da casa paterna, tanto mais que estes se tinham separado. Além do mais,
aos 20 e aos 26 anos, a maneira de se ser e de estar na vida já estaria
longamente consolidada feita de gestos, de gostos e de hábitos. As obrigações
do coro obrigavam-nas a se levantarem ainda mais cedo do que habitualmente se
levantavam em casa e tinham de o fazer várias vezes ao dia todos os dias.
Era
necessário, caso ainda não soubessem, aprender de cor as orações e os cânticos
que acompanhavam cada hora canónica.
Não
tinham propriamente que trabalhar humildemente pois para isso existiam as
servas, porém, tinham que ocupar o tempo restante na oficina do convento.
Ana e
sua irmã, era exímia a fazer flores de penas, por exemplo. Ela também tinha o
seu talento.
A
Abadessa superintendia tudo e era eleita de dois em dois anos podendo ser
reeleita: As eleições tinham que ser confirmadas pelos responsáveis da Custódia
da Puríssima Conceição uma da três que formavam a Província franciscana de S.
João Evangelista emancipada do continente, depois de muitas peripécias
perseguições e prisões, no século XVII. (é curioso registar, a talha de foice,
que os primeiros autonomistas foram os religiosos ) Era coadjuvada por outras
madres com papéis especiais tais como as Discretas, a vigária, a escrivã a
mestra das noviças, a porteira, a rodeira, principalmente. Do lado de fora das
grades mas a soldo do convento o Síndico e Procurador Geral administrava os
teres e os haveres da ordem, sobretudo dava conta dos recados da abadessa,
recolhia as rendas e os foros, contratava mestres, entre muitas outras tarefas.
Dentro do convento, ambas aprofundavam os seus conhecimentos da vida religiosa
através dos gestos, das festas, da leitura, da oralidade tal como o tinham
feito.
O
convento participava em algumas das festas do exterior, como a do Senhor dos
Passos ( com o sermão da Portada?), daí a proximidade do Passo Quaresmal.
Incluía-se
a festa das comadres e o Entrude. Estas festas nada têm a ver com a religião,
registe-se. Sobretudo o Entrudo em que, tal como na vila, era permitido
controladamente a perversão da ordem conventual antes da Quaresma .
As comadres,
e quase todas as freiras as tinham, Margarida nunca as teve, ao que parece,
da vila e do convento eram um elo
importante para as Madres. Assim se acedia a tudo o que se passava na vila. O
convento só seria uma vila dentro da vila por obedecer a leis diferentes mas em
tudo o mais participava, havia osmose social. Os muros da cerca nunca o
impediram.
Depois
havia as festas em que o convento tinha fama ( as suas cantora, por exemplo) e
que atraiam tanto os da vila como de fora dela e até mesmo estrangeiros não
católicos.
cada um
dos santos existentes nos altares tinham direito a festa: St º António e S.
João Baptista em junho; em julho o Santíssimo Sacramento e S. Francisco; (
aproveitariam eles a festa do Santíssimo em julho para as primeiras comunhões
solenes?) em Agosto, St Clara; em Outubro, os Santos, de novo São Francisco e o
Pão por Deus; em Novembro St André e em Dezembro N. Sª da Conceição e o Natal.
para além de S.João Evangelista. Estas festas eram acompanhadas por actos
solenes na igreja e por festejos no interior com doçaria e todo o tipo de
culinária que tornou o convento e quase todos os conventos afamados. Também
neste espaço supostamente imune e estanque ao mundo se reflectiam e se
reproduziam as festas de um mundo sincrético.
Cada uma
trouxe-se a si e à sua cultura para dentro do convento. Não houve corte, nem
tão pouco ostracismo, houve um pouco de recolhimento.
A
comunidade funcionava, deixe-se passar o termo, como uma “cooperativa”. Quando
havia excedente redistribuía-se por todas as madres. O da comunidade era de
todas mas o de cada uma era só de cada uma como à frente veremos.
Distribuíam-se
pelo Natal, pela Páscoa, pelas festas de S. Francisco de S. Clara e pelos
Santos, estipêndios monetários ou em género denominados propinas. Era-lhes
assegurado a subsistência, ao nível do que de melhor havia na vila, assistência
médica e medicamentos e mesmo assistência religiosa em vida e após a morte.
Enterravam-se na igreja e no coro conventuais. Era uma vida farta e estável.
Consultando, como fiz, o livro da receita e da despesa conventual, deparei com
aquilo que, dia à dia, a comunidade consumia. Eram carne de rês e de cabra,
peixes (bacalhau), galinhas, ovos, lenha miúda e grossa mais charamuga, arroz,
manteiga, azeite, açúcar, vinho, chá, café...
Pão,
coziam-no, ao que creio, e, fruta tinham-na no Pomar mais os legumes como
nabos, couves e batatas. Eram despesas consideráveis que também incluíam obras
de manutenção (retelho sobretudo no verão) roupas para as madres, louças, papel
para doces, entre as quais as despesas com a saúde com os pregadores, com os
padres do oratório. Despesas muito consideráveis. Parte disso tenho comprovado
e para além dos livros consultados, nas intervenções arqueológicas que tenho
levado a cabo. Cerâmica da mais fina, azulejaria de padrão, tanto Portuguesa
como hispano-árabe é muito vulgar encontrar nos achados de superfície. O espaço
em que o claustro se erguia é agora uma terra cultivada.
Ingressar
no convento era entrar num lugar seguro, livre das incertezas económicas,
sociais e políticas do mundo. Se calhar era preferível ao casamento ou ao
manter-se sob o jugo paternal. O factor mais problemático seria o de se
conseguir dar bem com todas.
8- Morte para uma comunidade e
renascimento para outra- 1800.
8.1 Renascendo
8.1.1 Ritual do Ingresso.
8.1.2 Renascimento.
8.1.3 Noivado com
Cristo.
Só pôde
aceder à plena cidadania conventual no dia em que professou. Para isso
foi essencial que vagassem lugares mas não bastou, foi preciso que a comunidade
votasse favoravelmente a sua entrada e que lhes desse, a cada uma, uma propina.
Ainda não era o suficiente. O ordinário teve que lhe examinar tal como já
referi e conforme o concílio Tridentino, para evitar abusos, estipulara.
Perguntou-lhe
o ouvidor do eclesiástico ( representante da paróquia que lhe ia aceder a
deixar ir uma paroquiana), do lado de fora da porta Regral, se
Margarida, onde estava podia responder sem medo e livremente às perguntas que
ele iria formular. Estas perguntas são utilizadas de igual modo para a irmã e
para todas as que quisessem professar. Prosseguiu. Se se achava comprometida
por escrito ou por palavra com alguém e lhe devesse casamento. Se os estatutos,
as regras e as cerimónias lhe pareciam bem e se professasse iria ela viver no
Mosteiro sempre em clausura e observância dos três votos, a saber: obediência,
pobreza e castidade. Respondeu Margarida a tudo de forma satisfatória. O
mesmo fez a irmã. Mais tarde, e depois daquela “ formalidade” fez-se uma
escritura pública de entrega de dote para professar na valor de 420$000 réis
cada. Num dos locutórios do Mosteiro, do lado de dentro, a abadessa como parte
aceitante, reunia a comunidade ao som da campa tangida, da parte de fora, o
capitão João Borges de Bettencourt, como parte doadora, e perante testemunhas e
o Síndico e Procurador Geral, João Caetano Botelho, processou-se todo este
ritual. Estávamos no dia 18 de Fevereiro do ano de 1800. O pai não contibui nem
esteve presente.
No mesmo
dia e de uma só assentada formalizou-se e fez-se a entrega de 840$00 reis para
Margarida e Ana poderem professar.
