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Esboço biográfico de Madre Margarida Isabel do Apocalipse

 

 

 

 

                                      Mário Fernando Oliveira Moura

                    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Esboço biográfico de Madre Margarida Isabel do Apocalipse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Universidade Nova

 Agualva- Cacém    

 1 de Maio de 1994


 
1ª fase exclusivamente feminina

1.   Nascendo

1.1 Preparando o nascimento biológico: o sair do ventre da mãe

 

Inês Eufrázia casara aos quinze anos, fizera 29 anos a 29 de Dezembro, em Maio completara treze de casada, em Março morrera-lhe o seu primeiro filho, José, de onze anos; engravidara passado um mês e, estando agora no oitavo, esperava o nascimento do seu sétimo  filho. Tanto quanto sabemos.

Engravidara do José, oito meses após o casamento e suportara os meses abafados e quentes do pino do verão. A segunda gravidez (documentalmente confirmada) surgiria quatro anos depois, não escapando de novo aos rigores estivais.

Tinha sido o Joaquim que lhe viera a falecer ainda antes do José e muito mais novo. Já em 1776 dera à luz um outro filho a quem tinham dado novamente o nome de Joaquim.

Se a criança morresse de tenra idade, a  sua morte seria suportável. Com o José talvez já não se tivesse passado o mesmo. O “endurecimento” motivado pela frequência da morte explicaria a “adaptação” da mulher a este “facto social”. A seguir  a Joaquim tivera a Ana que acabara de celebrar os seus cinco anos.. Fizera-a passar um mau bocado, por isso fora baptizada em casa à pressa pela parteira aprovada Bárbara Resendes da Matriz que lhe fizera o parto. Depois tivera o Bernardo que teria quatro anos; Joaquim II teria dois e, Maria acabara de fazer um ano. (Entre 1775 e 1791, Bernardo, Joaquim II e Maria faleceram).

Iria ter mais três filhos: Teodoro, no ano seguinte, Mariana seis anos depois e Joana nove. 

Todavia, em 1779, dos dez que “Deus lhe dera, Deus levara-lhe sete.” (expressão plausível mas não confirmada documentalmente)

E, antes de “dar a alma ao Criador” deixaria atrás Teodoro e Margarida: Margarida, clarissa no mosteiro de Jesus e Teodoro, solteiro, andava nas milícias e na governação da vila.

“Coitadinha!”- exclamou alguém a quem li estas linhas. Seria? Ignes vivia ao cabo da vila, na rua de São Francisco, junto ao convento de franciscanos de Nossa Senhora de Guadalupe, onde se encontrava o irmão e onde  quase toda a sua família se encontrava sepultada ou iria ser sepultada.

A mãe e a tia Florência ,solteira, moravam na rua de São Sebastião, a dois passos dela. A sogra vivia numa casa da rua João do Outeiro, já na Matriz, entre a “ribeira dos moinhos” e a Ribeira Grande, a nascente muito perto do Largo da Fonte Grande e do Largo do Pelourinho. Da sua casa à da sogra era um pulo.

            Estava-se no Natal, o ano novo estava à porta e não tardariam as procissões da Quaresma. A dos Terceiros saía da igreja ali ao lado.

            Com filhos, marido e uma casa para cuidar, estava pronta para “dar à luz”.(repare-se na expressão) Ou seja tinha que estar adaptada (uma teoria da adaptação lançaria luz nesse ponto) às circunstâncias. Ela ou o filho que trazia no ventre ou ambos sobreviveram “ao parto” ou não. (“parto” e “dar à luz “ dois termos carregados de significado. Aludirei a eles no ponto seguinte).

            A família, a mãe a tia e a sogra, “aconselhavam-na” tanto mais que a outra irmã casara em Água de Pau no outro lado dos montes ( para sul ). A ligação estreita entre Ignes e a mãe prolongar-se-ia até à morte daquela.

Inverno não seria a estação mais trabalhosa para uma casa rural. Matara-se, tal como de costume, certamente, o porco pelos Santos, recebera-se as rendas pelo São João e tinham-se feito as colheitas no verão.

José Francisco Pacheco de Sousa , o seu marido, que vivia dos seus bens, era alferes das milícias da vila e almotacé.

            Do lado de trás das janelas (possivelmente ainda sem vidraças.) via passarem os almocreves na rua e as enchentes de povo para a praça. Não era contudo um lugar próprio para uma  mulher “séria e honesta “, a  não ser aos domingos, durante quase todos os do ano inteiro, em que passavam as procissões. A janela seria um sitio “discreto “ que desse para ver sem se ser visto. (As janelas das residências e dos mosteiros eram parecidas).

            Encomendava-se escrupulosamente a Deus, a Jesus Cristo, a sua mãe e a todos os seus santos protectores , sobretudo os que se “invocava” durante a gravidez e o parto.

Sr.ª do O,  N. Sr ª do  Bom  Despacho,  N. Sr ª do Carmo, cada uma era a “ advogada” precisa e possuía determinados atributos. Modelos de “paciência” e de “obediência” e de “conformidade” à vida tal como ela era não lhe faltavam , a começar pela própria mãe. Ouvia-os nas homilias, nos sermões, da boca da mãe, do confessor ;via-os nas procissões e lia-os nos seus livros devocionais .

            Esperava ter um “bom despacho”. Estava pronta, era assim e seria assim com ela, tal como com as outras nas mesmas circunstâncias. Tinha uma fita de N. Sr ª do O à volta do ventre.

 

Observações

 

É preciso confirmar a aplicabilidade da teoria da distânciação  de Philippe Ariès.

1-    A distânciação da mãe perante os filhos diminuía à medida que estes crescessem.

2-    Tentar provar a sua aplicabilidade à Ribeira Grande e à mãe de M ª Margarida.

 

Questões de outros espaços culturais e de “ outras idiossincrasias pessoais”

 

Leituras recomendadas:

            Ariès, Philippe, “L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime”.

            Cota da Biblioteca Geral da F.C.S.H.-Universal Nova.c.s.1383.

            Idem,”Essais sur l’histtoire de la mort en occident du Moyen age à nous jours “-

            c.s.1123.

            Idem,”L’Home devant La mort” c.s. 947



 

    fase exclusivamente familiar

2.1. Nascimento biológico: 23-02-1779

 

A parteira do costume fora chamada. Como homem em casa só atrapalha, sobretudo nestas ocasiões, o alferes José Francisco saíra a “terminar a vida”( termino de vida =). Ana e os miúdos ficaram sob a vigilância das avós. A mãe tomara as rédeas da casa. Era preciso fazer comida, matar a fome aos animais e aos miúdos. Estava descansada. Ignes invocava o nome dos seus intercessores e rezava para que lhe dessem um bom parto .”Parto” do seu ventre onde “germinava” durante nove meses ,daquele ventre que “tanto poderia ser vida ou morte”. Dar à luz, ou seja trazer das trevas do ventre um ser. A “partida” das trevas para a “luz “era delicada e como um Deus era dono senhor e criador de todos os seres e coisas, só Deus através da intercessão da sua Mãe (símbolo de vida) poderia evitar que a travessia fosse contrariada pelo Senhor das Trevas .O Senhor da luz, Deus, contra o senhor das Trevas, o Demónio .Esse, tal como Deus, actuava através de intermediários ou espíritos malignos que poderiam “perder o novo ser “.Era , por isso, preciso ter muita ajuda divina e todo o cuidado seria ainda pouco.

Estavam perto do dia de Santa Margarida de Cortona de quem conheciam as virtudes. Se nascesse uma “rapariga” seria correcto chamar-se Margarida. Era costume e ficava bem.

Ferveu-se água e trouxeram-se panos limpos e lavados de fresco. A parteira, a mãe e as criadas fecharam-se dentro do quarto de Ignes. Rezava-se enquanto Ignes fazia força. Nos intervalos Ignes rezaria. Invocavam-se os protectores.

Era 23 de Fevereiro do ano de 1779 quando nasceu-lhe a sua terceira rapariga e seu sétimo filho. A primeira água que a “lavou “ foi como de costume cuidadosamente vazada para o quintal. Só assim Margarida seria “caseira “. Se tivesse sido um “rapaz “, vazar-se-ia para a rua a fim de ser um homem de vida. O espaço de Margarida seria, tal como a da mãe, da avó e de todas as mulheres, casadas ,freiras ou solteiras, “ em casa “.

A vizinhança não precisava de ser avisada ; era “ Uma rapariga fêmea “. (hoje ainda se usa esta expressão ).

Tinha corrido tudo bem “graças a Deus “ e a todos os intercessores. Fizera promessas e iria cumpri-las. Deram-lhe, pois, o nome de Margarida. ( Promessa  ? ).

Margarida descendia em recta masculina de Gonçalo Vaz Botelho, o grande, um dos primeiros e mais ilustres povoadores de quatrocentos da ilha de São Miguel Arcanjo. ( Devo esta informação ao Dr.º Hugo Moreira ).

Isto a família deveria “saber de cor e salteado “. Muito me admiraria se o não soubesse. Tão importante como ter posses era ter ascendência ilustre.

Este património  linhagístico era transmitido como como o era transmitido todo o património, fosse móvel ou de raiz.

Pertencer aos “Botelhos” não seria pertença que se devesse ocultar. A este propósito veja-se que a mãe usava o nome “ Botelho de S. Paio “, tal como mais tarde o seu filho Teodoro. Registe-se que o filho herda o nome de família da mãe tal como o pai já o tinha herdado de sua mãe. Atente-se, porém,que o nome de família da mãe, pelo menos, nestes dois casos, prevaleceu sobre a família paterna. (Tal como em Espanha ?-seria  interessante investigar esse aspecto ).

Ter um nome todos tinham, mas ter “ Um Nome “ só alguns. Margarida nasceu numa casa (linhagem) que, apesar dos poucos haveres ( não se entenda que eram pobres,mas remediados ? ) possuía “Um Nome como Património “. (a averiguar, porém, melhor este assunto ).

Mas se pelo nome se reconhecia e legitimava o novo ser isto só acontecia, por enquanto, ao nível da família no seio da qual “ele nascera “.Saíra do ventre materno e entrara no mundo, saíra do caos. Urgia, quanto antes, sem demoras, baptizá-las. Só assim seria verdadeiramente arrancada não só ao “caos original “mas sobretudo, ao “pecado original” da Mãe Eva .Toda a mulher por isso seria a “tentação do pecado “ Maria fora a única concebida sem  o labéu do pecado original.

           O mundo temia a mulher .{Toda a tentativa de explicação que aqui já propus e que irei no decorrer destas páginas continuar a propor baseia-se na cosmologia católica que saiu do concílio de Trento no seu confronto com o sincretismo anterior que foi “resistindo e permanecendo “. A este respeito leia-se a “Prova de Aptidão “da Dr ª Fernanda Enes sobre o concílio de Trento e os Açores. Além de toda a pesquisa no terreno a que procedi.}

Era tanto premente quanto a vida de um bebé era frágil e precária. Se morresse , ao menos, iria para o “Limbo”, um espaço aceitável para as crianças de tenra idade.

           Duas semanas após o parto, Margarida iria nascer espiritualmente.

 

Observações

           Continuo a socorrer-me como “pistas heurísticas “,dos livros já atrásmencionados.Continuo a tecer as mesmas objecções.Apesar de, e isto faltou-me precizar anteriormente, estar a proceder  a um estudo que, à falta de melhor termo {descoheço},designaria de “etno-histórico “ou “micro história”; e através dele,tenho-me apercebido daquilo que me parece ser a permanência de “gestos”( ou fragmentos de gestos) que plausívelmente foram também gestos de outrora. Sinto-me a meio caminho entre Tucidedes e Herodoto. A M ª Margarida e eu partilhamos o mesmo espaço e a mesma história (até 1858, pelo menos ) bem como um “estrato religioso comum”. Todavia, apesar disso, ela teria vivido numa “variante cultural “ outra da minha, num contexto diferente. Outro possivelmente. Tenho que “representar “ a realidade de “ então “de modo a “traduzi-la “ acessívelmente na nova linguagem (?) do meu contexto. Ainda por cima sou homem.

Ao tentar perceber a vida e a obra de uma mulher concreta tenho que ter constantemente em mente a sua dificuldade até mesmo nas suas facilidades aparentes. Foi-me útil também a leitura de diversos trabalhos sobre identidade, sobretude um que fala do nome.Em seminário coordenado por Claude Lévy  Strauss “L’Identité”- (existe na biblioteca da Universidade). Contude não me inclino a concordar com o carácter “universalista”do estruturalismo Straussiano. Estou mais inclinado a supor que o conhecimento é “local “. Aqui me desmascaro como um “aderente “ (no sentido Boudoniano do termo ) do novo paradigma da ciência. Sigo aqui um pouco Thomas Kuhn.


 

 

 

 

       fase-família cristã e paroquial

3.1.    Nascimento Espiritual:

          Baptizado-10/03/1779

 

A água que lhe lavara o “corpo”, dezasseis dias antes, não era suficiente, era necessário “lavar-se-lhe a alma “, através da água benta e pelos ritos baptismais.O sacramento do baptismo lavar-lhe-ia a alma, agora incarnada, do pecado original de Adão e Eva, nossos primeiros pais.

Cristo, sendo “o caminho e a vida”,apesar de ter nascido de uma virgem imaculada do pecado original, “apontou o caminho” ao ser baptizado aos trinta anos por  São João. ( De trinta a poucos meses, passou o baptismo. Existem explicações, porém, como serão marginais a este ensaio, deixá-las-ei para outra “ pergunta” ).

Margarida foi arrancada ao pecado original pela palavra ( in Nomine) e assim ela nasceu de “iure”. Através deste acto “criador “( tal como Deus pela palavra ordenara o mundo e o universo subtraindo-o ao caos.) nasceu. O sacerdote invocando o Pai, filho  e o Espirito Santo, conforme o “ poder da ordem “, baptizou Margarida, em cerimónia pública. A paróquia participando, com a sua presença, legitimava testemunhando aquele acto. O Cristianismo é uma religião profundamente social. Veja-se o mandamento novo que Cristo deu: “ Amai-vos uns aos outros como eu vos amei “.Pelo baptismo, limpa do pecado original, Margarida acedeu à família católica da paróquia de N.Sr ªda Conceição, na vila da Ribeira Grande, ilha de São Miguel. Ela não era só uma  Botelho São Paio.

Era não só necessário “testemunhar a correção dos ritos  mas, no caso do baptismo, “institucionalizar “a memória daquele baptismo como em qualquer outro. Por isso se registava em livro. Não se poderia correr o risco da perda da memória da adesão do novo membro. Era também um acto “social “ na medida em que comprovaria que Margarida era uma  “ Cristã Velha” (?). Apesar desta distinção ter acabado legalmente poucos anos antes que era a que teria idade para professar, se fosse caso disso. O concílio de Trento decidiu organizar adesorganizada estrutura eclesial e “instituir “os sacramentos numa altura em que a Igreja romana se encontrava “sitiada “pelo movimento da Reforma.

O padrinho terreno era uma personagem importante neste processo, não só no rito religioso mas também no desempenho social posterior. No caso de Margarida foi o seu tio paterno. Manuel João do Canto. O cura Manuel Cordeiro da Silva baptizara-a. Era mais importante que a parteira que lhe tirara do útero.

Foram testemunhas, pelo menos os padres beneficiados José Dias Tavares e Jorge Caetano de Sousa.

A escolha do padrinho parece-me que não seria arbitrária. Conhecê-la, possivelmente, significará aceder ao conhecimento de uma estratégia e táctica familiar, núcleo este muito dependente (parece-me) “da Família”, sobretudo de quem tinha ou iria ter o “morgadio”. Notam-se outras razões, porém. Vejamos. Dos 10 padrinhos dos 10 filhos Ignes e de José Francisco, um era o tio materno, capitão-mor da vila de Água de Pau, outro era seu cunhado. Outro ainda o seu tio frade franciscano professo no mosteiro fronteiriço. Ou o tio João Caetano Botelho, alto e bexigoso (conforme salvo conduto de Pina Manique ), regressado intempestivamente de um casamento fugaz no Brasil e que iria ocupar todos os cargos importantes da governação da vila e das irmandades, do Mosteiro de Jesus e das milícias. Ele desempenharia um papel importante na profissão de Margarida como veremos, na altura em que era Síndico e Procurador geral do mosteiro.

Outros eram reverendos padres, ou freiras, essas últimas do citado mosteiro.(tenho vindo a distinguir convento e mosteiro conforme o proposto nas “Provas de Aptidão” da Dr ª Margarida Sá Nogueira Lalanda, todavia, na prática, mosteiro e convento são palavras expressas indistintamente quer se refiram a frades ou a freiras- Ainda quero confirmar ).

Toda uma teia se iria revelando mutuamente útil. Reafirmam-se ( parece) laços familiares ou criam-se novos com elementos importantes dos “estratos sociais dominantes” (grupos sociais ).

O baptismo concedia direito de pertencer à comunidade paroquial, uma pertencente que lhe deu garantia de caminhada para a vida eterna.

As festas, na igreja e em casa, foram também importantes para “vincarem” a importância deste rito de passagem. O caos ultrapassou-se pela ordem e esta foi obtida através da estrita observância do preceituado. Ficar mal baptizado seria fatal tal como seria fatal ter  nascido mal.

 

 

 

Observações 

 

 

1-Seria interessante conhecer pormenorizadamente os termos precisos do ritual baptismal de então.

2-Até há pouco tempo ( tanto quanto sei ) seria inconcebível nos atrevermos a estudar “ antropologicamente “o Catolicismo.

3-Afigura-se-me mais útil a esta abordagem conhecer ( tal como tenho tentado fazê-lo ) toda a eclesiologia tridentina que introduz um novo paradigma heurístico à cosmologia e cosmogonia anteriores, tal como o Vaticano II veio fazer em relação a Trento. Encontramo-nos tenho esta convicção, pelo menos )numa encruzilhada em que os velhos valores de Trento ainda “estão vivos “.

De certo modo, tal como os astrónomos podem estudar estrelas já mortas, poderei estudar Trento, aqui e agora .

4-O racionalismo desta comunidade e deste grupo ( séc. XVIII e XIX ) é o racionalismo do “ Common Sense “ ( não gosto da tradução que fazemos ) mas um “ Common Sense “ enraizado na cosmologia e cosmogonia de então. Por isso optei por esta estrutura interpretativa e excluí qualquer estrutura  Cartesiana. É mais do que uma cosmologia e cosmogonia “ sincrética “, sincretismo esse que mergulha em usos e costumes não-cristãos.

5-Entendi que deveria, por tudo isso adoptar igualmente “ o tom coloquial “mais próximo da vida.


 

 

 

 

 

 

4ª fase - Aprendizagem de códigos e símbolos

             A ordem social e histórica.

4 .    Crescendo

4.1. Socialização primária da Cidadania Católica: O que é ser-se mulher em geral e uma Botelho Sampaio em particular.

 

4.1.1.A transmissão da memória nos espaços da Família, da Igreja ( paro-quial e conventual ) e da Vila.

 

Através de :

 -Gestos de mulher - No primeiro e único andar sobradado da casa dos pais de Margarida não havia “ corredor “ a separar as divisórias da casa. O toque dos sinos da igreja marcava toda a vida da comunidade: toque de trindades, toque para a missa, toque de finados, toque a rebate. A igreja conventual tinha os seus. Margarida acabaria por os conhecer tal como a sua mãe, suas irmãs, seu pai e seus conterrâneos.

Aos recém-nascidos até se tornarem “ rapazes e raparigas “, o que numa sociedade rural, acontecia muito cedo, prestava-se-lhes uma “ atenção distanciada “ quanto bastasse “ Muitas vezes nem sequer eram as mães que as amamentavam. Não existia nada dos afectos e do relacionamento que hoje se encoraja mas que eu ainda vivi, em parte.

As crianças eram mantidas envoltas em roupagens que quase as imobilizavam (intencional-mente ) por completo. Macho e fêmea só se distinguiriam pela cor das roupas para, pouco depois, talvez após começarem a andar, se lhes imporem roupas de adulto. Eram mulheres e homens em ponto pequeno. Não se lhes pegava ao colo a não ser por razões muito fortes para não se habituarem “ao calor do colo “. “ Deixa berrar que lhes faz bem aos pulmões “. Dizem ainda uns. Conheço pessoas ( usos antigos dizem eles ), sobretudo homens, que me disseram que “ não presta pegar nos bebés ao colo. Só o farão quando for atinado, aí para os dois anos “.

Se as mães lhes pegassem sempre que chorassem seria uma desgraça, pois, não haveria tempo para “ amanhar a casa “. Talvez fosse um “ modo aprendido “de auto - defesa psicológica face à enorme taxa de mortalidade infantil , “não se afeiçoar muito ao bebé “. Alimentava-se a criança , adormecia-se a criança, sempre com o mínimo de embalos e tentava-se mantê-la com a barriga o mais cheia possível , o máximo de tempo adormecida, ou sossegada.

Ter tido sorte era ter um bebé manso. Nesta fase a criança, já baptizada e protegida no seu corpo e no berço pelos mais diversos amuletos, figas, jaculatórias e outras “receitas eficazes” tanto para o proteger dos espíritos malignos, dos invejosos e de doenças específicas. No quarto às escuras, quase sempre. “Vai ver o miúdo não esteja ele a finar-se”. Às vezes trazia-se para perto do local onde os adultos trabalhavam. As paredes eram grossíssimas.

Quando já andava e começava a falar dava-se a conquista decidida do resto da casa, sobretudo do quintal; o local onde tudo era mais  “permissivo”, ou melhor o local onde se poderia fazer coisas com um grau maior de liberdade em relação ao interior da casa. O quintal não era um espaço apropriado para  meninas ,pois é sobretudo um lugar “masculino”. A irmã mais velha ( Ana ) teria sido a sua educadora ( elo de ligação entre os mais velhos e ela ), “socializando-a “através da brincadeira ou da simples imitação.

Brincadeira, não no sentido actual, como tentaremos interpretar adiante. Às vezes os bebés eram mais filhos das irmãs mais velhas do que das próprias progenitoras visto que estas estavam menos disponíveis.

 O quintal seria ainda, apesar de tudo, o local onde se poderia experimentar qualquer coisa, sem grandes “perturbações , a rua, nunca. 

Nesta idade ( tal como já dissemos )o rapaz vestia-se como um homem e a rapariga como uma mulher. Teodoro , um ano de diferença da irmã, foi mostrando, pelo tratamento que lhe davam, o que era ser rapaz e o que era ser rapariga.

Ao rapaz “enxota-se das saias das mães “,e, encoraja-se a ir com o criado às compras ou com o pai.

A rapariga desenvolve-se uma certa cumplicidade com a irmã mais velha. Em relação que ao invés, da do irmão com a irmã era encorajada.

Por ela vai aprendendo, de modo seguro, a aprender a seguir os gestos femininos. Segue-os e pratica-os, em primeiro lugar de uma forma lúdica, para logo depois, se lhe começar a dar responsabilidades à medida que ela ia provando ter capacidade e “jeito” é a palavra chave em todo este processo de socialização.

Não haveria (tanto ) uma idade cronológica precisa para se executar cada tarefa, exceptuando-se aquelas que exigiam para além da destreza a força física e mesmo estas, pela necessidade, viriam mais cedo, tal dependeria mais do “jeito” ou de se “ajeitar “no desempenho. Jeito que era feito de gestos corpóreos. Um “jeito” normalmente esquecido é o “jeito que se tem ou não para levar as pessoas “ ou o “ jeito para cativá-las “. Este jeito abre todas as portas, dizem-me os mais velhos. Seria Margarida assim ?Seria obediente e trabalhadora ?Parece que sim. Seria cortês ? Parece que sim também. Mas teria aquele quê de jeito que faz diferença ? Não sei . Saberia cultivar amigos e amizades ? Há indícios disso. Gostaria de mostrar o Arcano a quem o queria  ver e perdia-se a falar da sua obra. Todavia, parece que era tímida. Ser “jeitosa “era ser-se inteligente e era uma qualidade de inteligência muito apreciada na mulher. Mas era-se “jeitosa “nos gestos de mulher.

Numa casa, como a dos pais de margarida, o rendimento familiar dependia “ dos rendimentos “de José Francisco. Era Miliciano, foi almotacé , possuía terras, recebendo rendas delas ou tirando ele próprio o fruto delas. Parece que viviam com dificuldades, como iremos ver mais tarde, ou pelo menos assim aconteceu numa fase das suas vidas.

A vila da Ribeira Grande, que, na altura se estendia uma légua em redor do “pelourinho”, a nascente até ao cabeço onde se avistava o porto de St Iria e a poente até às Calhetas, confinando a sul com a serra de Água de Pau, era uma terra onde cresciam grandes cearas, extensos campos de linho e numerosos laranjais.

Existiam teares familiares por toda a vila e os seus panos eram exportados até ao Brasil. Junto ao mosteiro de Jesus ( segundo a tradição ) teria existido uma manufactura pertença do capitão - do -donatário , então conde da Ribeira Grande . (a documentação fala disso também, mas não sei se refere o local. Tenho o documento em S. Miguel ).

A laranja ( há quem lhe chame o “ciclo da laranja “ )cultivada até pela St Casa da Misericórdia seguia para o mercado Inglês. Era uma actividade muito rentável. Antes fora o trigo e o pastel. Até ao século XVII, agora era, sobretudo a laranja. ( Penso que não terá havido propriamente uma monocultura mas isso seria objecto de outro estudo ).

A família de Margarida, a sua avó materna, administrava uns morgadios, o seu tio Caetano ainda administrou outros, porém, não viviam desafogadamente. Os testamentos deles no-lo atestam, por exemplo. As terras vinculadas não permitiam a sua alienação só o seu usufruto e só o mais velho acederia à sua administração. Parte dos seus bens tinham vindo de um filho “ emigrante no Brasil que falecera “. A ligação aquela parcela portuguesa da América do Sul era bastante estreita, Aliás tal como acontecia com a Ribeira Grande. A vila estava mais ligada ao Brasil do que ao continente português.

Seriam uma “família remediada”, com um quintal farto e muitos animais domésticos. A casa ficava a poente junto ao convento e por ela passava todo o comércio da vila com o exterior, sobretudo a sua ligação a Ponta Delgada por onde escoava a sua produção. A vila a segunda maior da ilha, faltava-lhe um porto de mar, pois a costa norte não o permitiria. Tinha portos secos, um no cabo da vila a leste e outro a oeste, no Rosário (ao contrário “.

a sua rua era a mais importante da vila e nela se erguiam as suas principais construções, exceptuando-se dois ou três “solares “ ao centro da vila era o seu coração político, religioso e administrativo (económico ) e distava a sua casa pouco mais de um pulo.

Tinham pelo menos um criado para as voltas da casa e para tratar do quintal. Teriam criada de casa ? A mãe, dona de casa, superintendia todas as operações domésticas e participava nas lides (?). Tudo deveria começar de manhã muito cedo o galo cantasse: “Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer “. uma dona de “casa esperta ”era aquela que se conseguia despachar cedo das limpezas dos animais e das refeições. Assim seria para além de esperta “terminada “(desembaraçada). O almoço era servido pelas nove da manhã e a esta hora, para além do galo já os sinos do convento tinham muitas vezes tocado, muita coisa estaria pronta.

Uma boa dona de casa tinha sempre coisas para fazer, nunca parava, descansava fazendo outras coisas de manhã à noite. Assim me dizia minha avó Deodata. O criado já teria “amanhado os animais (dado comida) ido buscar os ovos das galinhas. Teria de ir à praça comprar o peixe no barracão ou a carne no açougue. O peixe vinha fresco da Ribeirinha ou de Rabo de Peixe. A carne vinha das manadas que pastavam acima das terras cultivadas, a caminho da serra, perto dos matos de onde vinham as lenhas grossa e miúda.

Arejar a casa, limpar a casa, espanar os tapetes, refazer as camas de folha, despejar os bacios, dar de comer aos filhos, ao marido e ao criado .Cozia pão várias vezes por semana. Era preciso fazer lume, tender pão, enforná-lo e saber tirá-lo no momento certo. Tudo isso constituía um património de gestos a transmitir aos mais novos.

No rés-do-chão ,nas” lojas” do piso térreo, arrumavam-se as lenhas que o criado “rachava”, os pipos de vinho, a baia da égua ou do cavalo  e a sua comida. Depois de despachados  estes serviços e de se ter lavado a loiça e a roupa, sentavam-se a costurar ou a bordar. Este seria “o tempo e o espaço de tempo”, que concomitantemente aos gestos, serviria para transmitir “natural e informalmente” a memória. Esse era um espaço feminino, tal como todas as tarefas anteriores. Teodoro não participaria dos primeiros mas poderia “estar e ouvir  ”o que se dizia. O professor   precisava tanto do aluno como este daquele. Conversar não era só uma forma de suportar a rotina dos “ gestos”  mas uma forma de transmitir ideias e valores. As “conversas de propósito” (com  o propósito de ensinar cada um aquilo que deveria ser ou  fazer na vida para se  ser uma mulher de propósito ) ocupavam um espaço primordial. As conversas “triviais” sobre a vizinhança, a família da vila , fora dela na ilha  ou no Brasil, também (tal como sempre)  ensinavam  aceitando  ou rejeitando modelos de conduta.

Tudo levava a ensinar  à mulher (ou ao homem) o que era próprio  à condição feminina e à sua situação social na comunidade e na família. Era, sobretudo,  o espaço  da oralidade. Teodoro teria outros espaços, por exemplo,  a rua e a praça, bem como outros gestos a aprender.

 

 

 

           

 

- Oralidade 

 

 

Havia, no ciclo anual, no quotidiano, dois momentos mais trabalhosos para o lar: o tempo das colheitas no Verão e a matança do porco, em regra, pelos santos. Quem dependia da banha do porco sabia que a pior altura para o abater seria no Verão. Sábados e Domingos seriam dias diferentes. A dieta seria diferente como seria diferente o que se fazia. Em quase todos os domingos do ano havia procissões. As festas religiosas, os nascimentos, os casamentos e as mortes quebravam as rotinas do lar.  Através deles se aprendia.

A Páscoa, ou melhor toda a quaresma e o Natal eram os momentos mais importantes. As presumíveis idas a P. Delgada à festa do Santo Cristo e a Água de Pau (mais essa, se calhar, pois aí tinham parentes )a N.Sª dos Anjos, constituiriam as únicas saídas possíveis da vila por parte das mulheres, Sair de casa só para a igreja ou a casa de família em circunstâncias especiais e sempre bem acompanhadas e durante o dia.

O trabalho de Verão e de Outono apesar de redobrado renderia mais, pois os dias então eram maiores. As ruas sem iluminação pública regular eram locais a evitar logo que a noite caía. Acendiam-se, então, as candeias dentro de casa. Habitualmente deitavam-se muito cedo. Depois das trindades não era recomendável andar-se fora de casa nem “ seria de gente de propósito “.

Enquanto se costurava  ou se bordava ( gente de propósito arranja sempre ocupação, pois o ócio é a fonte de todos os vícios ), os mais velhos iam educando os mais novos. Os contos com desfechos morais , (“Isto é para se saber que...” ) a vida dos santos, sobretudo os protectores, “estórias  da família” segundo a mãe “se lembraria da avó”, por exemplo, que, por seu turno as ouvira das avós, estórias” da família ausente no Brasil, . Simples admoestações, encorajamentos ou repreensões mais duras, não excluindo os castigos entre os quais os corporais, funcionavam como potentes” elementos de socialização”. “Oh rapariga ou aprendes a bem ou aprendes a mal” .A história de Cristo e do cristianismo, da vila, da ilha e do reino. Transmitiam-se contos; longas” lengalengas” que se destinavam a ser memorizadas.

Comentavam-se acontecimentos da família sou mesmo do mundo porém, é crível que para eles tivesse tido mais impacto a morte súbita de um vizinho simpático do que a morte do rei da Turquia, por exemplo. Ainda é assim hoje.

Importante teria sido a destruição da vila em 1563/1564, era tão importante que até vinha escrito em livros. As pestes e as epidemias locais eram mais importantes do que outras fora da vila. Fora da vila o Brasil era um local importante para eles e Lisboa nunca tinha sido tão falada desde o terremoto de1755. A ilha sentira os abalos e a vila também. Os maus e os bons anos agrícolas, os pequenos furtos e os “enredos locais” tinham mais importância do que os “grandes acontecimentos” de fora. Temiam tudo o que estava fora da vila tal como temiam a morte mas o seu “mundo real “ começava e acabava na vila depois de passar pela família e pela paróquia a que pertenciam. Para a mulher, se calhar, o” mundo real” seria a casa . Para o homem um pouco mais.

O que se teria dito da Revolução Francesa, por exemplo? ( quando a notícia da decapitação real chegou ) Seria a noção de que o mundo estaria a chegar ao fim tanto mais que o século estava quase no fim? Há um ribeiragrandense, pelo menos, que andou em Paris na altura da revolução, um tal Bento Viana, tradutor de Chateaubriand. Descobri um filho de um capitão de milícias (salvo erro) local que vendo fundeado na baía um navio de nação francesa (como diz o documento) dele se acercou e nele embarcou. Tal seria em parte a revolução francesa na vila: A fuga do jovem.

Todas as “estórias “ ordenavam e interpretavam o “mundo”. Aquela quer-se fazer mais do que é “. Ou “Não vá o sapateiro além da chinela”.

O mundo era habitado pelos vivos e pelas almas numa coabitação nem sempre fácil. As “almas penadas” ( com penas a cumprir ) eram potencialmente boas e bastaria tão-só aos vivos ajudarem-lhes a cumprir a pena. Com a ajuda dos vivos salvar-se-iam as “ almas penadas”. Rezava-se a elas em casa ou na igreja. Algumas precisavam mais do que orações. ao invés as “almas danadas “ não tinham remissão e para estas era necessário encontrar “ remédio “ para afugentá-las para longe. Elas causavam todo o tipo de problemas desde o simples infortúnio nas últimas colheitas até casos mais complicados de “possessão”. Ou ainda a morte. Ainda pior do que tudo isso, e a chefiar toda a hierarquia do mal, sentia-se a presença real do demónio. A igreja falava dele. A cruz e os amuletos e as orações eram imprescindíveis. O mau olhado e a inveja dos vizinhos eram outras forças potencialmente malfazejas . Morar perto de uma igreja, sob a protecção da santa cruz era o local ideal para morar. O fim da vila, ou os seus pontos altos eram os lugares favoritos das forças das trevas mal a noite caía sobre a vila. Eram os lugares do mundo do além. Tudo isso se transmitia através de relatos, os ditos casos verdadeiros, legitimados por inúmeras experiências de gente de todos conhecida. Tinha peso quando provinha de gente “idónea”.