Ainda
não eram freiras, mantinham-se noviças até que em cerimónia solene e especial
se lhes impunham o véu preto de professas. Perante a família biológica, perante
a família paroquial e perante a nova família conventual a ambas foi
cortado o cabelo e foi colocado o novo véu, sinal de viuvez do mundo extra-
muros. E para acentuar mais a ruptura escolheram novo nome como se fosse um
novo baptismo: Margarida Isabel Narciza morreu e nasceu a Madre Margarida
Isabel do Apocalipse. No fim a família
conventual levou a sua nova filha e as outras duas presentes e legitimadoras do
acto recolheram à paróquia e à rua de S. Sebastião. O seu nome foi riscado do
rol de confessados da paróquia.
A
despesa com a profissão de uma freira, evidentemente que variava de caso para
caso, e neste caso desconfio que não se teria revestido de tanto luxo como o
que vem relatado no Arquivo dos Açores a 8 de Setembro de 1720.Vejamos. A
noviça que agora se transformava em freira levava dote e enxoval tal qual uma
noiva normal, pois, o que não seria senão uma noiva de Cristo?
Para
além das propinas distribuídas pela comunidade fazia-se uma boda,
contratavam-se músicos para a cerimónia religiosa, compravam-se os vestidos e o
véu. Tocavam-se os sinos. As bodas de Ana e de Margarida fizeram-se juntas. No
caso que estou a relatar a professanda inclui cama e armário mais espelho tudo
em pau preto. Inclui a oferta de oitenta galinhas e mais outras precisões para
a boda. Dia de profissão era dia festivo e era dia concorrido. A igreja, tal
qual qualquer noivado, engalanava-se às custas e ao gosto “da noiva e da sua
família”.
Ao
entrarem no convento em procissão, no meio das novas irmãs, Margarida e Ana,
não voltaram exactamente as costas (de facto) ao mundo mas passaram-se a reger
por regras e leis próprias. A vida conventual seria uma vida na qual a mulher
poderia aceder a cargos e a posições que na vida extra-conventual nunca
conseguiria pois aí sempre filha e esposa de alguém. Talvez só a viuvez lhe
desse oportunidade ou necessidade.
Obedeciam
às regras mas estas regras eram elas próprias a garantia dos seus direitos,
qualquer freira de véu preto podia eleger e ser eleita, porém, na prática só as
“melho-res” ou as mais “hábeis”e “ manobradoras” ou carismáticas
o conseguiam.Nos dois pri-meiros anos após professas mantinham um estatuto
de quase noviças.
Para
entendermos ( ensaiarmos) as clarissas de então não se poderá pensar nas de
hoje. Os conceitos de pobreza e de castidade não eram entendidos nem
praticados tal como o são hoje. Apesar das regras dizerem o contrário.
Em
primeiro lugar, a vida no convento, como vimos, era farta ( e se a compararmos
com o exterior, ainda mais o parecerá. ) e as freiras não só levavam um
enxoval, como também, no caso de Margarida, recebiam heranças e propinas que
não eram considerados bens da comunidade. A tal ponto que, quando Margarida
teve de sair, trouxe consigo um confortável pé de meia que lhe proporcionou uma
vida estável e sem sobressaltos. Confessa-se no testamento que fora devido ao
seu trabalho e à sua muita poupança. Aliás Margarida, a exemplo da irmã Ana,
deve ter trabalhado para fora, designadamente, para a igreja Matriz e, se
calhar, nesta altura já se fazia algo parecido com aquilo que iria fazer
exclaustrada: O Arcano.
Quanto à
castidade, não era entendida como hoje. Um viajante inglês que deixou obra
escrita descreveu-nos um serão de canto no convento de Jesus, numa altura em
que Margarida lá estava professa. Foi acompanhando o padre mestre do convento
de S.Francisco onde estava hospedado. Eram cultas, escreveu ele, sabiam várias
línguas e, faziam trabalhos em folha de milho e papel, sendo boas cantoras.
Conta que quase todas tinham os seus “amantes”, na sua maior parte, platónicos.
Algumas passaram mesmo do platónico. fala de uma, Laurino, a mais bonita de
todas, a que melhor cantava, sendo voz corrente, apaixonara-se perdidamente por
um inglês, sendo o amor correspondido. Fiquemos por aqui que só pretendi
ilustrar um ponto. se quisesse reforçá-lo bastaria acrescentar algumas das
histórias que registei na recolha de tradição oral a que procedi. Quer a
literatura liberal que a literatura oral são unânimes em apontar exemplos pouco
edificantes da virtude “castidade”.A ideia de que nada disso acontecia e
que tudo isso seria propaganda liberal de pedreiros livres começa a circular na
segunda metade ou mesmo no final ou na transição para o século XX. Esta
literatura retrata as freiras como modelos de virtude modestas e orantes
tomando como padrão a virtude de outra época. O que posso afirmar com certeza e
que não eram pobres e tinham bens e que como muito bem.O mundo da vila e o
mundo do convento estava mais do que ligado. Por conseguinte não estariam assim
tão sequestradas do mundo. Julgar a virtude dos que nos antecederam pelos modelos
de virtude dos nossos dias é cometer um grave erro histórico ao qual eu
conscientemente não me quero prestar. Havia casos, no que concerne à clausura,
em que se faziam excepções. Sobretudo em doenças.
Ou então
quando alguém fugia. O normal era a clausura, porém.
Aquele
mundo, perto de outro, convivendo com ele, dele precisando para sobreviver, era
um refúgio e um refrigério para os males do mundo de então. A lei dos morgadios
era uma condicionante. Mas já então, aquele mundo estaria querer desabar. As
regras, como se viu, não eram escrupulosamente cumpridas tal como os seus
fundadores o pretenderam no século X I I I.Ao longo dos tempos foram sendo
adaptadas e corrigidas uma
condicionante. Sobretudo o de pobreza. O Mosteiro de Jesus um dos seis
existentes na ilha de São Miguel, possuía terras e outros bens raiz em toda a
ilha. Já em 1814 se tentou a nível nacional extinguir as ordens religiosas
(Liberalismo e Catolicismo.O problema congracionista (1820-1823) e em 1821 e
1822 também. Anunciava-se já 1832. Para muitas pessoas do reino os conventos
eram espaços inúteis.
Observações
1-
Apesar de tudo, continuaram a pertencer a uma família e a uma vila.
Melhor
dizendo, “sentiam-se, agiam e pensavam” como ainda tendo muito a ver com o
“outro mundo”, ainda que dele se tivessem “simbolicamente” separado.
Assim
parece-me que houve adição de mundos ( fora e de dentro) e não subtracção.
Uma
coisa era a lei outra seria a prática.
2-Era
tanto assim que, uma coisa era a lei outra a prática, apesar de se regerem pela
primeira regra das Clarissas, no fundo, não o eram.
Mantinha-se,
todavia um “núcleo duro”que tolerava uma série de elastecidades
circunstanciais e bem fundamentadas à regra. Não eram pobres , por
exemplo, porque não poderiam nunca depender da contingência, tal como os
homens,(certos conventos é certo) que pediam esmola. Não seria próprio de
senhoras. Uma simples circunstância irrefutável mudou um comportamento sem,
todavia, mudar o núcleo central da lei.Esta incoerência, sendo tão evidente,
constitui um dos cavalos de batalha dos Liberais.
9- Crise Pessoal
Tanto
quanto consegui, até ao momento, apurar, Margarida nunca veio a ocupar qualquer
cargo no Mosteiro de Jesus. As primeiras noticias que dela temos são já de
crise. Em 1818 fica só ela e o irmão Teodoro. O tio morrera, a tia, o pai e a
mãe. A sua irmã Ana, que professara com ela, que com ela andara ao colo, que
com ela aguentara a crise familiar e a adaptação ao convento, morrera. Estava
só. Cá fora, para além de Teodoro, só uma prima lhe restava, com quem manteria
uma amizade de sobrevivente até falecer muitos anos mais tarde. Ela conhecia
bem de perto a morte. Joana de cinco anos, sua irmã, morrera, a avó em 1793
também. No convento o mesmo. O irmão entretanto, casaram, porém, a cunhada
faleceria meses apenas após o casamento em circunstâncias trágicas. Viúvo,
Teodoro, volta a casar.
A partir
do início da década de vinte (1820) detecto os primeiros vestígios ( sinais)
documentais da sua doença crónica. São as sangrias, são os remédios. Margarida permanece retida
por largos períodos na sua cama e na cela. ela e a imagem do seu padrinho
S.João evangelista. A doença agrava-se. São chamados médicos que lhe prescrevem
os mais diversos medicamentos e os mais variados tratamentos. porém, em vez de
melhorar, a doença agrava-se. Até que em 1831 ( ou 2?) uma junta médica lhe
recomenda unanimemente a saída a banhos nas Caldeiras e a passeios a cavalo e a
pé. Diagnosticaram-lhe uma “phlegmazia “ com prostração dos membros inferiores.
Penso que, em parte, ( se tivesse comigo
a ficha médica seria mais fácil) são doenças psico-somáticas. Consegue sair,
por um ano, ao contrário dos dois ou três que lhe aconselha-ram, sob custódia
da sua prima e da cunhada. Não poderia entrar em “taberna”, tinha que andar
sempre por caminhos abertos e de dia, sempre com as suas guardiãs.
As
circunstâncias da sua profissão e todos os acontecimentos posteriores ( morte
de familiares) , desentendimentos familiares mais a sua doença, talvez
acrescido da sua maneira introvertida ( suspeito) fizeram dela uma freira
diferente das outras.
Algumas
acusavam-lhe o facto de não cumprir os deveres, por exemplo, nem todas
compreenderam as suas moléstias, assim nem todas deram o seu assentimento à sua
saída temporária para tratamento.
Apagada
e achacada e sem grandes apoios familiares, Margarida esteve à margem da vida
conventual. Em carta inédita de que possuo cópia, escrita muito mais tarde, a
julgar pelo tipo de letra, miúda, junta, muito certinha e a julgar pelo Arcano,
em si mesmo, pensaria que ela era uma personalidade introvertida, tímida.
todavia, paciente e perseverante.Qualidade de artista, mas qualidades que
dificilmente a fariam impor entre as 35 irmãs. Suponho que durante as suas
longas e constantes permanências na cama, começasse a fazer algumas figuras iguais ou mesmo já
aquelas que viriam a constituir a sua história de Jesus Cristo: O Arcano.
Também aí revela a sua tendência para se refugiar no passado.
À sua
crise pessoal, ir-se-ia seguir a crise geral e o fim efectivo das ordens
religiosas.
8ª fase- A vila como seu Porto Seguro.
10- O Fim de um mundo. ( 17-05-1832)
Lei da Extinção
dos Conventos nas Ilhas.
Pouco
mais ou menos, 32 anos após a sua entrada no convento aos 17 de Maio de 1832
foi publicado um Decreto que extinguia pura e simplesmente todos os conventos
das ilhas de ambos os sexos. Quem quisesse continuar teria de ir para o
convento da Esperança em Ponta Delgada. Em Junho o convento já tinha sido
desocupado. O rei e a sua comitiva tinham vindo à Ribeira Grande onde foram
recebidos com toda a pompa e circunstância . Ao que consta visitara mesmo o
Mosteiro. As freiras de S. André de Vila Franca empenharam-se mesmo na causa
enviando às tropas mantimentos. Fora a seguir ao desembarque no pesqueiro da
Achadinha e à escaramuça da ladeira da velha. Os liberais venceram com
facilidade os absolutistas. O irmão que era o vereador mais velho e importante
conseguira receber com modos os vencedores.
Em Junho
o convento estava desocupado, já o dissemos. Em Outubro de 1833 o cunhado do
irmão José Maria da Câmara Vasconcelos arremata os edifícios do antigo Mosteiro
incluindo a igreja. Prudentemente a Madre Abadessa distribuíra pelas restantes
freiras os rendimentos ( disse ela depois, excedentes, como de costume )
daquele ano e todas as propinas devidas. Ainda em 1835 a Madre Abadessa, já
exclaustrada, mas a viver na vila da Ribeira Grande,tal como a maior parte das
outras, presta esclarecimentos à Fazenda Pública. Com a ajuda do irmão, da
cunhada e da prima, ( o irmão estava bem relacionado e apesar de ter sido uma
figura graúda do antes da Ladeira da Velha, continua a ser alguém com alguma
influência e sobretudo um valioso contacto, o cunhado, o presidente da Câmara.)
reúne tudo o que tem e sai do convento. A porta foi selada. Fez-se um
inventário de todos os bens móveis da igreja e do convento e de todos os bens
de raiz espalhados pela ilha. O mundo que deixara fora, desabara, e o mundo
para onde entrara, ruíra. O que fazer?
José
Maria, e os novos vereadores, começaram a montar a nova estrutura político-
administrativa concelhia. O Pelourinho foi derrubado como símbolo do
absolutismo, as prisões estavam cheias de padres absolutistas e a monte
sobretudo para os lados da Tronqueira ainda andava a guerrilha Miguelista.
Havia
medo e insegurança. Entretanto a guerra civil só acabaria em 1834.
Era
preciso cerrar fileiras enquanto o inimigo não era vencido e era preciso
contribuir para o esforço de guerra. Daí a pressa em arrematar os bens
conventuais. A elite Micaelense pôs-se quase toda do lado do rei e de Dª Maria.
No meio de toda a confusão política nacional a que se assiste e se participa na
vila ( Conhecem-se vários Ribeiragrandenses que participaram na expedição ao
Mindelo ) morre-lhe em 1835, Teodoro. Já não se podiam os mortes, como dantes
nas igrejas, e lá vai o corpo de Teodoro para o novo cemitério. O que fazer? Em
1833 margarida alugara uma casa na rua das Pedras, no ano seguinte, aluga uma
casa na rua de João d’Horta, ali ao lado, que pouco depois viria a comprar. O
mesmo faria depois em relação a outras duas adjacentes. Doente e decerto “insegura”
prefere o abrigo maternal da vila a ir para o convento de Ponta Delgada.
Deve ter
estado provisoriamente e por pouco tempo em casa do irmão. Aos 53 anos ainda
teria mais 27 para viver, viúva do mundo uma vez para casar com o convento, enviuvara agora
do convento , Madre Margarida sem renegar os votos que proferira, sozinha,
vai-se tornar na Sr.ª Madre margarida Isabel do Apocalipse. De figura
apagada no convento e pelo seu talento vai-se tornar uma notável da vila. A
vila apropriar-se-à da sua obra e do seu
nome apesar de ela continuar a ser recatada e introvertida. Parece que a
viuvez lhe fez bem. Sobretudo na década de quarenta. O seu (prestígio)
torna-a tão influente ou mais do que qualquer das demais freiras sobreviventes
espalhadas pela vila. O arcano trazia uma mensagem que apaziguava as incertezas
dos seus concidadãos. No fundo, ao revelar por figuras, as três leis que Deus
dera ao mundo, ao modelar a vida de Cristo, de certo modo, Margarida, tocara o
coração das pessoas Deus não dorme e Deus é o Pai de todas as coisas. O arcano,
para além do valor estético, trazia em si um elemento agregador. Deixarei
isso mais para diante. Ela não tinha pai, nem mãe, nem irmão, nem
convento
mas continuava a ser a noiva de Cristo e Cristo existia. O facto dele existir
(continuar a existir) deu segurança à sua vida.