Quem sabia ler lia os livros sagrados, como, de certeza, foi o caso da mãe e das avós e do tio de Margarida.

As famílias mais auto-suficientes possuíam capela onde, as suas expensas, se celebrava missa e até onde se enterravam. É o caso de N. Sª das Preces perto da avó Joana, de N. Sª do Vencimento, ao atalho para São Pedro, S. Vicente Ferreira ( suspeito de familiares ), N. Sª da Salvação, junto ao último e um pouco mais fora, no termo da vila, o recentemente construído solar de St António. Tinham, porém, um pequeno oratório onde faziam as suas obrigações.

Ignes ( suspeito ) tinha-o dedicado a S. João Evangelista tal como a mãe já o fizera, tal como Margarida o haveria de fazer, como adiante veremos.

 

            - Escrita

 

A mãe e as avós de “Margarida e o tio ( tanto quanto sei ) sabiam ler e escrever.  Não sei se o convento onde mais tarde ela professaria também desempenharia este papel. É possível que sim. Os “ manuais” mais vulgares de então seriam os livros sagrados e devocionais. Curiosamente ensinava-se as crianças pondo o acento tónico na memorização. saber de cor, de trás para a frente e de frente para trás, era ter aprendido bem. Aprendia-se o latim quanto bastasse para “não naufragar” durante a missa. Aprendia-se as orações como a do “Pai nosso” e a “Ave Maria”, para além de outras orações incluindo as especiais. A santa  Barbara, quando fazia trovões, a St Luzia  quando algo afectava os olhos ou a visão, a St Antão quando algum animal adoecia, a S. Cristóvão quando alguém viajava e por aí adiante. Saber isso significava estar-se preparado para funcionar na “vida concreta”, a que lhes interessava e a que dizia respeito ao seu universo específico de necessidades. Se calhar  saber mais  naquele sistema de auto-suficiência seria considerado um desperdício.

Era a oração e a mezinha que, os mais sábios, deviam saber. Rezava-se a Santa Luzia logo que vista doesse, se não resultasse era porque era necessário acrescentar-se  o chá de malvas ou ir à botica da Stª Casa da Misericórdia, ali ao lado da ribeira.

Encontrei no testamento de  Margarida uma lista de livros da sua biblioteca . O livro não seria um bem acessível a toda a comunidade, estaria ligado a um determinado grupo social que soubesse ler  e que os herdasse ou pudesse adquirir. O grupo social a que Margarida pertencia , pelo menos o seu   círculo familiar mais próximo, sabia escrever. Os familiares dela, os que tiveram tempo para o fazerem, fizeram testemunhos e alguns deles fizeram-no pelo seu próprio punho. Ter “Nome”, ter livros e saber lê-los, mais saber lê-los, mais saber de cor o latim dos respónsios, as orações, fazia parte, para além dos afazeres domésticos e dos trabalhos manuais, do perfil da mulher cristã e da Botelho Sampaio que Margarida era?

Da sua roda familiar faziam parte três tipos de mulheres : as casadas, as solteiras e as freiras. Isso seria também ser uma Botelho de Sampaio. A família dela ou administrava vínculos ou participavam na governação da terra ou fazia parte do clero tanto regular como secular ou também pertencia às milícias. Os quais faziam parte do clero poderiam fazer parte de tudo excluindo-se os cargos da governação e os da milícias.

O mundo dos vivos (socializava-se ) estava próximo do dos mortos e com ele entretinha estreitos e contínuos contactos feitos de respeito e de temor. O mundo dos mortos era mais poderoso do que o dos vivos.

Os seus familiares ou estariam enterrados no convento dos frades ou no das freiras, nas igrejas paroquiais locais, tudo locais que ela frequentaria. Irmãos morreram-lhe enquanto ela crescia e estava em casa dos pais. Ela apanhou ainda a morte da avó Joana. A morte era uma presença constante, constrangedora mas familiar. Todos os anos, tal como havia aniversários, também havia o dia de finados, o dia 2 de Novembro. Era preciso rezar pela alma dos familiares defuntos e dedicar-lhes (um dia) em exclusivo. Era preciso ajudá-los a salvarem-se. Os testamentos ao prescreverem missas, para além das de corpo presente, encorajavam este convívio para além da vida, mantinham bem viva a presença dos mortos muito mais de um simples avivar da memória. Era o culto devido aos mortos que nos poderiam estar a ouvir e a ver.

A crença na presença palpável do além ( familiar) era forte e alimentava-se nas missas que se celebravam todos os anos nos dias em que os familiares tinham falecido “ad aeternum “, enquanto o mundo fosse mundo. Como se lê nas clausulas testamentárias.

Às vezes as almas, tal como já se disse, por qualquer motivo que teria de ser apurado, andavam a querer contactar através de sinais, com os vivos e fa-lo-iam até que conseguissem o descanso eterno. Tal, se atingisse proporções anormais ou se os sinais fossem difíceis de descodificar, ter-se-ia de recorrer a um especialista. Este tanto poderia ser um clérigo como um outro vidente a quem lhe fosse reconhecido o “dom” que lhe era imposto e não adquirido. Os pontos mais altos da vila eram (como já vimos ) os preferidos “das almas”. Aí se levantavam nichos denominados alminhas. Para aí se dirigiam grupos de orantes masculinos nocturnos. Ao cabo da rua dos Foros na rua das Dezasseis Pedras, ao fim da rua da avó, há um local chamado Alminhas.

Era aí que as almas eram “convocadas” e apaziguadas com cantares e regras dolentes.(registei em 1984 alguns destes cantares na Pedreira de Nordeste auxiliando um colega o Dr.º David de Carvalho).

Fora dos limites da vila era o caos, o mundo hostil e desconhecido. A simbologia era minuciosa e precisa. O Diabo rondava a partir do escurecer, e, a partir da meia noite quem desgraçadamente andasse pela rua e visse um cão preto poderia estar certo como dois serem quatro que “o encontrara”. A partir daí só deveria olhar em frente fazendo cruzes canhoto e chegar depressa a casa ou ao abrigo de uma cruz.

Aos sábados, o areal, ali a dois passos, era o palco de danças e de bruxedos demoníacos. Havia ruas e locais favoritos dos seres diabólicos e este era um deles. Era preciso usar figas, era bom ter-se nascido num Domingo e se possível ter-se um sinal nas costas que só pudesse ser visto ao espelho. Um bom padrinho ajudava. Este mundo sincrético assentava perfeitamente no modelo bíblico.

Cristo era o defensor da luz e o Demo, o senhor das trevas. O mundo andava dividido.

 

 

 

            -Festas

(religiosas e profanas. Esta distinção seria a que a hierarquia da igreja pós- Trento gostaria que existisse. Todavia a comunidade não os distinguia).

 

As festas, para além da sua importância lúdica fundamental ao equilíbrio psíquico da comunidade e de cada membro da comunidade, eram também momentos ímpares em que cada um vendo todos, “se situava” na sociedade e onde se (re)abastecia da ideologia sincrético-cristã que impregnava a sociedade.

As festas eram cíclicas tal como o era a vida de cada um e de todas as famílias.

A morte devolvia a pessoa à linearidade da história cristã que se prolongava para o além até à salvação. A história sendo tanto unilinear e cíclica era “aprendida “ sincreticamente . Esta ideia ( Eliade Mircea, Marcel Mauss e outros),salvo raras excepções, não tem sido aceite com entusiasmo pelos historiadores.

Enquanto sociedade rural que vive o dia a dia, vê-se o retorno das novidades, mas ao mesmo tempo, enquanto pessoa que envelhece e enquanto pessoa cristã, caminha-se não em elipse mas em linha recta. Eu diria que aquela sociedade caminhava “helicoidalmente”, em termos de tempo.

A comunidade, em termos de ideologia cristã, estaria muito influenciada pela interpretação que dela fazia o “franciscano”, na altura o único, para além do clero regular, muito naturalmente. Eles eram os “ideólogos” das procissões e dos grandes “sermões”. Eles eram os formadores da opinião pública local. Até há pouco tempo tinham partilhado esta influência com os jesuítas, ficaram sozinhos após a expulsão daqueles.

Tinham os franciscanos dois conventos, um dos frades, a poente da vila, perto da casa de Margarida, já o disséramos, o outro de freiras clarissas, a sul a caminho da Mãe d’Água de onde provinha a água para a sua arquinha e de onde provinha a água dos  moinhos do conde.

É através da dor, tal como padeceu e morreu Cristo o “Redentor do Pecado”, que se poderia vir a aspirar à salvação, se Deus assim o entendesse. O destino de cada um estava escrito mesmo antes da nascença. A tal ponto que o que nos acontece, de bom e de mal, é porque Deus assim o quis e porque também estava escrito. Estava “destinado”. A resignação ao destino era uma virtude. Veja-se o caso emblemático de Job.

A Salvação é uma graça de Deus. Poder-se-ia assim a traços largos tentar esboçar a “filosofia dos franciscanos”? É difícil. Pedagogia intencionalmente encenada nas duas procissões maiores (hesito na palavra maior), a primeira, dos irmãos franciscanos Terceiros, organizada pelos Franciscanos, a segunda, do Senhor dos Passos, sob a influência destes mas organizada pela Sª Casa da Misericórdia. Eram procissões penitenciais quaresmais (se calhar as mais importantes) e nelas se punham em prática todos os cerimoniais “barrocos” (pós-tridentino) que descia à rua e percorria as principais artérias da vila para educar, convencendo, comovendo e esmagando. Nelas se consubstanciava o “sentir”, o pensar e o agir em uníssono.

John Webster descreveu-nos (no início do século XIX), em Ponta Delgada uma destas procissões. A dor como educadora o medo como zelador da ordem cristã e social, já que os dois não andavam “senão um no outro”.

Cada pessoa e de acordo com a sua importância social, ia na procissão, ou não ia, e desde logo via a sua posição e a posição de todos. Era uma pauta hierárquica ambulante onde cada um se distinguia pelo sítio que ocupava e pelo modo como trajava.

As listas da procissão dos Passos, por exemplo, eram minuciosamente feitas e registadas nos livros do Consistório da Sª Casa. Perto do Pálio só o capitão-mor e os vereadores mais velhos e outras “individualidades”.( hesito no uso do termo individualidade). Cargos, repita-se, que foram ocupados pelo tio e mais tarde pelo irmão Teodoro. (excepto o de capitão-mor, porém estavam bem relacionados com eles).

Na dos Terceiros, os participantes (seria igualmente “hierárquica”) flagelavam-se (alguns) em sinal de humilhação e de arrependimento. É eloquente a descrição de Webster a este respeito. Não era só o lugar que cada um ocupava era também, e insisto, o modo como trajava que os distinguia. Não havia “mobilidade social” tal como a concebemos hoje. Cada grupo social desempenhava um papel mas não era “permitido” a alguém de um determinado grupo desempenhar o papel de outro grupo. As mulheres, por exemplo, pertenciam ao subgrupo do grupo da elite. Refiro-me a Margarida. As mulheres se iam no desfile (não tenho a certeza) iam no seu lugar de acordo com o seu estatuto. Nas igrejas era assim. Em casa também. Veja-se que até em casa havia partes menos femininas, o quintal, as lojas (para o grupo de Margarida) e mais femininas, a cozinha, os quartos, em suma o primeiro andar. Mesmo aí a janela não era um sítio próprio. Havemos de ver que nos conventos era a mesma coisa.

Os escravos e os “mal-enroupados” ocupavam o lugar mais baixo. Alguns escravos eram, sobretudo por morte dos “proprietários”, aforrados. João Caetano, tio de Margarida, por testamento “aforra” o seu mulato Jerónimo. Aqui há uma certa possibilidade de modalidade, a passagem das franjas confusas da sociedade para o mais baixo da sociedade.

Nas procissões (quase todos os domingos do ano como já dissemos) se reafirmava que o “Trono e o altar” estavam lado a lado, tanto mais que o padre que levava o viático seria filho, irmão, ou aparentado, ou amigo do vereador mais velho, ou do Provedor da St Casa, ou da Abadessa do Mosteiro de Jesus.

Atentar contra um seria atentar contra o outro. Daí o desbarretar-se perante Cristo, o padre e o senhor?

“O Arcano Místico” obra de Margarida tem igrejas, casas e procissões onde Margarida reflecte este mundo. Evidentemente que ela também teria usado gravuras e estampas. O corpo de Deus, procissões de iniciativa da Câmara, como outras, era feita na sede do concelho e na igreja Matriz, ou melhor nas ruas das paróquias da vila. A” Câmara”( nome já em si elitista) era gerida pelos que podiam andar na “governação”.A este respeito fiz há tempos um pequeno rastreio de alguns lugares importantes, sobretudo de familiares de Madre Margarida, e constatei da sua presença constante nas listas da governação. Às vezes era convocado o “Povo e a Nobreza”, essencialmente para tratar de assuntos muito importantes. As atribuições e a composição das Câmaras foram variando ao longo do período de vida de Madre Margarida.

Portanto, o “Corpo de Deus”, a procissão, seria mais um exemplo da simbiose entre o clero e as gentes da governança. Esta última, na altura, seria mais gente de poder do que de ter. Muitos iam ao Brasil para fazer o seu pé de meia, como é o caso do seu tio Caetano que não teria sido “bafejado pela”sorte, outro exemplo, o dono do solar de São Vicente Ferreira. O grande senhor, o conde da Ribeira Grande era absentista e nunca morava na vila. D. José I, através do Marquês de Pombal, retirara-lhe o “ verdadeiro poder”, o que ainda lhe restava, a troco de dignidades. O monopólio dos moinhos, por exemplo, acabou. De capitão-do-donatário da ilha, de cada uma, passou a haver uma capitania geral em Angra, acabando assim com o que restava do poder do então já Marquês (?). Os seus moinhos e as rendas deles eram a sua presença visível. São contínuas as queixas contra os moleiros dos moinhos do conde.

O ouvidor do eclesiástico tinha, porém, sede na vila e a área da ouvidoria excedia em muito a área concelhia que então ia das Calhetas a poente à Ponta de Sª Iria a nascente. A ouvidoria ia da Bretanha a nascente até, salvo erro, às Furnas, então ainda curato (?).

Havia um enorme corpo de “mesteirais” (mestrança) que desempenhavam todas as tarefas de uma sociedade rural auto-suficiente. Os seus representantes tinham direito a lugar nas procissões. Além dos “mesteirais” havia os que trabalhavam no campo à jorna ou por enfiteuse. Eram poucos os que se ocupavam do mar. As mulheres eram padeiras tecelãs e amas, entre outras coisas.

Os “enjeitados” eram lançados nas rodas da Câmara ou da St Casa  e eram dados a criar a amas de leite.( percentagem substancial de ilegítimos ou incógnitos ). No fim da pirâmide social estavam os escravos. A julgar pelos Róis de confessados e deserdados das famílias de nome da vila e de seus arredores . Alguns eram de fora da vila.

O império dos Nobres (Espírito Santo) organizado pelos irmãos da St Casa da Misericórdia, ao que julgo saber, ( é curioso que as cúpulas eram sempre constituídas por gente da governação, porém, a irmandade aceitava outros grupos sociais até mesmo freiras professas. O mesmo verifiquei em relação a outras confrarias) era uma festa que servia para os que tinham poder e alguma “coisa” se lembrassem do dever de dar a quem não tinha poder nem tinha que comer, aliás, na continuação do que diariamente se fazia às portas da Misericórdia, dos conventos e das casas com “posses” da vila. Esta solidariedade social ajudava a manter a situação social e legitimava-a, de certo modo. Vejamos. Pelo menos enquanto “durasse o império” invertiam-se os papéis: o senhor servia e o servo era o senhor. Era também um acto de humilhação pública.

O tio Caetano pretendeu ser sepultado do lado de fora da porta de S. Sebastião onde se “humilharia” para além da vida a fim de lhe serem remidas as faltas.Tinha abandonado a mulher poucos meses após o casamento.Tal qual acontecia ( de outra índole, é certo) no Carnaval, em que a ordem estabelecida permitia, controladamente, ser provisoriamente ( “pervertida”) “subvertida”. Tal como ainda nos dichotes carnavalescas. Às festas da “ordem social correcta” ( Passos e Terceiros entre outras ) antecediam-se ou seguiam-se as festas da “desordem social correcta”. Eram as válvulas que ciclicamente se abriam e com as quais se descomprimia a sociedade. A inversão de papéis era mutuamente benéfica. Psicologia social multissecular? Eficaz, registe-se. Há contudo indícios de “levantamentos de povo” contra a saída de trigos, por exemplo. Ou até, em St Maria, do povo que expulsara o padre que queria ser mais papista que o bispo da diocese na sua repressão contra o culto sincrético do Espírito Santo.