9ª fase- Viuvez do convento de Jesus.
11-Renascendo de Novo. Durante 28 anos.
Já em
1831, logo a seguir ao 2 de Agosto, logo a seguir à “Batalha da Ladeira da
Velha”, a cerca de 5 quilómetros a nascente da vila, ainda antes da extinção do
seu convento, as coisas tinham começado a mudar inexoravelmente.
Em 1832
uma série de decretos prontamente executados
iniciaram o desmantelamento institucional do regime absolutista. A 17 de
Maio saíra o da extinção dos conventos, no dia anterior tinha saido um outro
que viria a mudar radicalmente o conteúdo e a estrutura administrativa de
todo o arquipélago.
Os
vereadores anteriores são substituídos. O cunhado do irmão Teodoro, José Maria
da Câmara Vasconcelos, de fora da vila,
natural da Bretanha ou de S. António
(?), mas descomprometido com o regime anterior, e nomeado em sua substituição.
Os funcionários da autarquia são compelidos em acta a assinarem as suas
adesões inequívocas à carta e a D. Maria
I I identificadas com os garantes da “
Liberdade “ ao invés de D. Miguel, símbolo da Tirania . O nome do tirano
é riscado de todos os documentos oficiais autárquicos ( que conheço), o
pelourinho é derrubado, as enxovias entupidas.
As cadeias, nos baixos do edifício da autarquia regurgitam de presos
políticos, tal como já referi, e entre eles, muitos eram religiosos.
A
própria estrutura superior Diocesana foi
tocada pelos liberais. A partir do topo, e através de cartas circulares,
tenta-se conseguir o apoio da população
católica das ilhas. Tenta-se-lhes explicar que o liberalismo não é
anti-católico mas anti-abuso das instituições católicas. A este respeito é
eloquente todo o preâmbulo do decreto de extinção dos conventos. O monaquismo
actual é entendido como uma perversão do espírito inicial de Cristo e dos
primeiros cristãos. Além do mais, sendo instituições não produtivas e que, em
si albergaram gente, mulheres e homens, na plena força da sus vida, seria útil
resociá-los utilmente, ou melhor resocializá-los de modo a enriquecer a nação.
Cartas
surgem a (vindas da Diocese aderente) incentivar o povo católico a obedecer à
carta e a Dª. Maria I I. As coisas ir-se-ão radicalizar, sobretudo no período a
seguir à derrota Miguelista no continente em 1834, e, depois progressivamente
acalmando, essencialmente, a partir de 1850, ou seja, da denominada Regeneração
política. É possível acompanhar todo este percurso através das actas das
vereações e das Pastorais e outras cartas diocesanas. Para além de outros
documentos . O clima é de insegurança e de instabilidade.Parece que com a morte
de Teodoro, em 1835, como já foi referido, Margarida vai reiniciar decididamente
a “reconstrução” da sua vida fora do convento.A decisão dela, de se manter
freira egressa mas em casa própria, dentro do contexto geral, parece-me ser
bastante realista e moderada. Algumas “ irmãs” mais novas até se casaram,
poucas deram entrada no convento da Esperança, a maioria fez como ela e
permaneceu na vila. Penso ( pelos elementos que disponho) que os gestos
conciliadores da ex-abadessa foram exemplares. Colaborou com as novas
autoridades mas não esqueceu o bem das suas ex-irmãs exclaustradas, na sua
esmagadora maioria espalhadas pela vila. Em 1832 doou, aquando de uma epidemia,
medicamentos que pertenciam à antiga botica conventual. Manteve-se como elo de
ligação, colaborante, com as Finanças, respondendo a dúvidas e a questões que diziam
respeito à gestão conventual. A sua conduta deve ter, pelo exemplo, contribuído
para orientar e serenar as suas colegas exclausuradas.
O povo,
a julgar pelos indícios que disponho, apesar do anedotário picaresco sobre o
convento, sentia simpatia por elas. Ainda há pouco tempo ouvia-se na Ribeira
Grande que José Maria da Câmara
Vasconcelos ( já não se lembravam do nome), ou melhor quem comprara o convento
e a igreja tivera “má fim”.
Não me
parece que haja ou tenha havido grande hostilidade contra as freiras
exclaustradas. Elas pertenciam a famílias que ou estavam no lado dos vencedores
ou que com eles entretinham boas relações. Veja-se o caso de Madre Margarida, o
irmão e o cunhado. Obediência respeitosa, é certo, mas não adesão é o que me
parece poder depreender da atitude de Madre Margarida. Obediência tal como
tinha sido educada. Ainda por cima era mulher. No fundo parece-me que ela não
se teria adaptado bem à vida conventual. a doença crónica dela seria mais
psicossomática e talvez provocada pelo ambiente que se vivia intra muros. O
exterior veio-lhe dar estabilidade , paradoxalmente.
Do
arrendamento avança para a aquisição das casas que haveria de manter até ao
final da sua vida. Com as suas poupanças, com o fruto do seu trabalho e com a
herança vitalícia, Margarida, continuando a trabalhar constrói “uma casa”.
Faz
obras de adaptação, une as três casas e mete, em1850, água canalizada dentro de
casa. melhorando importante e raro na época. vive confortavelmente.
Tem duas
cartolas de vinho, sacas de milho e de trigo, galinhas e porcos. Coze pão no
forno de lenha, faz doces e costura.Da sua dieta faz parte o chá e o café e os
licores finos. não descuida a sua higiene e tem uma tina cara para tomar banho.
Possui louça fina. E para sair, para a missa e a conselho do médico, dispõe de
um capote e de um guarda-sol (todas estas informações são fornecidas pela
consulta do Testamento). É dona de uma biblioteca composta por livros
devocionais tais como a história biográfica de sua “madrinha”, Santa Margarida
de Cortona, livro de salmos, a “Sagrada História do Velho e do Novo
Testamento”, e mais alguns outros. Tinha sempre alguém consigo para lhe
auxiliar nas suas lides domésticas e demais negócios. Assemelhava-se à sua avó
materna que viúva tivera que ser o “Homem da casa”. Aproveitava a
passagem dos Adelos ( vendedores ambulantes), à época os “Sebag” apareciam
muitos na vila, para mercadejar louças e outros produtos. Não seria aquela
pessoa escondida do mundo como nos quiseram fazer crer, uma certa literatura
conservadora já no século XIX. Creio que por certo espírito preconceituoso e
anacrónico. Margarida,Madre Margarida, pelo feitio e por hábito e , se calhar
também pela promessa que fizera, e até por dever de mulher honesta, cultivava
uma certa distância do mundo. Em carta de1850 (?) dirigida à sua sobrinha ela
confessa que prezava a sua intimidade e que no fundo, não teria obrigação,
antes pelo contrário, de privar exageradamente com o mundo. Porém, pelo muito
afluxo de visitantes ao seu Arcano ela havia perdido “ o gosto pela solidão”.
Em todo o caso presumo que preferisse o contrário, ela confessa nunca fechar a
porta a quem quer que a visitasse. Ainda obediência e educação mas também um
orgulho de criadora. era tanto assim que para tentar ( o que não veio a
conseguir) completar o Arcano ela teve de publicar um aviso no “ Açoriano
Oriental”a pedir que a não visitassem. No fundo, surge-nos, uma pessoa que
gostava de manter um pequeno círculo de visitas e evitavão grande número de
pessoas mas que gostava igualmente de mostrar a sua obra. Era inevitável o
desfecho.