Neste jogo se promoviam o equilíbrio e a ordem social vigente. O mascarado que se travestia de mulher ao “subverter a ordem sexual natural” e ao fazê-lo caricatamente não reforçaria também a sua masculinidade, por tanto, “a ordem natural das coisas”?

Também acentuariam a precaridade da vida e das coisas terrenas ( apesar da lei dos morgadios ) e que só Deus, que tudo sabe e pode, seria capaz de ordenar a vida e a morte, faces da mesma moeda. Deus era senhor do destino.

Os sermões ( pense-se em António Vieira ou nos de Bartolomeu de Quental muito disseminados nas livrarias da ilha), os hinos, os desfiles processionais, ensinavam ao povo cristão da Ribeira Grande a sua história da salvação, a doutrina providencialista cristã. Respondiam-lhes às perguntas fundamentais da sua existência davam-lhes a sua essência: quem eram e para onde iam, todos e cada um deles. Legitimava-os naquilo que eram ou que poderiam, vir a ser, conforme o estatuto que cada um tinha e conforme o destino. Eram, pois, conformistas e situacionistas. Nada lhes ensinava a rebeldia ou a ser-se ele ou ela própria, ensinava-se a sofrer com paciência e resignação as dores. Havia, contudo, como vimos, para o Carnaval e para o Espírito Santo, uma margem de tolerância.

A consulta dos sermões, dos livros sagrados e de outras obras devocionais da época leva-nos à interpretação do que acima aludimos.

A vila, no seu todo, seria uma família, daí que lhe competisse “cuidar” de todos os seus membros. Existiriam rivalidades inter-paroquiais facilmente detectáveis ao nível das procissões e outras festas. Igualmente existiriam rivalidades entre e dentro famílias. Os pais de Margarida estão numa sociedade que condena a separação no entanto suspeita-se que por motivos que possam passar pela rivalidade, separam-se. Estes mecanismos são indispensáveis ao papel social de identificação à “terra”, ao sentido de pertença a um determinado modo de sentir, agir e pensar integrado num espaço especifico (social). Havia a certeza de se pertencer a uma família, a uma paróquia e a uma vila. Mais difusamente a um arquipélago e talvez ainda mais difusamente a um reino. As colagens do “poder do Trono” ao “poder do altar” visavam aproveitar este último poder para se impor em todo o território. As festas obrigatórias do nascimento dos príncipes, dos seus esponsórios dos seus falecimentos e de algumas grandes batalhas, durante três dias e três noites, destinavam-se igualmente a “ensinar” os súbditos, a fazer com que eles se identificassem com um “reino proposto e imposto” de fora para dentro. O fausto destas festas (a expensas da Câmara) não poderia ser inferior ao de outras festas. O poder sentia-se pelo fausto.

Sentir-se-ia Margarida ao ir a Água de Pau visitar os tios e os primos, uma ribeiragrandense?

O saber situar-se socialmente era um conhecimento ministrado quer em casa quer fora dela pelos do mesmo grupo social ou pelos membros de outros grupos sociais. “Aquela não está vestida como uma menina” ou “Aquela está vestida como se fosse uma menina”, por exemplo. São simultaneamente modos de controlo social.

A comunidade, como um corpo social, está dialéctica e simbióticamente interligada a todos os níveis. Cada corpo comunitário é formado por subcorpos ou corporações e este “corpo total” só se tornará visível à medida que nos afastamos dele.

A mulher e o homem aprendiam, vendo e ouvindo e nalguns casos lendo ou sentindo os seus papéis e a sua importância. O espaço por excelência da festa era fora de portas ou voltado para a rua, ou então nos espaços sagrados das igrejas e do lar . Tudo isso confirmava, corporizando, a ordem e o poder. O seu centro físico privilegiado situava-se na praça. A começar pelo pelourinho passando pela cruz da igreja matriz, ou pela imponência invulgar e bizarra da fachada da igreja da Misericórdia. O poder vivia-se ali todos os dias de sol nado a sol posto. Até mesmo depois das trindades e do sol posto o Demo não se atrevia a penetrar naquele espaço onde o poder era palpavelmente total.

A igreja sede do concelho, a Câmara (também) sede de concelho e a Misericórdia, sede de solidariedade social concelhia, formavam um triângulo em cujo interior tudo se decidia e fazia. No seu interior físico, todas as actividades económicas eram desenvolvidas e regulares. O Pelourinho legitimava o poder.

O barracão do peixe, o Açougue da carne, o mercado dos animais e de legumes.

Aí se arrematavam as rendas. Daqui partiam as decisões que diziam respeito à vida dos “vilãos”. É neste local que a vila mais caprichou a sua aparência. É o barroco tardio algo barrominiano fabuloso da igreja da Misericórdia é o imponente edifício com arco e torre sineira da Câmara é ainda a imponentíssima fachada da igreja Matriz no alto do morro. Deste centro parte o traçado ortogonal da vila já definido (segundo tentei explicar noutro trabalho) no século XVI. Nela “desagua” a rua Direita que vai a São Francisco (composto pelo de João do Outeiro a de N. Sª da Conceição e no fim de S.Francisco ) verdadeira veia que alimenta toda a vila e arredores. Nela moravam as principais famílias ( Exceptuando-se as dos solares adjacentes ). Morar nela era ser-se alguém na vila.

Ao lado da praça, passa a ribeira que, segundo Frutuoso, ( cronista quinhentista local ) deu o nome à vila bem como a sua vida. A Sua água servia para beber( em condições que algumas vereações de então consideram impróprias ) para fazer mover os rodízios dos cinco ou seis moinhos do conde, para regar as terras e “demolhar os linhos” e regar os laranjais. Esta ribeira era a fertilidade da vila e também, como em 1563/64, a sua tragédia. A ribeira, tal como a terra e a mulher tanto poderia dar a vida como a morte, era perigosa era preciso ser controlada.

Para isso fizeram-se paredões, plantaram-se árvores nas margens, afastaram-se as principais casas delas e mudaram-se os moinhos para o interior. A este espaço, este coração e este cérebro comunitário, juntaram-se, propositadamente  nos arredores, dois pólos extremamente influentes. O primeiro, a poente, o convento Francisco, o segundo, sensivelmente a sul, junto à ribeira, o de freiras clarissas.

Estavam indissoluvelmente e consaguinamente ligados e tanto era assim que as procissões que passavam pelo triângulo por estes dois pontos formando um novo e maior triângulo. Seria intencional?

 

Observações

 

Continuo a tentar perceber-me recorrendo às leituras que fiz e faço sobre temas tratados pela história das mentalidades, pela psicologia, pela sociologia, enfim pelas ciências sociais. ( Vovelle, Duby, Philippe Ariés, Jean Lois Flandrin Louis Réau, José Andrés- Gallego, Margaret Mead, Piaget...).

Todas estas leituras, no entanto, têm sido sempre confrontadas com as recolhas que tenho procedido no terreno , quer no arquivo e nas bibliotecas clássicas quer nos arquivos e bibliotecas não clássicas, a arqueologia e as conversas com os “vilãos” agora cidadãos mais velhos ou mais “eruditos”. Tenho-o feito desde 1983.Nesta base tenho “arriscado”, não sem o recurso à rede para me aparar na queda, a escrever o que neste capítulo escrevi. Considero que tenho que sacudir as fontes e arriscar. Antes porém, e não a propósito do que acima disse mas do que deveria ter dito ou frisado no decorrer do último capítulo.

 

 

1-O modelo da igreja Católica de celebrar ao longo do ano as festas da vida Jesuina e de sua mãe poderão ter influenciado o modelo do Arcano.

 

2- O tipo de vida de uma mulher do grupo de Margarida no convento ou em casa não seria muito diferente.

 

Passo a sintetizar, de seguida, algumas objecções ou tentativas de correcção.

 

1- A parte da Escrita contém elementos que talvez pertençam à oralidade às Festas ou à gestualidade . Senti dificuldade em conter a informação nos parâmetros que inicialmente propus. Para além dessa afinação julgo que o modelo funcionou.

 

2-Ainda que a sociedade rural que “entrevistei” (1983 em diante) se pareça com o que tento representar (do século XVIII e XIX )até que ponto as informações da primeira poderão interpretar a segunda? Etno-história?

 

3- Ainda que tenha mudado será que a mudança afectou o “essencial” (existencial )? A história das mentalidades e a abordagem dos tempos (longos ou curtos) e o modo como as “mentes” mudam (portanto a teoria ) parece legitimar esta abordagem.

 

4- A etnografia e a história  ( permanências) vão atrás  ( certa etnografia e certa  história ) dos invariáveis mas isto não significa que não captemos os variáveis . Ao longo deste ensaio captarei um que se revelará importante: a extinção dos morgadios.

Gostaria, todavia, de me certificar até que ponto os “ invariáveis” que julgo ter apanhado no século XX o eram no século XVIII e XIX.

Até que ponto eles autorizam-me a um discurso contextual e histórico e não anacrónico?

Não sei mas tive de arriscar.

Na gestualidade dever-se-ão incluir muito mais expressões não-verbais, tal como o não gestual, o espera aí, o vai-te embora, bem como a expressão de agrado ou de cólera ou de dúvida, o sorriso, o riso etc.

porém estas como as demais áreas de socialização interagem, por exemplo, um não, não-verbal, é frequentemente acompanhado de um não verbal. Este sistema interpretativo interage integrada e não separadamente.

 

 

 

 

 


 

5ª fase. Fase dupla: Comunhão e Confirmação.

5- Cidadania Católica paroquial de pleno direito. Acesso à Confissão e à Comunhão do Corpo e do Sangue de Cristo e à Configuração.

Rituais bem preparados?

 

 

Até aí ela seria católica, porque era baptizada, mas, para o ser de pleno direito, faltar-lhe-iam dois sacramentos fundamentais: A comunhão e a confirmação. Comunhão do corpo e do sangue de Jesus Cristo, Deus, feito homem para nos remir do pecado original e nos levar de volta ao pai e ao Paraíso Perdido. Beber e comer simbolicamente “Cristo” significava fazer parte dela e da sua igreja. Para isso era preciso preparar-se muito bem. Primeiramente aprendendo a doutrina da igreja, depois, purificando-se através da confissão e só então comungar-se-ia. A cidadania ficaria incompleta sem a confirmação, o sacramento que tornaria perene o desejo provisoriamente manifestado no baptismo em ser membro da igreja. Fora uma caminhada que durara alguns anos desde que a água baptismal lhe lavara do pecado original até à confirmação que lhe dera a possibilidade de aceder a outros dois sacramentos: o casamento ou a “ profissão no mosteiro”.

Desconheço a idade exacta em que Margarida comungou pela primeira vez. Igualmente desconheço a altura da sua confirmação. Esta última vem raramente registada, conhecendo-se apenas algumas folhas apensas ao livro do baptismo. Os confirmados não tinham muita idade, segundo Fernanda Enes, pois levavam o padrinho e os pais, facto que parece corroborar tal hipótese.

O primeiro rol de confessados que a igreja de N Sª da Conceição actualmente possui (vi-os de alto a baixo) refere-se à quaresma de 1799 tinha já Margarida 13 anos feitos. Contudo uma análise atenta de uma série (obtido através de critérios de representatividade) levou-me à colheita de dados que me levaram a supor que não haveria uma idade cronológica rigorosa que determinasse a “altura própria” para o acesso a este sacramento. A variabilidade de idades, entre 6 e 7 anos até perto dos 9, 10 anos, leva-me a supor que a “idade” dependeria, em grande parte, na “esperteza” da criança. Sobretudo o desembaraço e a capacidade de “memorização catecismo” que a criança dispunha. Exceptuando-se, talvez os casos excepcionais, pois, as crianças comungariam entre os 6 e os 9, sensivelmente. A confirmação fazia-se depois da comunhão, ou algum tempo depois ou pouco depois, faltam-nos os dados para o confirmarmos.

A comunhão era tão importante que o concílio de Trento instituíra o seu culto. A paróquia de N.Sª da Conceição, ao exemplo das congéneres próximas, possuía uma Confraria do Santíssimo Sacramento que só se ocupava daquele culto. As principais pessoas da terra faziam parte dela. Havia dias próprios para o seu culto e concediam-se indulgências plenárias a quem neles participasse. Promoviam-se mensalmente procissões. As igrejas conventuais também tinham capela do Santíssimo. Já no século XVII, por exemplo, a confraria da Matriz tinha estatutos. A acentuação desta celebração ocorre no momento em que a contra-reforma de Trento pretende combater os reformistas. Estes últimos não lhe viam qualquer utilidade séria. Roma, ao invés, investe nela, revestindo-a de toda a pompa e o cerimonial barrocos. Lois Réau é de opinião que tal salvara o catolicismo.

Na igreja da Conceição, o Santíssimo ficava ( e fica) ao lado da capela-mor (tal como em todas as igrejas) do lado da porta de S. Sebastião, onde à sua saída João Caetano Botelho seu antigo Provedor e tio de Margarida, foi enterrado.

No altar da capela do Santíssimo insculpira-se um cofre onde se depositavam todas as hóstias consagradas. Uma lamparina de azeite doce ardia dia e noite.

Pela Páscoa, em que a desobriga era obrigatória, toda a comunidade comungava.

Comungar, ao que parece, não era então frequente. Reservava-se, regra em geral para a Páscoa.

Cristo teria instituído a Primeira Comunhão na última Ceia.”Reconstitui-la” na igreja e em cada comunidade era reviver a biografia de Cristo. A Páscoa estava ligada a esta etapa da biografia de Cristo e da vida de cada cristão.

Ao comungar e ao ser confirmada Margarida passou a ser uma cidadã católica de pleno direito. Agora poderia casar ou ser freira, ou até ficar solteira.

Tudo isso, porém, em estrita obediência aos pais. A mulher seria sempre mulher do marido, irmã do irmão, teria de respeitar os pais, o homem e os mais velhos.

Talvez sendo freira isso se atenuasse ou sendo viúva, como se verá adiante.

Desconheço se, na altura, se fazia, tal como hoje se faz, uma primeira comunhão solene e pública. Como comungar não era um acto frequente e era obrigatório, uma vez no ano, pela Páscoa, suponho que podemos pensar plausivelmente, numa cerimónia especial para os neófitos. A confirmação, sabê-mo-lo exigia padrinho.

A rapariga tornava-se então “reconhecidamente mulher, ainda que o não fosse ainda biológicamente.O amadurecimento biológico ( a menstruação ),chegaria no recato discreto do lar entre as irmãs mais velhas e a mãe. Para se poder ser mulher como qualquer outra, para se poder casar ou ingressar num convento, não bastaria que se fosse “ biológicamente mulher (só no 1º caso) era necessário ser-se “espiritualmente mulher”. Só aqueles sacramentos transformariam o acto da “ procriação “ em acto legítimo. Ou melhor legitimariam o casamento que por sua vez legitimaria a procriação.

Era uma cidadania “diferente” da do homem. À mulher estaria vedado o sacramento da ordem porque sobre ela pendia como ainda pende (?) o labéu de filha de Eva. O feminino está ligado ambiguamente ao fértil e ao mal.

Não dissera S.º Agostinho que a mulher e o casamento eram um mal, melhor seria o celibato. O sangue menstrual tornava-a impura, tão impura que nem se podia acercar do altar-mor ou da comunhão quando estivesse com o “período”.

 

 


 

6- Crise Familiar- a eminência da desagregação.

Crise

 

Pelos documentos que dispomos tudo parece ter sucedido de um modo rápido e inesperado.

Ignes e José Francisco estavam casados há 34 anos, ela tinha 50 ele teria 56, tinham três filhos sobreviventes: Ana, a mais velha, com 26 anos, Margarida,20 e Teodoro 19.

Tudo se passou entre a Quaresma de 1799 e a de 1800. No rol de 1799 ainda estavam todos juntos na sua casa da rua de São Francisco. Em 1800, Ignes está com a mãe e os irmãos na rua de São Sebastião.José Francisco permaneceu em S. Francisco e com ele Teodoro. Ana e Margarida estão já no mosteiro de Jesus.

O que se terá passado?

Na quaresma seguinte (1801) Teodoro está junto da mãe e dos tios. José Francisco fica só com o seu criado. Tanto naquele ano, como no seguinte, pelo menos, ele não comparecerá a dar obediência à igreja. Diz-se no fim do rol de 1801 (salvo erro) diz: “ Excepto o Capitão José Francisco que até hoje não apareceu para dar obediência à igreja”.

Em 1808 já se confessa e comunga (o que não quer dizer que não o tivesse feito antes. Existe uma falha documental) mas ainda permanece separado.

Porque é que a paróquia não exerceu ( ao menos parece) nenhuma coerção institucional?

Deparei com inúmeros casos e de todos eles foram punidos pelo ouvidor eclesiástico. Terá o capitão, o homem de “posição” escapado por ser de “posição”? E Ignes?