Ao fazer
testamento, madre margarida, dá conta dos seus panos de mais variado linho. Era
tanta a quantidade que decerto serviria para outra coisa para além do uso
pessoal ou de simples investimento tal como se poderia fazer com ouro e jóias.
Se calhar era para negociar? Não encontrei qualquer referência à existência de
tear na sua casa, mas encontrei referência a dezenas de “tecelões e tecedeiras”
a exercer a sua actividade artesanal familiar na mesma rua de João d’Horta e
outras circunvizinhas. Aproveitaria ela o grande afluxo de visitantes para
negociar aqueles panos que ela encomendaria às vizinhas? De que é que ela faria
dinheiro? Não se pense que esta actividade fosse considerada invulgar para um
religioso.O pai, era ela ainda uma criança, e, sendo almotacé, fora chamado a
depor contra um padre que negociava pano contrabandeado e que o mantinha
escondido, pasme-se, no Mosteiro de Jesus, onde mais tarde ela iria professar.
A carta
a que já me referi, enviada à sobrinha, que lhe enviar uma lembrança mas que
ainda não lhe dera a quantia que lhe era devido por testamento da mãe,
mostra-nos uma mulher subtil e inteligente, senhora “ segura da sua vida”.Depois
todo o testamento, Rol,Codicílo e processo para aquisição do altar onde iria
colocar S. João Evangelista, dá-nos o perfil de uma mulher com um profundo
conhecimento da alma humana e com imenso tacto para o negócio.
Morava a
escassos cem metros da igreja Matriz, o seu quarto de cama estava virado para a
igreja e o balcão, logo á saída da sua cozinha, abria-se para a baía da Ribeira
Grande. Estava perto o mar, tal como estivera na sua casa da rua de S.
Francisco onde respirava o ar salgado do areal. no convento, à noite, em certas
noites, ouvia o mar rolar nas pedras junto às poças onde os lapeiros apanhavam
mariscos.
A pouco
mais de cem metros ficava a praça do município envolvida nos largos da
Misericórdia e da fonte Grande do outro lado da ribeira.
A botica
e o hospital ainda permaneceriam por mais algum tempo na rua do Espírito Santo
mas ir-se-iam transferir par o convento dos frades junto à sua primeira casa.
Convento onde estivera o tio e onde a avó estava sepultada.
Conseguia
carne fresca e pescado na praça onde havia o açougue junto à Câmara e o
barracão do outro lado da ribeira e defronte da casa da prima Umbelina.(morava
na rua do Espírito Santo)
A praça
estava a sofrer grandes modificações. Uns anos antes de falecer ela dera lugar
a um jardim mudando-se então a praça para a cascata, mesmo na base da colina da
igreja Matriz, do lado da porta principal. Ficara ainda mais perto da sua casa.
A vila
mudara desde que saíra da rua de S.Francisco. É certo que ainda lá estavam as
três ou quatro casas altares e sobradadas que tinham sido construídas na rua
direita, era ela ainda uma criança. Todas tinham a data gravada. O lintel das
vergas das janelas era já contracurvado pois era uma moda diferente daquela
casa da avó e de sua mãe. Duas delas tinham rés-do-chão e dois andares,
enormes. No tempo não havia mais nada tão alto na vila, só pouco depois se fez
o arco e a torre da Câmara. Também antes de ela entrar para o convento, a St
Casa da Misericórdia mandara todos os cinco passos quaresmais.Dois eram na rua
direita, um defronte da igreja da Conceição, outro perto da casa do tio e
padrinho. Um outro ao lado da prima Umbelina, na rua do Espírito Santo, ainda
outro, no rosário e um quinto ao lado da Casa do Oratório perto do convento
onde professara. Do coro alto viam toda a procissão. A igreja da Misericórdia,
ou dos Passos ou do Espírito Santo, os pais ainda se lembravam de a ver ser
construída e os avós lembravam-se, da igreja Matriz antes da actual. A avó
Joana ouvira o pai falar da construção da igreja da Conceição e do solar de São
Vicente Ferreira, onde morava gente “ sua parente”.
A imagem
do Senhor dos Passos fora enfeitada por elas no convento quando viera de Lisboa
e, por, tradição todos os anos. O sermão da Portada era lá e lá permanecia a
imagem de N. Sª da Aflição de um dia para o outro.
Na
antiga praça, há pouco tempo atrás, tinham construído uma casa alta de sobrado.
Já era diferente no estilo das outras anteriores. A praça mudara imenso. A
Misericórdia tinha uma torre e um largo no qual havia, diziam os antigos um
celeiro e um “triatro do Espírito Santo”.
Agora
era freguesia da paróquia de N. Sr.ª da Estrela, igreja da Matriz, onde havia
algumas imagens e mesmo talha de altares que tinham pertencido ao seu convento.
A cruz de Cristo com cinco palmos estava lá. A Matriz tinha sido a depositária
dos bens móveis religiosos da igreja conventual. Parte ficaria lá e outra parte
fora distribuída pelas igrejas mais carenciadas. A Ribeira Seca, por exemplo e
a da Maia, beneficiaram, entre outras.
Em
criança frequentara a igreja de N.S.ª da Conceição onde fora baptizada.
Lembrava-se distintamente das suas sessões colectivas de catequese antes do
início da missa em que o senhor padre ia rezando orações e toda a comunidade
velhos e novos, homens e mulheres, de todas as situações, respondiam. Havia
gente que nem se sabia persignar e muita gente não pagava o dízimo nem ia à
missa nos dias Santos e dos santificados. Alguns moravam longe.
Os
padres bradavam e berravam a plenos pulmões contra essa dissolução. Mais tarde
no mosteiro continuara a ouvir o que sempre ouvira na paróquia e em casa. Os
padres nas igrejas sabiam do que ia acontecendo de mal no mundo e iam
instruindo o rebanho para que ele fosse diferente deles, deles ímpios, deles que não temiam a Deus e que por
isso seriam castigados por Deus. Quanto maior fosse o caos exterior maiores
seriam os perigos e por conseguinte as admoestações. A revolução Francesa teria
sido alvo de muitas homilias. Assim se formava o espírito de grupo, grupo a que
ela iria pertencer pela vida fora. Aquela tinha sido sempre a sua Universidade.
Aprendera que nós, eram os católicos e, eles, os outros, os que não eram. Esta
era a sua primeira identidade. Mas o nós era muito mais subtil do que aquele
nós, pois o nós era o grupo social a que pertencia. O grupo e o local onde ele
vivia.
Ler as
pastorais da época é abrir o caminho ao pensamento de Me. Margarida
concretizado no Arcano. É o que temos vindo a fazer. Igualmente ler os livros
que ela presumivelmente leu.
Um
tremendo choque para toda a Cristandade Católica foi, sem dúvida, o desterro do
“ Santo Padre Pio I X.” Acabara-se-lhe a família consanguínea, a família conventual também,
acabar-se-lhe-ia agora a própria Comunidade Católica?
De
Janeiro de 1848 a Julho de 1850 toda a paróquia ficou suspensa. De vitimador
acusado o Papa transformara-se em vítima e em herói.
As
pastorais, e as homilias certamente, deste período, retratam, a linguagem de
cruzada, uma igreja, um papa e uma cristandade militante e interventora que Me.
Margarida deixa transparecer no seu Arcano Místico. Ela tem um quadro
intitulado “ Igreja Militante”e outro “ Igreja Triunfante”, por exemplo.
São publicadas, por esta altura as “Santas Cruzadas” com o Santo jubileu com
direito a indulgências plenárias.
Era a
mobilização de toda a catolicidade. A década de quarenta e de cinquenta em
Portugal, em particular, e, porque é desta área que tratamos, parece marcar uma
época de “reafirmação de valores cautelosa e prudentemente” mantidos.
Agora é a fase da militância, da resposta.
Se o
ministério de António Feliciano de Castilho, tal como referi em trabalho que
apresentei para o professor Yanes Casal, teria constituído um impulso que
acelaria a criação do arcano místico ( directa ou indirectamente,
entendamo-nos.), em contrapartida, a “ideologia do arcano” muito deveria ao
clima mental veiculado pelas pastorais. Não se deve, por outro lado, desprezar
a própria índole conservadora do “ultra romantismo” Castiliano e da componente
social local também conservadora. Estava-se no período que iria conduzir à “Regeneração
política do reino”. Seria bom fazer investigação sobre o que acabei de
afirmar não sem prudência de colocar algumas reticências.
Na
década de quarenta, 1848 (?), ocorrera um grave terramoto que destruíra por
completo a vila da Praia, na ilha Terceira e a Várzea na ponta noroeste da ilha
de S. Miguel. A própria igreja Matriz sofrera alguns danos materiais. Surge
logo uma pastoral do bispo a explicar o fenómeno pelo desagrado divino face à
falsa “Liberdade” que, no seu prudente entender, por ser falsa deveria, ser “licença”.
O regresso do papa exilado a Roma em 1850 foi interpretado como sendo de
intervenção Divina. Veladamente a catolicidade avisava os “Liberais” radicais (1848-Ano
das grandes Revoluções Europeias), primeiro, e, agora, fazia-o
explicitamente de que Deusa interviria para proteger o seu povo. O arcano
também reflecte esta ideia. O Papa reforçado, em 1854, contra toda qualquer
veleidade de liberalização institucional da igreja, decreta, depois de ter
obtido a maioria simples, o dogma da Imaculada Conceição. Entre uma igreja
liberal e uma igreja absolutista vencia esta última ao contrário do que
acontecera no país. Se Me. Margarida “obedeceu” como lhe competia à nova
ordem liberal, nunca “desobedeceu” à ordem Católica tradicional apesar
de ter obedecido também à ordem “católica liberal” que, na cúpula, se
pretendeu, pelo menos durante os primeiros anos das lutas liberais. Ela não era
só uma “cristã velha” pelo sangue mas pela cultura. O seu catolicismo era
tridentino e o arcano reflecte isso mesmo.
Mais de
metade dos quadros do Arcano Místico referem-se a episódios do Antigo
Testamento. Por aqui já se poderia, sem mais, concluir a sua adesão a Trento. A
temática e o tom, ou seja a ideologia, contida nessas pastorais, influenciaram,
decerto, a concepção final do Arcano.Este é o período mais criativo do Arcano e
também o período da sua consagração pública. Quer isto dizer igualmente que a
comunidade comunga da mesma “ideologia” da autora? Creio que dificilmente se
provará. A aceitação do Arcano dever-se-á em parte ao facto da sua mensagem “religiosa
Tridentina” ser “apetecível” à comunidade. Intencionalmente ou não o Arcano
é uma obra didáctica inserida no seu tempo e num determinado quadro mental que
acima esboçamos. Ela própria diz que a sua intenção é ensinar por pequenas figuras
as principais leis que Deus deu ao mundo para que todos pudessem cumpri-las.
Tal como nas pastorais e no “antigo regime”absolutista, Deus era rei absoluto,
Deus era guerreiro temível e vingador, Deus vivia em magnificência envolto na
contemplação do seu povo e de toda a sua faustosa corte de anjos e de Arcanjos
e de Santos. Tal um monarca absoluto. não era um deus liberal nem sequer um
monarca constitucional. Além do mais sendo Deus o Rei dos Reis e o chefe ele
seria muito mais poderoso do que tudo o mais. se ele já intervira para repor o
Santo Padre, poderia a qualquer momento intervir para “aliviar o seu povo”.
não irei
debruçar-me mais sobre a apropriação da obra pela comunidade como obra “de
orgulho” (já não só de catequese) pois já me referi a este aspecto no semestre
anterior.
Observações
1- Madre
Margarida Isabel do Apocalipse quando sai do Mosteiro, no pós Ladeira Velha e
no pós Decreto Lei de 17 de Maio de 1832 parece pretender preservar a sua
“diferença”perante um novo modelo revolucionário através do anonimato tanto
quanto possível, discretamente.
Quando
passou a revelar-se”conforme” os outros porque nela viram o seu “ conforme”,a
comunidade torna-a e à sua obra “visível”.a comunidade ameaçada pelos
novos modelos adopta e revê-se no modelo tridentino exposto no Arcano? Aí
entrou a legitimação desta identidade pelos outros concidadãos num mecanismo de
“círculos irradiantes.”
2- O
catolicismo de Trento não era o mesmo de Latrão nem o de Trento de 1560’s seria
o mesmo de 1700 e 1800. Em 1563 havia a circunstância da Reforma e da
contra-Reforma, em 1800 a Revolução Francesa e aí por diante. Todavia o âmago
de Trento permanecerá, ousaria dizer,
até ao Vaticano I I. Daí que me possa talvez reclamar desta herança, ou daquele
quadro mental?.
3- Como
já atrás disse, repito que a “estrutura dorsal do Arcano”deve muito à
“estrutura” de celebração anual da biografia Jesuína. Este ponto parece-me
importante.
12- A Preparação para a Vida Eterna. Os preparativos meticulosos da viagem. A
extrema Unção: o último dos sacramentos: o sacramento da partida.
No ponto
anterior falei do renascimento, e, quase imprevistamente surgiu-me 1849 como
mais uma ferida profunda (refiro-me ao desterro do Santo Padre pio IX) todavia,
a ferida sendo profunda não conseguiu ser mortal. Para o povo católico a
reposição de Pio IX demonstrou como já se disse repetidamente, a presença
interessada de Deus nos acontecimentos do Mundo. Deus ouvira as súplicas dos
seus filhos tal como no tempo de Israel. Pio IX saiu tão reforçado no seu
“poder divinizado” que impôs ainda que em contestação (como já igualmente dissemos) o “ Dogma da
Imaculada Conceição”. O Papa definia-se como tradicionalista. Madre Margarida
tem outro quadro sobre aquele dogma. Aliais. Aliais tem vários sobre “ elementos
tradicionais da igreja popular” ,a saber: o casamento de S. Joaquim, entre
outros.
Depois
de tudo o que acontecera a Madre esta “consonância” entre o seu presente e o
seu passado levou-a a estar optimista quanto à sua vida futura, a vida eterna a
vida para além da vida presente. O pior já tinha passado. Madre Margarida
declara-se e orgulhosamente na abertura do seu testamento que era “cristã
velha” e que na fé católica protesta viver e alcançar o além através da
salvação da sua alma. O testamento, como ela sabia dos avós da mãe e de outros,
tal como o de seu tio Caetano, era um instrumento imprescindível e importante à
salvação. com ele se fazia contas à vida presente e se lançava pontes eternas
para a vida eterna. Não era, pois, um mero rol de teres e haveres materiais era
muito mais. Fazê-lo era já iniciar a viagem sem retorno.
Meticulosa
e conscienciosa, começou a fazê-lo ainda duraria mais quatro anos, apenas
sentindo alguns sintomas de doença. Todas as viagens devem ser preparadas com
cuidado. por um lado dialogava com os seus conterrâneos, por outro, dialogava
já com o além. Tratava dos negócios desta vida dispondo dos seus teres e
haveres em função da vida do além, a única que valeria a pena viver e para a
qual ela dedicara toda a sua vida e toda a sua fé. Às vezes reticente como
qualquer pessoa, mesmo que só seja detectável, no seu caso, pela insistência e
pela “insegurança” implícita.