Em 1812 tem grandes arrelias com as suas terras de nabos. O rendeiro do ver, Domingos Carvalho leva à audiência o caso. José Moniz da Ribeira Seca é responsabilizado pelo furto praticado pela mulher. O mesmo sucede a Manuel das Almas e a José Cacilhas, aquele pelas filhas e este pela mulher. (a mulher “desresponsabilizada”) Depois é o silêncio. Permanece em São Francisco até que na quaresma de 1817 já está com a mulher. O cunhado tinha falecido em 1808 . No ano em que José Francisco se junta a Ignes .Rosa Felicia, irmã de Ignes, morrera tal como a sua filha Ana, ou Madre “Ana Tiodoro” (sic).

Ficara Teodoro ainda solteiro e margarida no mosteiro.

Até parece “um esquema de um romance de Camilo”.

Foi tudo tão rápido e inesperado que o anotador do rolo de confessados ainda registara os nomes de Ana e de Margarida na rua de S.Francisco enquanto a mãe já estava com a avó ( ou melhor com os tios) e apesar de ambas já terem professado. Riscou-as, porém.

Repito e insisto: “O que se terá passado?”.

Em Fevereiro de 1800, Ana e Margarida estão e ingressar no convento de Jesus. João Botelho, tio, seu síndico e Procurador geral deverá ter tido uma palavra influente(?). Decisivo foi a contribuição de 840 mil reis pelos seus dotes oferecidos pelo Morgado e Capitão João Borges de Medeiros. As influências são importantes. O que levou aquele homem a oferecer aquela quantia bastante avultada, pelo sinal ? Apoiar vocações? Remediar uma situação?

Certo é que existiu uma crise familiar que permaneceu durante quase duas décadas. Talvez esta tenha contribuído para a entrada rápida no refúgio conventual, com ou sem vocação, por necessidade ou fruto das circunstâncias. O convento, como iremos ver, era um “porto seguro” tanto do ponto de vista de comodidade como de, certo modo, “liberdade”. Há quem diga que a mulher só se emanciparia sendo viúva ou  freira, como já referi anteriormente.

As coisas são como são e a boa filha, mesmo em caso de conflito familiar, deveria seguir o uso corrente.

Mas porque se separaram os pais? Problemas de heranças. Teria o tio Caetano alguma coisa  a ver com o assunto?

 

Observações

 

Evidentemente que me falta aprofundar certos pontos aqui enunciados. Aqui ative-me mais à documentação recolhida. Prefiro as explicações contextuais às causais . Foi o que tentei “demonstrar” no último “emaranhado” de perguntas que só levam a uma infinidade paralizante. Talvez até laterais à preocupação da história .

 


 

 

7ª fase- A preparação e a Morte para o mundo. Morrendo

7- (Re) Socialização: O que é ser freira clarissa no Convento de Jesus. Ela e a irmã.

 

Os documentos que dispomos parecem suportar a ideia de que Ana e  sua irmã Margarida não poderiam a 18 de Fevereiro de 1800 ter completado um ano ininterrupto de noviciado no convento de Jesus. Eles até reforçam a ideia  de que o acto foi algo inesperado, pelo menos para o arrolador dos Confessados da paróquia.

Suspeita-se pois, que a resocialização (ou socialização contínua) não se tenha (dado)/ processado como seria habitual. Consulte-se o processo da noviça Eufrazia Ludovica chegar-se-à a esta suposição.

Não cremos, todavia, que tenha havido um choque entre aquilo que Margarida lá encontrou e aquilo que ouvira que lá encontraria. Só neste sentido. E, afirma-mo-lo, porque o convívio da família delas com o convento seria regular e frequente. Aliás a mãe tinha lá ou tinha tido uma comadre freira madrinha de um dos seus irmãos já falecidos e o tio João Caetano Botelho, irmão da mãe, era seu Síndico e Procurador Geral. Portanto o homem que tratava de toda a vida material do convento no exterior e que estaria a par de tudo o que se passaria dentro e fora. E bem relacionado a julgar pela celeridade de processo. O contacto com a realidade conventual deveria ser algo comum quer para Ana quer para Margarida tanto na sua frequência às festas e aos locutórios conventuais tanto provavelmente em alguma estadia no seu interior. Em caso de uma crise familiar (1800- crise no país) integrar-se-iam,  logo que vagassem lugares, sem grandes transtornos. Coincidência ou não vagaram os lugares de Madre da Natividade, que Margarida ocupou e o de Madre Antónia Faustina, ocupado por Ana, por falecimento daquelas.

A aprendizagem das “regras e das constituições” não seria algo de longínquo para uma comunidade sob a protecção dos franciscanos  e onde para a mulher casar ou professar eram duas realidades normais. Tinham um tio professo no Mosteiro dos frades. O conhecimento das regras no exterior ou em estadias anteriores no seu interior facilitaria a socialização. Portanto não seria uma resocialização. O facto de ambas terem estado algum tempo imediatamente antes de professarem veio de certo contribuir para aprofundar os seus conhecimentos sobre a história da ordem e dos seus patriarcas bem como da história daquele mosteiro e das suas ocupantes com fama de santidade. Para além do mais Frutuoso e Monte Alverne tinham escrito sobre aquele convento e a vila. Até o conhecimento das idiossincrasias de cada uma das actuais Madres; as boas e as menos boas, com os seus feitios, tudo isso seria do conhecimento delas ainda cá fora. ( Poderia ser)

Havia, pois, se calhar, mais que se prover à socialização. ( familiarização) com os novos espaços e com as suas novas companheiras até que a morte as separasse. Era preciso aprender a lidar com os feitios de cada uma, saber as regras não expressas mas por todas aceites, saber enfim o seu lugar. Sobretudo. Sobretudo fazer amigas e não fazer acima de tudo e antes do mais inimigas. Estariam elas à altura?

O convento fora fundado, após ter recebido bula de Paulo I I I, em meados do século XVI por um irmão influente do então capitão-do-donatário, Pedro Rodrigues da Câmara e sua mulher Margarida de Bettencourt, em suas próximos casas, tal como os cunhados o haviam feito em Vila Franca em Ponta Delgada e na Caloura.

Tal como os da mesma estirpe o faziam pelo país fora, melhor dizendo pelo reino.

Em 1563,64, ruíra quase por completo na crise sismico-vulcânica, mas apesar das muitas dificuldades, fora reconstruído pelo padroeiro e de novo habitado em finais do 3 º quartel daquela centúria. Ficava situado a sul da vila, voltado para a serra de Água de Pau e de um ponto que se avistava distintamente a enorme baía onde a Vila da Ribeira estava implantada. A Ribeira corria ali perto. ( Hoje está quase totalmente destruído. Parte deste trabalho destina-se a orientar a sua escavação sistemática ).

Entraram pela porta Regral, como era costume logo de manhã após terem ouvido a missa na igreja e foram conduzidas ao espaço destinado às noviças. Ficaram sob a responsabilidade da Madre das noviças. As suas idades não eram propriamente a idade normal de noviça, Ana com 26 e Margarida com 20. Puseram-lhes véu branco para as distinguir das Madres que usavam véu preto ou das pupilas ou das servas. Pelo vestir via-se o que cada uma era. Eram 35 Madres ( o topo da hierarquia ) mais algumas noviças que esperavam, à vez, que algum lugar vagasse. As servas ocupavam-se, tal como em casa de cada uma as criadas, de todos os trabalhos domésticos sob orientação de cada uma. Havia as servas particulares e as da comunidade.

A igreja era uma só nave e no altar-mor estava colocado em posição de destaque o símbolo do orago do convento; Um crucifixo de 5 palmos. Pelos outros altares, encontravam-se, creio que no altar-mor também, os patronos e fundadores da ordem: St Clara e S. Francisco de Assis. S. João Evangelista, padroeiro da Província Franciscana dos Açores, santo da devoção familiar de Margarida e do qual retiraria o nome da sua obra para o seu novo nome. N. S. ª da Vitória e Santo António também tinham lugar no corpo da igreja. Nos coros, alto e baixo, muitas outras devoções tal como em cada cela individual. A igreja já ela conhecia. O coro alto e baixo espaços que passariam povoar e de onde veriam com frequência parte do mundo que para trás ficara. De lá e dos locutórios mais os mirantes.

A partir de então ficariam sob a alçada da ordem mas só se desligariam do século quando o ordinário lhes fizesse perguntas e a comunidade as aceitasse.

Esta parte era importante pois marcava o corte simbólico entre a paróquia a que ela pertencera e o convento a que ela iria pertencer.

Paredes meias com a parede da igreja, voltada a norte, desenvolvia-se para sul, o claustro para onde davam as celas individuais. Parte das freiras, das noviças e das pupilas que lá encontraram já as conhecia de vista ou de nome. Estavam avisadas dos seus feitios até. Sabiam a quem deveriam recorrer.

Ao lado do convento e dependente dele ficava a Casa do Oratório dos padres, junto à ribeira e a poente do convento, que assistiam às necessidades espirituais da comunidade. No ângulo sudeste da cerca ficava a arquinha, ao lado da porta do carro, onde ia a água do aqueduto das freiras. Ao lado da casa dos padres erguia-se um Passo e, defronte deste, um cruzeiro, no meio de um campo onde frequentemente se faziam os “alardes” das milícias da vila. A nascente, a porta regral e a roda conventual, no primeiro andar, os locutórios. Neste lado, erguia-se o altar-mór. A poente, os coros, alto e baixo. ( são reconstituições quase todas conjecturais carecendo confirmação arqueológica) No início do campo das freiras, o pomar conventual. Todo esse espaço correspondia a uma casa solarenga, talvez ainda mais pequena que a de S.Vicente, mas não muito maior. O espaço da mulher solteira ou casada, na realidade, também não seria muito maior. Até poderia ser mais pequeno. O problema seria viver ou conviver harmoniosamente naquele espaço com tantas outras, cada uma com o seu feitio, cada uma com a sua doença, umas novas , outras idosas.

Só uma boa abadessa, poderia aliviar as tensões que daí poderiam advir. Ou punir os casos mais graves inclusive o encarceramento no cárcere conventual. Apesar de conhecerem as regras e do que se fazia no interior do convento, deve ter sido, ainda assim, difícil a  adaptação da saída da casa paterna, tanto mais que estes se tinham separado. Além do mais, aos 20 e aos 26 anos, a maneira de se ser e de estar na vida já estaria longamente consolidada feita de gestos, de gostos e de hábitos. As obrigações do coro obrigavam-nas a se levantarem ainda mais cedo do que habitualmente se levantavam em casa e tinham de o fazer várias vezes ao dia todos os dias.

Era necessário, caso ainda não soubessem, aprender de cor as orações e os cânticos que acompanhavam cada hora canónica.

Não tinham propriamente que trabalhar humildemente pois para isso existiam as servas, porém, tinham que ocupar o tempo restante na oficina do convento.

Ana e sua irmã, era exímia a fazer flores de penas, por exemplo. Ela também tinha o seu talento.

A Abadessa superintendia tudo e era eleita de dois em dois anos podendo ser reeleita: As eleições tinham que ser confirmadas pelos responsáveis da Custódia da Puríssima Conceição uma da três que formavam a Província franciscana de S. João Evangelista emancipada do continente, depois de muitas peripécias perseguições e prisões, no século XVII. (é curioso registar, a talha de foice, que os primeiros autonomistas foram os religiosos ) Era coadjuvada por outras madres com papéis especiais tais como as Discretas, a vigária, a escrivã a mestra das noviças, a porteira, a rodeira, principalmente. Do lado de fora das grades mas a soldo do convento o Síndico e Procurador Geral administrava os teres e os haveres da ordem, sobretudo dava conta dos recados da abadessa, recolhia as rendas e os foros, contratava mestres, entre muitas outras tarefas. Dentro do convento, ambas aprofundavam os seus conhecimentos da vida religiosa através dos gestos, das festas, da leitura, da oralidade tal como o tinham feito.

O convento participava em algumas das festas do exterior, como a do Senhor dos Passos ( com o sermão da Portada?), daí a proximidade do Passo Quaresmal.

Incluía-se a festa das comadres e o Entrude. Estas festas nada têm a ver com a religião, registe-se. Sobretudo o Entrudo em que, tal como na vila, era permitido controladamente a perversão da ordem conventual antes da Quaresma .

As comadres, e quase todas as freiras as tinham, Margarida nunca as teve, ao que parece, da  vila e do convento eram um elo importante para as Madres. Assim se acedia a tudo o que se passava na vila. O convento só seria uma vila dentro da vila por obedecer a leis diferentes mas em tudo o mais participava, havia osmose social. Os muros da cerca nunca o impediram.

Depois havia as festas em que o convento tinha fama ( as suas cantora, por exemplo) e que atraiam tanto os da vila como de fora dela e até mesmo estrangeiros não católicos.

cada um dos santos existentes nos altares tinham direito a festa: St º António e S. João Baptista em junho; em julho o Santíssimo Sacramento e S. Francisco; ( aproveitariam eles a festa do Santíssimo em julho para as primeiras comunhões solenes?) em Agosto, St Clara; em Outubro, os Santos, de novo São Francisco e o Pão por Deus; em Novembro St André e em Dezembro N. Sª da Conceição e o Natal. para além de S.João Evangelista. Estas festas eram acompanhadas por actos solenes na igreja e por festejos no interior com doçaria e todo o tipo de culinária que tornou o convento e quase todos os conventos afamados. Também neste espaço supostamente imune e estanque ao mundo se reflectiam e se reproduziam as festas de um mundo sincrético.

Cada uma trouxe-se a si e à sua cultura para dentro do convento. Não houve corte, nem tão pouco ostracismo, houve um pouco de recolhimento.

A comunidade funcionava, deixe-se passar o termo, como uma “cooperativa”. Quando havia excedente redistribuía-se por todas as madres. O da comunidade era de todas mas o de cada uma era só de cada uma como à frente veremos.

Distribuíam-se pelo Natal, pela Páscoa, pelas festas de S. Francisco de S. Clara e pelos Santos, estipêndios monetários ou em género denominados propinas. Era-lhes assegurado a subsistência, ao nível do que de melhor havia na vila, assistência médica e medicamentos e mesmo assistência religiosa em vida e após a morte. Enterravam-se na igreja e no coro conventuais. Era uma vida farta e estável. Consultando, como fiz, o livro da receita e da despesa conventual, deparei com aquilo que, dia à dia, a comunidade consumia. Eram carne de rês e de cabra, peixes (bacalhau), galinhas, ovos, lenha miúda e grossa mais charamuga, arroz, manteiga, azeite, açúcar, vinho, chá, café...

Pão, coziam-no, ao que creio, e, fruta tinham-na no Pomar mais os legumes como nabos, couves e batatas. Eram despesas consideráveis que também incluíam obras de manutenção (retelho sobretudo no verão) roupas para as madres, louças, papel para doces, entre as quais as despesas com a saúde com os pregadores, com os padres do oratório. Despesas muito consideráveis. Parte disso tenho comprovado e para além dos livros consultados, nas intervenções arqueológicas que tenho levado a cabo. Cerâmica da mais fina, azulejaria de padrão, tanto Portuguesa como hispano-árabe é muito vulgar encontrar nos achados de superfície. O espaço em que o claustro se erguia é agora uma terra cultivada.

Ingressar no convento era entrar num lugar seguro, livre das incertezas económicas, sociais e políticas do mundo. Se calhar era preferível ao casamento ou ao manter-se sob o jugo paternal. O factor mais problemático seria o de se conseguir dar bem com todas.

 


 

 

8- Morte para uma comunidade e renascimento para outra- 1800.

8.1    Renascendo

8.1.1 Ritual do Ingresso.

8.1.2 Renascimento.

8.1.3 Noivado com Cristo.

 

Só pôde aceder à plena cidadania conventual no dia em que professou. Para isso foi essencial que vagassem lugares mas não bastou, foi preciso que a comunidade votasse favoravelmente a sua entrada e que lhes desse, a cada uma, uma propina. Ainda não era o suficiente. O ordinário teve que lhe examinar tal como já referi e conforme o concílio Tridentino, para evitar abusos, estipulara.

Perguntou-lhe o ouvidor do eclesiástico ( representante da paróquia que lhe ia aceder a deixar ir uma paroquiana), do lado de fora da porta Regral, se Margarida, onde estava podia responder sem medo e livremente às perguntas que ele iria formular. Estas perguntas são utilizadas de igual modo para a irmã e para todas as que quisessem professar. Prosseguiu. Se se achava comprometida por escrito ou por palavra com alguém e lhe devesse casamento. Se os estatutos, as regras e as cerimónias lhe pareciam bem e se professasse iria ela viver no Mosteiro sempre em clausura e observância dos três votos, a saber: obediência, pobreza e castidade. Respondeu Margarida a tudo de forma satisfatória. O mesmo fez a irmã. Mais tarde, e depois daquela “ formalidade” fez-se uma escritura pública de entrega de dote para professar na valor de 420$000 réis cada. Num dos locutórios do Mosteiro, do lado de dentro, a abadessa como parte aceitante, reunia a comunidade ao som da campa tangida, da parte de fora, o capitão João Borges de Bettencourt, como parte doadora, e perante testemunhas e o Síndico e Procurador Geral, João Caetano Botelho, processou-se todo este ritual. Estávamos no dia 18 de Fevereiro do ano de 1800. O pai não contibui nem esteve presente.