Mas não
bastava ter fé nem bastava tão pouco ter praticado o bem e ter sido justa era
preciso que Deus lhe desse a Graça da Salvação .Para tal era necessário
recorrer à intercessão de N.S.ª mãe de Jesus, de todos os Santos e anjos e
sobretudo do seu padrinho S. João Evangelista, apóstolo dilecto de Cristo. As
coisas devem ser feitas segundo regras, um ritual, se quiser ser eficaz, como
em todo o mais. Se o ritual não for bem feito o resto poderá ficar
comprometido.
Começa
por prestar as contas da vida presente recorrendo a missas especiais, em caso
de dúvida, ou pedindo a quem duvidasse que lhe apresentasse provas. Só por
escrito e pelo seu próprio punho de outro modo Margarida não as aceitaria como
válidas.
O mundo
em que ainda vivia e aquele para onde se preparava para ir era um só. As almas
dos já partidos poderiam andar entre os que ainda não tinham partido. Faziam-no
para reclamar coisas dos vivos. Isto estava subentendido na sua tentativa de
institucionalizar a festa de S. João como adiante veremos. Recentemente um
freguês da Matriz disseram que no dia que ele fosse enterrado no novo cemitério
caísse o tecto da capela-mor. E caiu como está registado no livro do Tombo da
mesma. Quanto ao coval ser no cemitério ou não ser não se
preocupou(aparentemente). Algumas antigas colegas suas do Mosteiro tinham até,
há tempos, comprado coval. Iria vestida com o hábito da sua ordem.
Recordava-se,
sempre que pensava no convívio do além e do aquém, de umas histórias de
epidemias que a mãe lhe contava. Em 1770, estava a mãe casada há poucos anos, e
mais tarde outras já ela era nascida, a epidemia era tanta e tão grave que a
vereação de então obrigou todos durante três noites a queimarem louro no lado
de fora das portas. Os gados foram reunidos na praça e andaram a percorrer
todas as ruas dos “bairros” da vila. Como nada disso surtiu efeito a
igreja promoveu também durante três dias procissões penitenciais (tudo isso em
janeiro) às ermidas da Mãe de Deus, de N. Sr.ª da Saúde e do Bom Sucesso. Note-se que o número e os
atributos de cada entidade invocada eram essenciais à cura, ao êxito. Tal como
disse, repito, no trabalho curricular do Prof. Yanes Casal, a linguagem de
então tinha uma carga simbólica racionalizável ( tinha de ser para ser
entendida ) mas cujo fundo não era a razão como Descartes e outros a entenderam
e praticaram. O “léxico desta simbologia”, veja-se a fachada do Sr dos Passos,
por exemplo, foi-se alterando a tal ponto que hoje, para nós se torna muda
quando de facto, ela falava e bradava.
Para
entender (tentar) a mentalidade daquele período é preciso recuperar “ o
significado do símbolo” no seu contexto epocal e, para tal, escolhi a
iconografia.
Toda a
gente, de então sabia que a causa do infortúnio de José Maria da Câmara de
Vasconcelos, tinha sido o facto de ele ter comprado o Mosteiro de Jesus.
Margarida poderia estar descansada quanto à existência do além e quanto à sua
intervenção ao ponto de, caso não se cumprisse o que iria estipular no
testamento, os prevaricadores serem “castigados”. Bastaria tão só fazer
as coisas como deveriam ser feitas. Toda a gente sentia o peso “insustentável”
do além.
Os
crentes, ou seja a esmagadora maioria.
As
festas instituídas na ilha sempre tinha existido e serviam de ponte permanente
entre o instituidor e os mundos ( visível e invisível). A mais famosa era a do
St Cristo dos Milagres que tinha sido da iniciativa de Madre Teresa da
Anunciada com a preciosíssima ajuda da condessa da Ribeira Grande levara a bom
porto o culto do STº Cristo dos Milagres, imagem milagrosa, tal como a sua de
S. João o era. Madre Teresa fizera-o no convento da Esperança em Ponta Delgada.
Instituir uma festa estava pois nos seus propósitos. A partir de 1854, altura em que preparava a
viagem para o além, subalterniza a conclusão do Arcano e concentra-se na
aquisição do altar e na festa de S. João Evangelista.
As
confrarias e as irmandades eram as instituições a quem habitualmente era
confiada a execução das festas. É certo que o St Cristo se fazia no convento
mas na Ribeira Grande, sem conventos, pareceu-lhe mais prudente “confiar”
prudentemente na Confraria do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz. Prudentemente,
pois, sabendo do seu interesse pelo “Arcano” só o doou ( e mesmo depois de ter
já doado as casas) quando o S. João já se encontrava no altar ao lado do
Santíssimo.
Enquanto
o mundo fosse mundo a Confraria em troca faria todos os anos a festa de S. João
em 27 de Dezembro ou no dia de 6 de Maio, dias importantes na biografia de S.
João Evangelista, e manteria uma luz de azeite doce, dia e noite.
A
intercessão do seu padrinho era-lhe vital e o seu culto eterno manteria aceso o
seu interesse por si até ao fim do mundo. Subentenda-se que, e o testamento tem
isso subentendido, caso não o fizessem mais do que as justiças terrenas, as
divinas encarregar-se-iam, tal como sempre, de intervir. Dariam primeiro um
sinal para depois, caso não houvesse emenda, então porem ordem.
A
transferência da imagem para a igreja, para o então altar da família do Morgado
Corte Real, aliás Morgado Gago da Câmara, fizera-se solenemente em procissão e
fora relatada eloquentemente pelo seu vizinho “Estrella Oriental” aberto havia
dois anos. Aliás, algumas legendas tinham sido feitas naquela tipografia, se
não lhe falhava a memória. Só a festa legitimava o acontecimento e para isso a
comunidade tinha, como sempre, que estar presente. Tinha sido assim desde o
baptismo e sê-lo-ia até no dia do seu enterro. O altar tinha sido, ao que
suspeito, retocado pelo entalhador Araújo Lima (famoso entalhador local),
aliás, fora ele que fizera o móvel do Arcano e que mais tarde o iria transferir
para o coro alto, onde ainda se encontra hoje.
Aliás há
quem diga que sendo ela “jeitosa” decerto seria a sua opinião requisitada
várias vezes. è capaz. Demorou tudo isso uns quatro anos. Estaria tudo conforme
os ritos e o costume.
Não
descorou os pormenores da Festa de despedida do corpo presente e esmerou-se,
tal como fizera a mãe e toda a família, a descrever quem e como a
acompanhariam. Nada poderia ser esquecido ou deixado ao acaso. Nota-se-lhe em
tudo isso o nervosismo (nunca o pânico) de qualquer viagem. Ela tem a certeza
do seu destino. Daí a sua incessante preocupação com a festa de S. João e com a
festa da sua despedida. Mais de três quartos do Testamento (não direi mais mas
pelo menos perto dos três quartos ), Rol e Codicilo tratam destes preparativos.
Haveria se calhar um dúvida (por mais ténue que fosse) na existência do além
apesar de tudo? Apesar de todos os sinais da sua presença seria sempre um salto
não totalmente transparente.
Aproximando-se
a morte, sentindo-a vir e vendo-a avir como no-la descreviam, é-lhe dada a “ extrema
Unção” que a prepararia para a difícil travessia entre o mundo dos
vivos e o dos mortos. Assim preparada estaria a salvo de qualquer tentação ou
de rapto pelo Supremo tentador. estava no seu quarto voltada para a sua igreja,
para o lado do seu antigo convento, para o lado da sua casa de infância a
poente da vila, iria encontrar os seus, ia descansada. ainda por cima era o dia
6, dia do seu glorioso padrinho São João Evangelista. Estava um lindo dia para
viajar, a viagem iria ser boa. No quarto estavam os seus primos, o padre e as
raparigas que lhe serviam. Havia círios acesos. As janelas e as cortinas iam
ser corridas em sinal de luto. Lá fora a procissão do Santo Viático. Estava
tudo certo, iria dar tudo certo. Era um mulher sábia. Fechou os olhos tinha 79
anos, morrera no dia do seu padrinho. Fecharam as janelas e correram as
cortinas. Chegara a sua hora. Lançaram-lhe água num galho de alecrim para
afastar o demónio.
13- A morte do corpo.6-05-1858
Dia do
Padrinho S. João-Extrema Unção.
No dia
em que expirou Madre Margarida, Madre Margarida continuou a viver quer se
acredite no que ela acreditava quer não se acredite. Prova disso é que ela e a
sua obra ainda estão connosco, na Ribeira Grande, ilha de S. Miguel.
O
cortejo com os colégios das três paróquias acompanhado por muito povo e
conhecidos encaminhou-se para a Matriz. O corpo de Margarida no caixão assistiu
às exéquias. Todo aquele colorido estava certo como também o ritual. A caminho
do cemitério, a nascente da vila, a vila observava e legitimava esta viagem, a
última. Baixou o caixão ao coval, hoje anónimo, mas se calhar perto do irmão
Teodoro, do cemitério de N. Sr ª da Estrela. O Norte não era um lado bom mas lá estava Nossa
Senhora da Estrela para a proteger.
A festa
de S.João Evangelista continuou, com alguns percalços iniciais, até acabar no
período da primeira República. À desvalorização da moeda, à subalternização e
perda de importância da Confraria do Santíssimo Sacramento, seguiu-se a pouco e
pouco o estrangulamento da festa. o dia 27 de Dezembro também não deve ter
ajudado.
O Arcano
Místico que ela não ligara tanto, no final da vida, como à festa de São
Evangelista, paradoxalmente, vicejou e aguentou, ainda que com alguns abandonos
e esquecimentos notáveis.
Mário Fernando Oliveira Moura
Agualva-Cacém, 1 de Maio de 1994
P.S.
Transcrevo:
“..., a
27 de Dezembro de 1774, festa maçónica de S. João Evangelista ou do solstício
de Inverno.“ Expresso. Caderno Vida página 7 “o primeiro maçon” assinado F.G. /
14-05-94 ( o nosso sublinhado ) (?)
P.S. 1-
Margarida negociou a capela de S. João com o Morgado Gil Gago da Câmara.
(correcção)
Epílogo
Tentei
encontrar no tempo de Margarida uma estrutura que me permitisse interpretar a
sua vida e a sua obra no contexto preciso da vila, da família e da igreja tanto
paroquial como conventual.
Tentei
igualmente experimentar este modelo e para tal escrevi, sem grandes
preocupações de estilo ou de “dados concretos ao segundo” recorrendo à
linguagem coloquial que me parece própria e próxima da evocação.
Recorri
a mim mesmo como (ao do outro dentro de mim) produto ainda Tridentino e
herdeiro do espaço e da história de Madre Margarida para poder penetrar mais
fundo no seu pensamento. Tive de me sentir mulher para tentar perceber.
A
experiência da morte colhi-a, por seu turno da morte da minha avó. Da
experiência da vida num “espaço fechado” colhi-a no ano que sobrevivi no
Seminário Colégio de Santo Cristo em Ponta Delgada.
É um
acto de auto- conhecimento que iniciei consciente e deliberadamente em 1983 com
o início da recolha de Tradição Oral.
Mas que
me levou a estudar esta freira clarissa foi, se calhar uma curiosidade que
tenho transportado desde os “casos” no moinho da Ponte Nova e no Adro das
Freiras.
Seriam
todas santas ou seriam umas inúteis, como ouvira?
Mais
tarde tive de a estudar, aí aliei a curiosidade infantil à necessidade adulta,
confesso que me sinto tão infantil como outrora. Tem sido um bom exercício e
humildade ouvir e tolerar os outros. Para isso tem sido necessário” trazê-los “
a mim.
Tenho
imensas dúvidas acerca dos resultados e, sobretudo da validade dos mesmos,
assim no fim de cada grupo (alguns grupos) anotei dúvidas ou meias certezas ou
incertezas que gostaria de partilhar com quem tivesse paciência.
Tudo
isso destina-se a musealizar, a vida e a obra de uma freira Clarissa denominada
Madre Margarida Isabel do Apocalipse.
Experimentei
mas sinto que preciso de proceder a diversas afinações. Todavia partirei daqui
para elaborar um dos capítulos propostos para a minha dissertação final.
Mário Moura
Tábua Cronológica
1779-(23-02)-
Nascimento de Margarida.
1779-
Março- Baptismo de Margarida.
1800-
Fevereiro- Entrega de dote para professar no Mosteiro de Jesus de freiras
clarissas.
1800-
Separação dos pais.
1817-
Morte do pai.
1819-Morte
da mãe.
1820-
primeiros sinais documentados da sua crónica.
1831-
Exclaustração Temporária.
1832-Exclaustração
definitiva.
1833-
Aluguer da casa na rua de Sousa e Silva (ou rua das Pedras).
1835-
Compra de 3 casas. Morte de Teodoro.
!840-´s
-Período de grande criatividade do Arcano.
1854-Testamento.
1856-
Festa de S. João- Altar na igreja- Rol e Codicilo.
1858-
Morte a 6 de Maio.
Índice
1ª fase
exclusivamente feminina
1. Nascendo
1.1 Preparando o nascimento biológico: o
sair do ventre da mãe
2ª fase exclusivamente familiar
2.1 Nascimento biológico: 23-02-1779
3ª fase-família cristã e
paroquial
3.1. Nascimento Espiritual:
Baptizado-10/03/1779
4ª
fase - Aprendizagem de códigos e símbolos
A ordem social e histórica.
4 . Crescendo
4.1.Socialização
primária da Cidadania Católica: O que é ser-se mulher em geral e uma Botelho
Sampaio em particular.
4.1.1.A
transmissão da memória nos espaços da Família, da Igreja ( paroquial e con-ventual
) e da Vila.
5ª fase. Fase dupla: Comunhão e Confirmação
5- Cidadania Católica paroquial de pleno direito.
Acesso à Confissão e à Comunhão do Corpo e do Sangue de Cristo e à Confirmação.
Rituais bem preparados?
Crise Familiar-
a eminência da desagregação.
Crise
Morrendo
6- (Re)
Socialização: O que é ser freira clarissa no Convento de Jesus. Ela e a irmã.
6ª
fase- A preparação e a Morte para o mundo
6- Renascendo
Ritual
do Ingresso.
Renascimento.
Noivado
com Cristo.
Morte
para uma comunidade e renascimento para outra- 1800.
7.
Crise Pessoal
8ª
fase- A vila como seu Porto Seguro.
8- O Fim
de um mundo. ( 17-05-1832)
Lei da Extinção dos Conventos nas Ilhas.
9ª
fase- Viuvez do convento de Jesus.
9-Renascendo
de Novo. Durante 28 anos.
10- A Preparação para a Vida Eterna.
Os preparativos meticulosos da viagem. A extrema Unção: o último dos
sacramentos: o sacramento da partida.
11- A
morte do corpo.6-05-1858
Dia do Padrinho S. João- Extrema Unção
Epílogo
Tábua Cronológica
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