No mesmo dia e de uma só assentada formalizou-se e fez-se a entrega de 840$00 reis para Margarida e Ana poderem professar.

Ainda não eram freiras, mantinham-se noviças até que em cerimónia solene e especial se lhes impunham o véu preto de professas. Perante a família biológica, perante a família paroquial e perante a nova família conventual a ambas foi cortado o cabelo e foi colocado o novo véu, sinal de viuvez do mundo extra- muros. E para acentuar mais a ruptura escolheram novo nome como se fosse um novo baptismo: Margarida Isabel Narciza morreu e nasceu a Madre Margarida Isabel do Apocalipse.  No fim a família conventual levou a sua nova filha e as outras duas presentes e legitimadoras do acto recolheram à paróquia e à rua de S. Sebastião. O seu nome foi riscado do rol de confessados da paróquia.

A despesa com a profissão de uma freira, evidentemente que variava de caso para caso, e neste caso desconfio que não se teria revestido de tanto luxo como o que vem relatado no Arquivo dos Açores a 8 de Setembro de 1720.Vejamos. A noviça que agora se transformava em freira levava dote e enxoval tal qual uma noiva normal, pois, o que não seria senão uma noiva de Cristo?

Para além das propinas distribuídas pela comunidade fazia-se uma boda, contratavam-se músicos para a cerimónia religiosa, compravam-se os vestidos e o véu. Tocavam-se os sinos. As bodas de Ana e de Margarida fizeram-se juntas. No caso que estou a relatar a professanda inclui cama e armário mais espelho tudo em pau preto. Inclui a oferta de oitenta galinhas e mais outras precisões para a boda. Dia de profissão era dia festivo e era dia concorrido. A igreja, tal qual qualquer noivado, engalanava-se às custas e ao gosto “da noiva e da sua família”.

Ao entrarem no convento em procissão, no meio das novas irmãs, Margarida e Ana, não voltaram exactamente as costas (de facto) ao mundo mas passaram-se a reger por regras e leis próprias. A vida conventual seria uma vida na qual a mulher poderia aceder a cargos e a posições que na vida extra-conventual nunca conseguiria pois aí sempre filha e esposa de alguém. Talvez só a viuvez lhe desse oportunidade ou necessidade.

Obedeciam às regras mas estas regras eram elas próprias a garantia dos seus direitos, qualquer freira de véu preto podia eleger e ser eleita, porém, na prática só as “melho-res” ou as mais “hábeis”e “ manobradoras” ou carismáticas o conseguiam.Nos dois pri-meiros anos após professas mantinham um estatuto de quase noviças.

Para entendermos ( ensaiarmos) as clarissas de então não se poderá pensar nas de hoje. Os conceitos de pobreza e de castidade não eram entendidos nem praticados tal como o são hoje. Apesar das regras dizerem o contrário.

Em primeiro lugar, a vida no convento, como vimos, era farta ( e se a compararmos com o exterior, ainda mais o parecerá. ) e as freiras não só levavam um enxoval, como também, no caso de Margarida, recebiam heranças e propinas que não eram considerados bens da comunidade. A tal ponto que, quando Margarida teve de sair, trouxe consigo um confortável pé de meia que lhe proporcionou uma vida estável e sem sobressaltos. Confessa-se no testamento que fora devido ao seu trabalho e à sua muita poupança. Aliás Margarida, a exemplo da irmã Ana, deve ter trabalhado para fora, designadamente, para a igreja Matriz e, se calhar, nesta altura já se fazia algo parecido com aquilo que iria fazer exclaustrada: O Arcano.

Quanto à castidade, não era entendida como hoje. Um viajante inglês que deixou obra escrita descreveu-nos um serão de canto no convento de Jesus, numa altura em que Margarida lá estava professa. Foi acompanhando o padre mestre do convento de S.Francisco onde estava hospedado. Eram cultas, escreveu ele, sabiam várias línguas e, faziam trabalhos em folha de milho e papel, sendo boas cantoras. Conta que quase todas tinham os seus “amantes”, na sua maior parte, platónicos. Algumas passaram mesmo do platónico. fala de uma, Laurino, a mais bonita de todas, a que melhor cantava, sendo voz corrente, apaixonara-se perdidamente por um inglês, sendo o amor correspondido. Fiquemos por aqui que só pretendi ilustrar um ponto. se quisesse reforçá-lo bastaria acrescentar algumas das histórias que registei na recolha de tradição oral a que procedi. Quer a literatura liberal que a literatura oral são unânimes em apontar exemplos pouco edificantes da virtude “castidade”.A ideia de que nada disso acontecia e que tudo isso seria propaganda liberal de pedreiros livres começa a circular na segunda metade ou mesmo no final ou na transição para o século XX. Esta literatura retrata as freiras como modelos de virtude modestas e orantes tomando como padrão a virtude de outra época. O que posso afirmar com certeza e que não eram pobres e tinham bens e que como muito bem.O mundo da vila e o mundo do convento estava mais do que ligado. Por conseguinte não estariam assim tão sequestradas do mundo. Julgar a virtude dos que nos antecederam pelos modelos de virtude dos nossos dias é cometer um grave erro histórico ao qual eu conscientemente não me quero prestar. Havia casos, no que concerne à clausura, em que se faziam excepções. Sobretudo em doenças.

Ou então quando alguém fugia. O normal era a clausura, porém.

Aquele mundo, perto de outro, convivendo com ele, dele precisando para sobreviver, era um refúgio e um refrigério para os males do mundo de então. A lei dos morgadios era uma condicionante. Mas já então, aquele mundo estaria querer desabar. As regras, como se viu, não eram escrupulosamente cumpridas tal como os seus fundadores o pretenderam no século X I I I.Ao longo dos tempos foram sendo adaptadas e corrigidas  uma condicionante. Sobretudo o de pobreza. O Mosteiro de Jesus um dos seis existentes na ilha de São Miguel, possuía terras e outros bens raiz em toda a ilha. Já em 1814 se tentou a nível nacional extinguir as ordens religiosas (Liberalismo e Catolicismo.O problema congracionista (1820-1823) e em 1821 e 1822 também. Anunciava-se já 1832. Para muitas pessoas do reino os conventos eram espaços inúteis.

 

Observações

 

1- Apesar de tudo, continuaram a pertencer a uma família e a uma vila.

Melhor dizendo, “sentiam-se, agiam e pensavam” como ainda tendo muito a ver com o “outro mundo”, ainda que dele se tivessem “simbolicamente” separado.

Assim parece-me que houve adição de mundos ( fora e de dentro) e não subtracção.

Uma coisa era a lei outra seria a prática.

 

2-Era tanto assim que, uma coisa era a lei outra a prática, apesar de se regerem pela primeira regra das Clarissas, no fundo, não o eram.

Mantinha-se, todavia um “núcleo duro”que tolerava uma série de elastecidades circunstanciais e bem fundamentadas à regra. Não eram pobres , por exemplo, porque não poderiam nunca depender da contingência, tal como os homens,(certos conventos é certo) que pediam esmola. Não seria próprio de senhoras. Uma simples circunstância irrefutável mudou um comportamento sem, todavia, mudar o núcleo central da lei.Esta incoerência, sendo tão evidente, constitui um dos cavalos de batalha dos Liberais.

 


 

9- Crise Pessoal

 

 

Tanto quanto consegui, até ao momento, apurar, Margarida nunca veio a ocupar qualquer cargo no Mosteiro de Jesus. As primeiras noticias que dela temos são já de crise. Em 1818 fica só ela e o irmão Teodoro. O tio morrera, a tia, o pai e a mãe. A sua irmã Ana, que professara com ela, que com ela andara ao colo, que com ela aguentara a crise familiar e a adaptação ao convento, morrera. Estava só. Cá fora, para além de Teodoro, só uma prima lhe restava, com quem manteria uma amizade de sobrevivente até falecer muitos anos mais tarde. Ela conhecia bem de perto a morte. Joana de cinco anos, sua irmã, morrera, a avó em 1793 também. No convento o mesmo. O irmão entretanto, casaram, porém, a cunhada faleceria meses apenas após o casamento em circunstâncias trágicas. Viúvo, Teodoro, volta a casar.

A partir do início da década de vinte (1820) detecto os primeiros vestígios ( sinais) documentais da sua doença crónica. São as sangrias,  são os remédios. Margarida permanece retida por largos períodos na sua cama e na cela. ela e a imagem do seu padrinho S.João evangelista. A doença agrava-se. São chamados médicos que lhe prescrevem os mais diversos medicamentos e os mais variados tratamentos. porém, em vez de melhorar, a doença agrava-se. Até que em 1831 ( ou 2?) uma junta médica lhe recomenda unanimemente a saída a banhos nas Caldeiras e a passeios a cavalo e a pé. Diagnosticaram-lhe uma “phlegmazia “ com prostração dos membros inferiores. Penso que, em parte,  ( se tivesse comigo a ficha médica seria mais fácil) são doenças psico-somáticas. Consegue sair, por um ano, ao contrário dos dois ou três que lhe aconselha-ram, sob custódia da sua prima e da cunhada. Não poderia entrar em “taberna”, tinha que andar sempre por caminhos abertos e de dia, sempre com as suas guardiãs.

As circunstâncias da sua profissão e todos os acontecimentos posteriores ( morte de familiares) , desentendimentos familiares mais a sua doença, talvez acrescido da sua maneira introvertida ( suspeito) fizeram dela uma freira diferente das outras.

Algumas acusavam-lhe o facto de não cumprir os deveres, por exemplo, nem todas compreenderam as suas moléstias, assim nem todas deram o seu assentimento à sua saída temporária para tratamento.

Apagada e achacada e sem grandes apoios familiares, Margarida esteve à margem da vida conventual. Em carta inédita de que possuo cópia, escrita muito mais tarde, a julgar pelo tipo de letra, miúda, junta, muito certinha e a julgar pelo Arcano, em si mesmo, pensaria que ela era uma personalidade introvertida, tímida. todavia, paciente e perseverante.Qualidade de artista, mas qualidades que dificilmente a fariam impor entre as 35 irmãs. Suponho que durante as suas longas e constantes permanências na cama, começasse  a fazer algumas figuras iguais ou mesmo já aquelas que viriam a constituir a sua história de Jesus Cristo: O Arcano. Também aí revela a sua tendência para se refugiar no passado.

À sua crise pessoal, ir-se-ia seguir a crise geral e o fim efectivo das ordens religiosas.


8ª fase- A vila como seu Porto Seguro.

10- O Fim de um mundo. ( 17-05-1832)

       Lei da Extinção dos Conventos nas Ilhas.

                  

 

Pouco mais ou menos, 32 anos após a sua entrada no convento aos 17 de Maio de 1832 foi publicado um Decreto que extinguia pura e simplesmente todos os conventos das ilhas de ambos os sexos. Quem quisesse continuar teria de ir para o convento da Esperança em Ponta Delgada. Em Junho o convento já tinha sido desocupado. O rei e a sua comitiva tinham vindo à Ribeira Grande onde foram recebidos com toda a pompa e circunstância . Ao que consta visitara mesmo o Mosteiro. As freiras de S. André de Vila Franca empenharam-se mesmo na causa enviando às tropas mantimentos. Fora a seguir ao desembarque no pesqueiro da Achadinha e à escaramuça da ladeira da velha. Os liberais venceram com facilidade os absolutistas. O irmão que era o vereador mais velho e importante conseguira receber com modos os vencedores.

Em Junho o convento estava desocupado, já o dissemos. Em Outubro de 1833 o cunhado do irmão José Maria da Câmara Vasconcelos arremata os edifícios do antigo Mosteiro incluindo a igreja. Prudentemente a Madre Abadessa distribuíra pelas restantes freiras os rendimentos ( disse ela depois, excedentes, como de costume ) daquele ano e todas as propinas devidas. Ainda em 1835 a Madre Abadessa, já exclaustrada, mas a viver na vila da Ribeira Grande,tal como a maior parte das outras, presta esclarecimentos à Fazenda Pública. Com a ajuda do irmão, da cunhada e da prima, ( o irmão estava bem relacionado e apesar de ter sido uma figura graúda do antes da Ladeira da Velha, continua a ser alguém com alguma influência e sobretudo um valioso contacto, o cunhado, o presidente da Câmara.) reúne tudo o que tem e sai do convento. A porta foi selada. Fez-se um inventário de todos os bens móveis da igreja e do convento e de todos os bens de raiz espalhados pela ilha. O mundo que deixara fora, desabara, e o mundo para onde entrara, ruíra. O que fazer?

José Maria, e os novos vereadores, começaram a montar a nova estrutura político- administrativa concelhia. O Pelourinho foi derrubado como símbolo do absolutismo, as prisões estavam cheias de padres absolutistas e a monte sobretudo para os lados da Tronqueira ainda andava a guerrilha Miguelista.

Havia medo e insegurança. Entretanto a guerra civil só acabaria em 1834.

Era preciso cerrar fileiras enquanto o inimigo não era vencido e era preciso contribuir para o esforço de guerra. Daí a pressa em arrematar os bens conventuais. A elite Micaelense pôs-se quase toda do lado do rei e de Dª Maria. No meio de toda a confusão política nacional a que se assiste e se participa na vila ( Conhecem-se vários Ribeiragrandenses que participaram na expedição ao Mindelo ) morre-lhe em 1835, Teodoro. Já não se podiam os mortes, como dantes nas igrejas, e lá vai o corpo de Teodoro para o novo cemitério. O que fazer? Em 1833 margarida alugara uma casa na rua das Pedras, no ano seguinte, aluga uma casa na rua de João d’Horta, ali ao lado, que pouco depois viria a comprar. O mesmo faria depois em relação a outras duas adjacentes. Doente e decerto “insegura” prefere o abrigo maternal da vila a ir para o convento de Ponta Delgada.

Deve ter estado provisoriamente e por pouco tempo em casa do irmão. Aos 53 anos ainda teria mais 27 para viver, viúva do mundo uma vez  para casar com o convento, enviuvara agora do convento , Madre Margarida sem renegar os votos que proferira, sozinha, vai-se tornar na Sr.ª Madre margarida Isabel do Apocalipse. De figura apagada no convento e pelo seu talento vai-se tornar uma notável da vila. A vila apropriar-se-à  da sua obra e do seu nome apesar de ela continuar a ser recatada e introvertida. Parece que a viuvez lhe fez bem. Sobretudo na década de quarenta. O seu (prestígio) torna-a tão influente ou mais do que qualquer das demais freiras sobreviventes espalhadas pela vila. O arcano trazia uma mensagem que apaziguava as incertezas dos seus concidadãos. No fundo, ao revelar por figuras, as três leis que Deus dera ao mundo, ao modelar a vida de Cristo, de certo modo, Margarida, tocara o coração das pessoas Deus não dorme e Deus é o Pai de todas as coisas. O arcano, para além do valor estético, trazia em si um elemento agregador. Deixarei isso mais para diante. Ela não tinha pai, nem mãe, nem irmão, nem

convento mas continuava a ser a noiva de Cristo e Cristo existia. O facto dele existir (continuar a existir) deu segurança à sua vida.

 

 


 

9ª fase- Viuvez do convento de Jesus.

11-Renascendo de Novo. Durante 28 anos.

 

Já em 1831, logo a seguir ao 2 de Agosto, logo a seguir à “Batalha da Ladeira da Velha”, a cerca de 5 quilómetros a nascente da vila, ainda antes da extinção do seu convento, as coisas tinham começado a mudar inexoravelmente.

Em 1832 uma série de decretos prontamente executados  iniciaram o desmantelamento institucional do regime absolutista. A 17 de Maio saíra o da extinção dos conventos, no dia anterior tinha saido um outro que viria a mudar radicalmente o conteúdo e a estrutura administrativa de todo  o arquipélago.

Os vereadores anteriores são substituídos. O cunhado do irmão Teodoro, José Maria da Câmara  Vasconcelos, de fora da vila, natural  da Bretanha ou de S. António (?), mas descomprometido com o regime anterior, e nomeado em sua substituição. Os funcionários da autarquia são compelidos em acta a assinarem as suas adesões  inequívocas à carta e a D. Maria I I identificadas com  os garantes da “ Liberdade “ ao invés de D. Miguel, símbolo da Tirania . O nome do tirano é riscado de todos os documentos oficiais autárquicos ( que conheço), o pelourinho é derrubado, as enxovias entupidas.  As cadeias, nos baixos do edifício da autarquia regurgitam de presos políticos, tal como já referi, e entre eles, muitos eram religiosos.

A própria estrutura superior Diocesana  foi tocada pelos liberais. A partir do topo, e através de cartas circulares, tenta-se conseguir o apoio  da população católica das ilhas. Tenta-se-lhes explicar que o liberalismo não é anti-católico mas anti-abuso das instituições católicas. A este respeito é eloquente todo o preâmbulo do decreto de extinção dos conventos. O monaquismo actual é entendido como uma perversão do espírito inicial de Cristo e dos primeiros cristãos. Além do mais, sendo instituições não produtivas e que, em si albergaram gente, mulheres e homens, na plena força da sus vida, seria útil resociá-los utilmente, ou melhor resocializá-los de modo  a enriquecer a nação.

Cartas surgem a (vindas da Diocese aderente) incentivar o povo católico a obedecer à carta e a Dª. Maria I I. As coisas ir-se-ão radicalizar, sobretudo no período a seguir à derrota Miguelista no continente em 1834, e, depois progressivamente acalmando, essencialmente, a partir de 1850, ou seja, da denominada Regeneração política. É possível acompanhar todo este percurso através das actas das vereações e das Pastorais e outras cartas diocesanas. Para além de outros documentos . O clima é de insegurança e de instabilidade.Parece que com a morte de Teodoro, em 1835, como já foi referido, Margarida vai reiniciar decididamente a “reconstrução” da sua vida fora do convento.A decisão dela, de se manter freira egressa mas em casa própria, dentro do contexto geral, parece-me ser bastante realista e moderada. Algumas “ irmãs” mais novas até se casaram, poucas deram entrada no convento da Esperança, a maioria fez como ela e permaneceu na vila. Penso ( pelos elementos que disponho) que os gestos conciliadores da ex-abadessa foram exemplares. Colaborou com as novas autoridades mas não esqueceu o bem das suas ex-irmãs exclaustradas, na sua esmagadora maioria espalhadas pela vila. Em 1832 doou, aquando de uma epidemia, medicamentos que pertenciam à antiga botica conventual. Manteve-se como elo de ligação, colaborante, com as Finanças, respondendo a dúvidas e a questões que diziam respeito à gestão conventual. A sua conduta deve ter, pelo exemplo, contribuído para orientar e serenar as suas colegas exclausuradas.

O povo, a julgar pelos indícios que disponho, apesar do anedotário picaresco sobre o convento, sentia simpatia por elas. Ainda há pouco tempo ouvia-se na Ribeira Grande que  José Maria da Câmara Vasconcelos ( já não se lembravam do nome), ou melhor quem comprara o convento e a igreja tivera “má fim”.

Não me parece que haja ou tenha havido grande hostilidade contra as freiras exclaustradas. Elas pertenciam a famílias que ou estavam no lado dos vencedores ou que com eles entretinham boas relações. Veja-se o caso de Madre Margarida, o irmão e o cunhado. Obediência respeitosa, é certo, mas não adesão é o que me parece poder depreender da atitude de Madre Margarida. Obediência tal como tinha sido educada. Ainda por cima era mulher. No fundo parece-me que ela não se teria adaptado bem à vida conventual. a doença crónica dela seria mais psicossomática e talvez provocada pelo ambiente que se vivia intra muros. O exterior veio-lhe dar estabilidade , paradoxalmente.

Do arrendamento avança para a aquisição das casas que haveria de manter até ao final da sua vida. Com as suas poupanças, com o fruto do seu trabalho e com a herança vitalícia, Margarida, continuando a trabalhar constrói “uma casa”.

Faz obras de adaptação, une as três casas e mete, em1850, água canalizada dentro de casa. melhorando importante e raro na época. vive confortavelmente.

Tem duas cartolas de vinho, sacas de milho e de trigo, galinhas e porcos. Coze pão no forno de lenha, faz doces e costura.Da sua dieta faz parte o chá e o café e os licores finos. não descuida a sua higiene e tem uma tina cara para tomar banho. Possui louça fina. E para sair, para a missa e a conselho do médico, dispõe de um capote e de um guarda-sol (todas estas informações são fornecidas pela consulta do Testamento). É dona de uma biblioteca composta por livros devocionais tais como a história biográfica de sua “madrinha”, Santa Margarida de Cortona, livro de salmos, a “Sagrada História do Velho e do Novo Testamento”, e mais alguns outros. Tinha sempre alguém consigo para lhe auxiliar nas suas lides domésticas e demais negócios. Assemelhava-se à sua avó materna que viúva tivera que ser o “Homem da casa”. Aproveitava a passagem dos Adelos ( vendedores ambulantes), à época os “Sebag” apareciam muitos na vila, para mercadejar louças e outros produtos. Não seria aquela pessoa escondida do mundo como nos quiseram fazer crer, uma certa literatura conservadora já no século XIX. Creio que por certo espírito preconceituoso e anacrónico. Margarida,Madre Margarida, pelo feitio e por hábito e , se calhar também pela promessa que fizera, e até por dever de mulher honesta, cultivava uma certa distância do mundo. Em carta de1850 (?) dirigida à sua sobrinha ela confessa que prezava a sua intimidade e que no fundo, não teria obrigação, antes pelo contrário, de privar exageradamente com o mundo. Porém, pelo muito afluxo de visitantes ao seu Arcano ela havia perdido “ o gosto pela solidão”. Em todo o caso presumo que preferisse o contrário, ela confessa nunca fechar a porta a quem quer que a visitasse. Ainda obediência e educação mas também um orgulho de criadora. era tanto assim que para tentar ( o que não veio a conseguir) completar o Arcano ela teve de publicar um aviso no “ Açoriano Oriental”a pedir que a não visitassem. No fundo, surge-nos, uma pessoa que gostava de manter um pequeno círculo de visitas e evitavão grande número de pessoas mas que gostava igualmente de mostrar a sua obra. Era inevitável o desfecho.

Ao fazer testamento, madre margarida, dá conta dos seus panos de mais variado linho. Era tanta a quantidade que decerto serviria para outra coisa para além do uso pessoal ou de simples investimento tal como se poderia fazer com ouro e jóias. Se calhar era para negociar? Não encontrei qualquer referência à existência de tear na sua casa, mas encontrei referência a dezenas de “tecelões e tecedeiras” a exercer a sua actividade artesanal familiar na mesma rua de João d’Horta e outras circunvizinhas. Aproveitaria ela o grande afluxo de visitantes para negociar aqueles panos que ela encomendaria às vizinhas? De que é que ela faria dinheiro? Não se pense que esta actividade fosse considerada invulgar para um religioso.O pai, era ela ainda uma criança, e, sendo almotacé, fora chamado a depor contra um padre que negociava pano contrabandeado e que o mantinha escondido, pasme-se, no Mosteiro de Jesus, onde mais tarde ela iria professar.

A carta a que já me referi, enviada à sobrinha, que lhe enviar uma lembrança mas que ainda não lhe dera a quantia que lhe era devido por testamento da mãe, mostra-nos uma mulher subtil e inteligente, senhora “ segura da sua vida”.Depois todo o testamento, Rol,Codicílo e processo para aquisição do altar onde iria colocar S. João Evangelista, dá-nos o perfil de uma mulher com um profundo conhecimento da alma humana e com imenso tacto para o negócio.

Morava a escassos cem metros da igreja Matriz, o seu quarto de cama estava virado para a igreja e o balcão, logo á saída da sua cozinha, abria-se para a baía da Ribeira Grande. Estava perto o mar, tal como estivera na sua casa da rua de S. Francisco onde respirava o ar salgado do areal. no convento, à noite, em certas noites, ouvia o mar rolar nas pedras junto às poças onde os lapeiros apanhavam mariscos.

A pouco mais de cem metros ficava a praça do município envolvida nos largos da Misericórdia e da fonte Grande do outro lado da ribeira.

A botica e o hospital ainda permaneceriam por mais algum tempo na rua do Espírito Santo mas ir-se-iam transferir par o convento dos frades junto à sua primeira casa. Convento onde estivera o tio e onde a avó estava sepultada.

Conseguia carne fresca e pescado na praça onde havia o açougue junto à Câmara e o barracão do outro lado da ribeira e defronte da casa da prima Umbelina.(morava na rua do Espírito Santo)

A praça estava a sofrer grandes modificações. Uns anos antes de falecer ela dera lugar a um jardim mudando-se então a praça para a cascata, mesmo na base da colina da igreja Matriz, do lado da porta principal. Ficara ainda mais perto da sua casa.

A vila mudara desde que saíra da rua de S.Francisco. É certo que ainda lá estavam as três ou quatro casas altares e sobradadas que tinham sido construídas na rua direita, era ela ainda uma criança. Todas tinham a data gravada. O lintel das vergas das janelas era já contracurvado pois era uma moda diferente daquela casa da avó e de sua mãe. Duas delas tinham rés-do-chão e dois andares, enormes. No tempo não havia mais nada tão alto na vila, só pouco depois se fez o arco e a torre da Câmara. Também antes de ela entrar para o convento, a St Casa da Misericórdia mandara todos os cinco passos quaresmais.Dois eram na rua direita, um defronte da igreja da Conceição, outro perto da casa do tio e padrinho. Um outro ao lado da prima Umbelina, na rua do Espírito Santo, ainda outro, no rosário e um quinto ao lado da Casa do Oratório perto do convento onde professara. Do coro alto viam toda a procissão. A igreja da Misericórdia, ou dos Passos ou do Espírito Santo, os pais ainda se lembravam de a ver ser construída e os avós lembravam-se, da igreja Matriz antes da actual. A avó Joana ouvira o pai falar da construção da igreja da Conceição e do solar de São Vicente Ferreira, onde morava gente “ sua parente”.

A imagem do Senhor dos Passos fora enfeitada por elas no convento quando viera de Lisboa e, por, tradição todos os anos. O sermão da Portada era lá e lá permanecia a imagem de N. Sª da Aflição de um dia para o outro.

Na antiga praça, há pouco tempo atrás, tinham construído uma casa alta de sobrado. Já era diferente no estilo das outras anteriores. A praça mudara imenso. A Misericórdia tinha uma torre e um largo no qual havia, diziam os antigos um celeiro e um “triatro do Espírito Santo”.

Agora era freguesia da paróquia de N. Sr.ª da Estrela, igreja da Matriz, onde havia algumas imagens e mesmo talha de altares que tinham pertencido ao seu convento. A cruz de Cristo com cinco palmos estava lá. A Matriz tinha sido a depositária dos bens móveis religiosos da igreja conventual. Parte ficaria lá e outra parte fora distribuída pelas igrejas mais carenciadas. A Ribeira Seca, por exemplo e a da Maia, beneficiaram, entre outras.

Em criança frequentara a igreja de N.S.ª da Conceição onde fora baptizada. Lembrava-se distintamente das suas sessões colectivas de catequese antes do início da missa em que o senhor padre ia rezando orações e toda a comunidade velhos e novos, homens e mulheres, de todas as situações, respondiam. Havia gente que nem se sabia persignar e muita gente não pagava o dízimo nem ia à missa nos dias Santos e dos santificados. Alguns moravam longe.

Os padres bradavam e berravam a plenos pulmões contra essa dissolução. Mais tarde no mosteiro continuara a ouvir o que sempre ouvira na paróquia e em casa. Os padres nas igrejas sabiam do que ia acontecendo de mal no mundo e iam instruindo o rebanho para que ele fosse diferente deles, deles  ímpios, deles que não temiam a Deus e que por isso seriam castigados por Deus. Quanto maior fosse o caos exterior maiores seriam os perigos e por conseguinte as admoestações. A revolução Francesa teria sido alvo de muitas homilias. Assim se formava o espírito de grupo, grupo a que ela iria pertencer pela vida fora. Aquela tinha sido sempre a sua Universidade. Aprendera que nós, eram os católicos e, eles, os outros, os que não eram. Esta era a sua primeira identidade. Mas o nós era muito mais subtil do que aquele nós, pois o nós era o grupo social a que pertencia. O grupo e o local onde ele vivia.

Ler as pastorais da época é abrir o caminho ao pensamento de Me. Margarida concretizado no Arcano. É o que temos vindo a fazer. Igualmente ler os livros que ela presumivelmente leu.

Um tremendo choque para toda a Cristandade Católica foi, sem dúvida, o desterro do “ Santo Padre Pio I X.” Acabara-se-lhe a família consanguínea, a família conventual também, acabar-se-lhe-ia agora a própria Comunidade Católica?

De Janeiro de 1848 a Julho de 1850 toda a paróquia ficou suspensa. De vitimador

acusado  o Papa transformara-se em vítima e em herói.

As pastorais, e as homilias certamente, deste período, retratam, a linguagem de cruzada, uma igreja, um papa e uma cristandade militante e interventora que Me. Margarida deixa transparecer no seu Arcano Místico. Ela tem um quadro intitulado “ Igreja Militante”e outro “ Igreja Triunfante”, por exemplo. São publicadas, por esta altura as “Santas Cruzadas” com o Santo jubileu com direito a indulgências plenárias.

Era a mobilização de toda a catolicidade. A década de quarenta e de cinquenta em Portugal, em particular, e, porque é desta área que tratamos, parece marcar uma época de “reafirmação de valores cautelosa e prudentemente” mantidos. Agora é a fase da militância, da resposta.

Se o ministério de António Feliciano de Castilho, tal como referi em trabalho que apresentei para o professor Yanes Casal, teria constituído um impulso que acelaria a criação do arcano místico ( directa ou indirectamente, entendamo-nos.), em contrapartida, a “ideologia do arcano” muito deveria ao clima mental veiculado pelas pastorais. Não se deve, por outro lado, desprezar a própria índole conservadora do “ultra romantismo” Castiliano e da componente social local também conservadora. Estava-se no período que iria conduzir à “Regeneração política do reino”. Seria bom fazer investigação sobre o que acabei de afirmar não sem prudência de colocar algumas reticências.

Na década de quarenta, 1848 (?), ocorrera um grave terramoto que destruíra por completo a vila da Praia, na ilha Terceira e a Várzea na ponta noroeste da ilha de S. Miguel. A própria igreja Matriz sofrera alguns danos materiais. Surge logo uma pastoral do bispo a explicar o fenómeno pelo desagrado divino face à falsa “Liberdade” que, no seu prudente entender, por ser falsa deveria, ser “licença”. O regresso do papa exilado a Roma em 1850 foi interpretado como sendo de intervenção Divina. Veladamente a catolicidade avisava os “Liberais” radicais (1848-Ano das grandes Revoluções Europeias), primeiro, e, agora, fazia-o explicitamente de que Deusa interviria para proteger o seu povo. O arcano também reflecte esta ideia. O Papa reforçado, em 1854, contra toda qualquer veleidade de liberalização institucional da igreja, decreta, depois de ter obtido a maioria simples, o dogma da Imaculada Conceição. Entre uma igreja liberal e uma igreja absolutista vencia esta última ao contrário do que acontecera no país. Se Me. Margarida “obedeceu” como lhe competia à nova ordem liberal, nunca “desobedeceu” à ordem Católica tradicional apesar de ter obedecido também à ordem “católica liberal” que, na cúpula, se pretendeu, pelo menos durante os primeiros anos das lutas liberais. Ela não era só uma “cristã velha” pelo sangue mas pela cultura. O seu catolicismo era tridentino e o arcano reflecte isso mesmo.

Mais de metade dos quadros do Arcano Místico referem-se a episódios do Antigo Testamento. Por aqui já se poderia, sem mais, concluir a sua adesão a Trento. A temática e o tom, ou seja a ideologia, contida nessas pastorais, influenciaram, decerto, a concepção final do Arcano.Este é o período mais criativo do Arcano e também o período da sua consagração pública. Quer isto dizer igualmente que a comunidade comunga da mesma “ideologia” da autora? Creio que dificilmente se provará. A aceitação do Arcano dever-se-á em parte ao facto da sua mensagem “religiosa Tridentina” ser “apetecível” à comunidade. Intencionalmente ou não o Arcano é uma obra didáctica inserida no seu tempo e num determinado quadro mental que acima esboçamos. Ela própria diz que a sua intenção é ensinar por pequenas figuras as principais leis que Deus deu ao mundo para que todos pudessem cumpri-las. Tal como nas pastorais e no “antigo regime”absolutista, Deus era rei absoluto, Deus era guerreiro temível e vingador, Deus vivia em magnificência envolto na contemplação do seu povo e de toda a sua faustosa corte de anjos e de Arcanjos e de Santos. Tal um monarca absoluto. não era um deus liberal nem sequer um monarca constitucional. Além do mais sendo Deus o Rei dos Reis e o chefe ele seria muito mais poderoso do que tudo o mais. se ele já intervira para repor o Santo Padre, poderia a qualquer momento intervir para “aliviar o seu povo”.

não irei debruçar-me mais sobre a apropriação da obra pela comunidade como obra “de orgulho” (já não só de catequese) pois já me referi a este aspecto no semestre anterior.

 

Observações

 

1- Madre Margarida Isabel do Apocalipse quando sai do Mosteiro, no pós Ladeira Velha e no pós Decreto Lei de 17 de Maio de 1832 parece pretender preservar a sua “diferença”perante um novo modelo revolucionário através do anonimato tanto quanto possível, discretamente.

Quando passou a revelar-se”conforme” os outros porque nela viram o seu “ conforme”,a comunidade torna-a e à sua obra “visível”.a comunidade ameaçada pelos novos modelos adopta e revê-se no modelo tridentino exposto no Arcano? Aí entrou a legitimação desta identidade pelos outros concidadãos num mecanismo de “círculos irradiantes.”

 

2- O catolicismo de Trento não era o mesmo de Latrão nem o de Trento de 1560’s seria o mesmo de 1700 e 1800. Em 1563 havia a circunstância da Reforma e da contra-Reforma, em 1800 a Revolução Francesa e aí por diante. Todavia o âmago de  Trento permanecerá, ousaria dizer, até ao Vaticano I I. Daí que me possa talvez reclamar desta herança, ou daquele quadro mental?.

 

3- Como já atrás disse, repito que a “estrutura dorsal do Arcano”deve muito à “estrutura” de celebração anual da biografia Jesuína. Este ponto parece-me importante.


 

12- A Preparação para a Vida Eterna. Os preparativos meticulosos da viagem. A extrema Unção: o último dos sacramentos: o sacramento da partida.

 

No ponto anterior falei do renascimento, e, quase imprevistamente surgiu-me 1849 como mais uma ferida profunda (refiro-me ao desterro do Santo Padre pio IX) todavia, a ferida sendo profunda não conseguiu ser mortal. Para o povo católico a reposição de Pio IX demonstrou como já se disse repetidamente, a presença interessada de Deus nos acontecimentos do Mundo. Deus ouvira as súplicas dos seus filhos tal como no tempo de Israel. Pio IX saiu tão reforçado no seu “poder divinizado” que impôs ainda que em contestação  (como já igualmente dissemos) o “ Dogma da Imaculada Conceição”. O Papa definia-se como tradicionalista. Madre Margarida tem outro quadro sobre aquele dogma. Aliais. Aliais tem vários sobre “ elementos tradicionais da igreja popular” ,a saber: o casamento de S. Joaquim, entre outros.

Depois de tudo o que acontecera a Madre esta “consonância” entre o seu presente e o seu passado levou-a a estar optimista quanto à sua vida futura, a vida eterna a vida para além da vida presente. O pior já tinha passado. Madre Margarida declara-se e orgulhosamente na abertura do seu testamento que era “cristã velha” e que na fé católica protesta viver e alcançar o além através da salvação da sua alma. O testamento, como ela sabia dos avós da mãe e de outros, tal como o de seu tio Caetano, era um instrumento imprescindível e importante à salvação. com ele se fazia contas à vida presente e se lançava pontes eternas para a vida eterna. Não era, pois, um mero rol de teres e haveres materiais era muito mais. Fazê-lo era já iniciar a viagem sem retorno.

Meticulosa e conscienciosa, começou a fazê-lo ainda duraria mais quatro anos, apenas sentindo alguns sintomas de doença. Todas as viagens devem ser preparadas com cuidado. por um lado dialogava com os seus conterrâneos, por outro, dialogava já com o além. Tratava dos negócios desta vida dispondo dos seus teres e haveres em função da vida do além, a única que valeria a pena viver e para a qual ela dedicara toda a sua vida e toda a sua fé. Às vezes reticente como qualquer pessoa, mesmo que só seja detectável, no seu caso, pela insistência e pela “insegurança” implícita.

Mas não bastava ter fé nem bastava tão pouco ter praticado o bem e ter sido justa era preciso que Deus lhe desse a Graça da Salvação .Para tal era necessário recorrer à intercessão de N.S.ª mãe de Jesus, de todos os Santos e anjos e sobretudo do seu padrinho S. João Evangelista, apóstolo dilecto de Cristo. As coisas devem ser feitas segundo regras, um ritual, se quiser ser eficaz, como em todo o mais. Se o ritual não for bem feito o resto poderá ficar comprometido.

Começa por prestar as contas da vida presente recorrendo a missas especiais, em caso de dúvida, ou pedindo a quem duvidasse que lhe apresentasse provas. Só por escrito e pelo seu próprio punho de outro modo Margarida não as aceitaria como válidas.

O mundo em que ainda vivia e aquele para onde se preparava para ir era um só. As almas dos já partidos poderiam andar entre os que ainda não tinham partido. Faziam-no para reclamar coisas dos vivos. Isto estava subentendido na sua tentativa de institucionalizar a festa de S. João como adiante veremos. Recentemente um freguês da Matriz disseram que no dia que ele fosse enterrado no novo cemitério caísse o tecto da capela-mor. E caiu como está registado no livro do Tombo da mesma. Quanto ao coval ser no cemitério ou não ser não se preocupou(aparentemente). Algumas antigas colegas suas do Mosteiro tinham até, há tempos, comprado coval. Iria vestida com o hábito da sua ordem.

Recordava-se, sempre que pensava no convívio do além e do aquém, de umas histórias de epidemias que a mãe lhe contava. Em 1770, estava a mãe casada há poucos anos, e mais tarde outras já ela era nascida, a epidemia era tanta e tão grave que a vereação de então obrigou todos durante três noites a queimarem louro no lado de fora das portas. Os gados foram reunidos na praça e andaram a percorrer todas as ruas dos “bairros” da vila. Como nada disso surtiu efeito a igreja promoveu também durante três dias procissões penitenciais (tudo isso em janeiro) às ermidas da Mãe de Deus, de N. Sr.ª da Saúde  e do Bom Sucesso. Note-se que o número e os atributos de cada entidade invocada eram essenciais à cura, ao êxito. Tal como disse, repito, no trabalho curricular do Prof. Yanes Casal, a linguagem de então tinha uma carga simbólica racionalizável ( tinha de ser para ser entendida ) mas cujo fundo não era a razão como Descartes e outros a entenderam e praticaram. O “léxico desta simbologia”, veja-se a fachada do Sr dos Passos, por exemplo, foi-se alterando a tal ponto que hoje, para nós se torna muda quando de facto, ela falava e bradava.

Para entender (tentar) a mentalidade daquele período é preciso recuperar “ o significado do símbolo” no seu contexto epocal e, para tal, escolhi a iconografia.

Toda a gente, de então sabia que a causa do infortúnio de José Maria da Câmara de Vasconcelos, tinha sido o facto de ele ter comprado o Mosteiro de Jesus. Margarida poderia estar descansada quanto à existência do além e quanto à sua intervenção ao ponto de, caso não se cumprisse o que iria estipular no testamento, os prevaricadores serem “castigados”. Bastaria tão só fazer as coisas como deveriam ser feitas. Toda a gente sentia o peso “insustentável” do além.

Os crentes, ou seja a esmagadora maioria.

As festas instituídas na ilha sempre tinha existido e serviam de ponte permanente entre o instituidor e os mundos ( visível e invisível). A mais famosa era a do St Cristo dos Milagres que tinha sido da iniciativa de Madre Teresa da Anunciada com a preciosíssima ajuda da condessa da Ribeira Grande levara a bom porto o culto do STº Cristo dos Milagres, imagem milagrosa, tal como a sua de S. João o era. Madre Teresa fizera-o no convento da Esperança em Ponta Delgada. Instituir uma festa estava pois nos seus propósitos.  A partir de 1854, altura em que preparava a viagem para o além, subalterniza a conclusão do Arcano e concentra-se na aquisição do altar e na festa de S. João Evangelista.

As confrarias e as irmandades eram as instituições a quem habitualmente era confiada a execução das festas. É certo que o St Cristo se fazia no convento mas na Ribeira Grande, sem conventos, pareceu-lhe mais prudente “confiar” prudentemente na Confraria do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz. Prudentemente, pois, sabendo do seu interesse pelo “Arcano” só o doou ( e mesmo depois de ter já doado as casas) quando o S. João já se encontrava no altar ao lado do Santíssimo.

Enquanto o mundo fosse mundo a Confraria em troca faria todos os anos a festa de S. João em 27 de Dezembro ou no dia de 6 de Maio, dias importantes na biografia de S. João Evangelista, e manteria uma luz de azeite doce, dia e noite.

A intercessão do seu padrinho era-lhe vital e o seu culto eterno manteria aceso o seu interesse por si até ao fim do mundo. Subentenda-se que, e o testamento tem isso subentendido, caso não o fizessem mais do que as justiças terrenas, as divinas encarregar-se-iam, tal como sempre, de intervir. Dariam primeiro um sinal para depois, caso não houvesse emenda, então porem ordem.

A transferência da imagem para a igreja, para o então altar da família do Morgado Corte Real, aliás Morgado Gago da Câmara, fizera-se solenemente em procissão e fora relatada eloquentemente pelo seu vizinho “Estrella Oriental” aberto havia dois anos. Aliás, algumas legendas tinham sido feitas naquela tipografia, se não lhe falhava a memória. Só a festa legitimava o acontecimento e para isso a comunidade tinha, como sempre, que estar presente. Tinha sido assim desde o baptismo e sê-lo-ia até no dia do seu enterro. O altar tinha sido, ao que suspeito, retocado pelo entalhador Araújo Lima (famoso entalhador local), aliás, fora ele que fizera o móvel do Arcano e que mais tarde o iria transferir para o coro alto, onde ainda se encontra hoje.

Aliás há quem diga que sendo ela “jeitosa” decerto seria a sua opinião requisitada várias vezes. è capaz. Demorou tudo isso uns quatro anos. Estaria tudo conforme os ritos e o costume.

Não descorou os pormenores da Festa de despedida do corpo presente e esmerou-se, tal como fizera a mãe e toda a família, a descrever quem e como a acompanhariam. Nada poderia ser esquecido ou deixado ao acaso. Nota-se-lhe em tudo isso o nervosismo (nunca o pânico) de qualquer viagem. Ela tem a certeza do seu destino. Daí a sua incessante preocupação com a festa de S. João e com a festa da sua despedida. Mais de três quartos do Testamento (não direi mais mas pelo menos perto dos três quartos ), Rol e Codicilo tratam destes preparativos. Haveria se calhar um dúvida (por mais ténue que fosse) na existência do além apesar de tudo? Apesar de todos os sinais da sua presença seria sempre um salto não totalmente transparente.

Aproximando-se a morte, sentindo-a vir e vendo-a avir como no-la descreviam, é-lhe dada a “ extrema Unção” que a prepararia para a difícil travessia entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Assim preparada estaria a salvo de qualquer tentação ou de rapto pelo Supremo tentador. estava no seu quarto voltada para a sua igreja, para o lado do seu antigo convento, para o lado da sua casa de infância a poente da vila, iria encontrar os seus, ia descansada. ainda por cima era o dia 6, dia do seu glorioso padrinho São João Evangelista. Estava um lindo dia para viajar, a viagem iria ser boa. No quarto estavam os seus primos, o padre e as raparigas que lhe serviam. Havia círios acesos. As janelas e as cortinas iam ser corridas em sinal de luto. Lá fora a procissão do Santo Viático. Estava tudo certo, iria dar tudo certo. Era um mulher sábia. Fechou os olhos tinha 79 anos, morrera no dia do seu padrinho. Fecharam as janelas e correram as cortinas. Chegara a sua hora. Lançaram-lhe água num galho de alecrim para afastar o demónio.

 

 


 

 

13- A morte do corpo.6-05-1858

 Dia do Padrinho S. João-Extrema Unção.

 

No dia em que expirou Madre Margarida, Madre Margarida continuou a viver quer se acredite no que ela acreditava quer não se acredite. Prova disso é que ela e a sua obra ainda estão connosco, na Ribeira Grande, ilha de S. Miguel.

O cortejo com os colégios das três paróquias acompanhado por muito povo e conhecidos encaminhou-se para a Matriz. O corpo de Margarida no caixão assistiu às exéquias. Todo aquele colorido estava certo como também o ritual. A caminho do cemitério, a nascente da vila, a vila observava e legitimava esta viagem, a última. Baixou o caixão ao coval, hoje anónimo, mas se calhar perto do irmão Teodoro, do cemitério de N. Sr ª da Estrela. O Norte  não era um lado bom mas lá estava Nossa Senhora da Estrela para a proteger.

A festa de S.João Evangelista continuou, com alguns percalços iniciais, até acabar no período da primeira República. À desvalorização da moeda, à subalternização e perda de importância da Confraria do Santíssimo Sacramento, seguiu-se a pouco e pouco o estrangulamento da festa. o dia 27 de Dezembro também não deve ter ajudado.

O Arcano Místico que ela não ligara tanto, no final da vida, como à festa de São Evangelista, paradoxalmente, vicejou e aguentou, ainda que com alguns abandonos e esquecimentos notáveis.

 

 

 

Mário Fernando Oliveira Moura

Agualva-Cacém, 1 de Maio de 1994

 

P.S. Transcrevo:

 

“..., a 27 de Dezembro de 1774, festa maçónica de S. João Evangelista ou do solstício de Inverno.“ Expresso. Caderno Vida página 7 “o primeiro maçon” assinado F.G. / 14-05-94 ( o nosso sublinhado ) (?)

 

P.S. 1- Margarida negociou a capela de S. João com o Morgado Gil Gago da Câmara. (correcção)


 

Epílogo

 

Tentei encontrar no tempo de Margarida uma estrutura que me permitisse interpretar a sua vida e a sua obra no contexto preciso da vila, da família e da igreja tanto paroquial como conventual.

Tentei igualmente experimentar este modelo e para tal escrevi, sem grandes preocupações de estilo ou de “dados concretos ao segundo” recorrendo à linguagem coloquial que me parece própria e próxima da evocação.

Recorri a mim mesmo como (ao do outro dentro de mim) produto ainda Tridentino e herdeiro do espaço e da história de Madre Margarida para poder penetrar mais fundo no seu pensamento. Tive de me sentir mulher para tentar perceber.

A experiência da morte colhi-a, por seu turno da morte da minha avó. Da experiência da vida num “espaço fechado” colhi-a no ano que sobrevivi no Seminário Colégio de Santo Cristo em Ponta Delgada.

É um acto de auto- conhecimento que iniciei consciente e deliberadamente em 1983 com o início da recolha de Tradição Oral.

Mas que me levou a estudar esta freira clarissa foi, se calhar uma curiosidade que tenho transportado desde os “casos” no moinho da Ponte Nova e no Adro das Freiras.

Seriam todas santas ou seriam umas inúteis, como ouvira?

Mais tarde tive de a estudar, aí aliei a curiosidade infantil à necessidade adulta, confesso que me sinto tão infantil como outrora. Tem sido um bom exercício e humildade ouvir e tolerar os outros. Para isso tem sido necessário” trazê-los “ a mim.

Tenho imensas dúvidas acerca dos resultados e, sobretudo da validade dos mesmos, assim no fim de cada grupo (alguns grupos) anotei dúvidas ou meias certezas ou incertezas que gostaria de partilhar com quem tivesse paciência.

Tudo isso destina-se a musealizar, a vida e a obra de uma freira Clarissa denominada Madre Margarida Isabel do Apocalipse.

Experimentei mas sinto que preciso de proceder a diversas afinações. Todavia partirei daqui para elaborar um dos capítulos propostos para a minha dissertação final.

 

 

 

Mário Moura

 


 

 

Tábua Cronológica

 

1779-(23-02)- Nascimento de Margarida.

 

1779- Março- Baptismo de Margarida.

 

1800- Fevereiro- Entrega de dote para professar no Mosteiro de Jesus de freiras clarissas.

 

1800- Separação dos pais.

 

1817- Morte do pai.

 

1819-Morte da mãe.

 

1820- primeiros sinais documentados da sua crónica.

 

1831- Exclaustração Temporária.

 

1832-Exclaustração definitiva.

 

1833- Aluguer da casa na rua de Sousa e Silva (ou rua das Pedras).

 

1835- Compra de 3 casas. Morte de Teodoro.

 

!840-´s -Período de grande criatividade do Arcano.

 

1854-Testamento.

 

1856- Festa de S. João- Altar na igreja- Rol e Codicilo.

 

1858- Morte a 6 de Maio.


 

Índice

1ª fase exclusivamente feminina

1.   Nascendo

1.1 Preparando o nascimento biológico: o sair do ventre da mãe

 

    fase exclusivamente familiar

2.1 Nascimento biológico: 23-02-1779

 

       fase-família cristã e paroquial

3.1.    Nascimento Espiritual:

          Baptizado-10/03/1779

 

4ª fase - Aprendizagem de códigos e símbolos

             A ordem social e histórica.

4 .    Crescendo

 

4.1.Socialização primária da Cidadania Católica: O que é ser-se mulher em geral e uma Botelho Sampaio em particular.

 

4.1.1.A transmissão da memória nos espaços da Família, da Igreja ( paroquial e con-ventual ) e da Vila.

 

5ª fase. Fase dupla: Comunhão e Confirmação

5- Cidadania Católica paroquial de pleno direito. Acesso à Confissão e à Comunhão do Corpo e do Sangue de Cristo e à Confirmação.

Rituais bem preparados?

 

 Crise Familiar- a eminência da desagregação.

Crise

 

Morrendo

 

6- (Re) Socialização: O que é ser freira clarissa no Convento de Jesus. Ela e a irmã.

 

6ª fase- A preparação e a Morte para o mundo

6- Renascendo

Ritual do Ingresso.

Renascimento.

Noivado com Cristo.

Morte para uma comunidade e renascimento para outra- 1800.

 

7. Crise Pessoal

 

8ª fase- A vila como seu Porto Seguro.

8- O Fim de um mundo. ( 17-05-1832)

     Lei da Extinção dos Conventos nas Ilhas.

    

 

 

9ª fase- Viuvez do convento de Jesus.

9-Renascendo de Novo. Durante 28 anos.

 

10- A Preparação para a Vida Eterna. Os preparativos meticulosos da viagem. A extrema Unção: o último dos sacramentos: o sacramento da partida.

 

11- A morte do corpo.6-05-1858

 Dia do Padrinho S. João- Extrema Unção

 

Epílogo

 

Tábua Cronológica


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