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Ribeira Grande: Limites - XI

 

Que tinha o porto de Santa Iria a ver com o porto de Ponta Delgada? 11 – C

Haveria ou não algo que ligasse aqueles dois portos? Acho que havia. As duas vilas haviam estado juntas na retirada da Alfândega de Vila Franca. O poder transferira-se para aquela área. Partilhavam a área mais rica e acessível da Ilha. Pelo interior. E por mar? Possivelmente, como recompensa ao apoio à mudança da Alfândega, é possível que a Ribeira Grande, entenda-se por isso alguns poderosos da governança, recebessem um tratamento preferencial no porto de Ponta Delgada. Seriam atendidos em primeiro lugar, por exemplo. Seria o caso dos trigos de Pedro Rodrigues da Câmara? É também possível que tenham conseguido obter outra recompensa. Sempre que desse jeito ou fosse necessário, poderiam utilizar ‘legalmente’ o porto de Santa Iria. A construção da ponte de pedra junto à praça da Ribeira Grande (a partir de 1520) e a melhoria do acesso ao porto de Santa Iria (1525), facilitaram a circulação de bens da Ribeira Grande para Ponta Delgada e de Ponta Delgada para a Ribeira Grande. Assim, apesar das saídas e entradas se realizarem (pelo que se sabe) ‘principalmente’ pelo porto de Ponta Delgada, que dispunha de Alfândega e seria o porto mais bem equipado da ilha, é provável que, ocasionalmente, o porto de Santa Iria (e qualquer outro à volta da Ilha), sem Alfândega e mal equipado, tenha servido de porta de entrada e de saída às produções agrícolas da Ribeira Grande ou que a ela chegavam vindas (por mar ou por terra) de áreas produtoras da Costa Norte. Em caso de tempestade no mar do Sul da Ilha, havia-as tanto como no do Norte, Santa Iria poderia servir de alternativa a Norte a qualquer porto do Sul. E serviu de certeza. No entanto, ficando a sede da Alfândega da ilha em Ponta Delgada, como se controlariam as entradas e saídas pelo porto de Santa Iria? Quando necessário, alguém indicado pela Alfândega de Ponta Delgada deslocava-se a Santa Iria? Quem queira, porventura, inteirar-se melhor deste meu ponto de vista, poderá ler o que publiquei recentemente sobre o assunto.[1]

Que opinião tinha Frutuoso do porto da sua Vila natal? Excelente. Ponta Delgada ‘tem bom e espaçoso carregadouro.’ Repete-o em outra passagem: ‘O porto dela é de boa ancoragem (…) e muito bom.’ Louvores à parte, mandava a verdade, avisava: ‘a costa [é] brava, e não rio.’ No entanto, caso fossem tomadas as devidas precauções, muito pouco haveria a temer: ‘não correm os navios perigo, se não se descuidam, porque, quando faz vento que para estar nele lhes é contrário, com se fazerem à vela se asseguram.’[2]  

Para onde iam os navios abrigar-se da tempestade? Frutuoso não o diz, mas di-lo Supico no século XIX: ‘o lado norte da Ilha, e por lá pairavam enquanto pelo sul não serenavam as tempestades (…).’[3] Em 1943 (talvez ainda em 1958), Manuel Maria Sarmento Rodrigues, almirante da Marinha de Guerra Portuguesa, administrador colonial e professor de grande nomeada, estudou os ancoradouros da Ilha de São (e das demais ilhas dos Açores), diz assim: A costa Norte protege de todos os ventos do sul. Um bom local para um navio se acoitar é a Baía de Santa Iria, logo para leste do Morro Grande.’ [4] Voltando a Frutuoso e ao século XVI. À época, para se conseguir um porto de Ponta Delgada mais seguro, houve que investir muitos recursos: dinheiro e trabalho. Não nos diz quanto foi investido em melhoramentos do porto, apenas nos diz que ‘com dois custosos e fortes cais, que servem de muro, e um deles de despejos de mercadorias com que se reparte em dois.’  Quem pagou os dois custosos e fortes cais? O Rei? Só? Ponta Delgada? E as outras Vilas da Ilha contribuíram?

Fosse quem fosse quem tivesse contribuído, as obras dos cais não foram ainda suficientes para o tornar mais seguro. Foi necessário uma difícil (sobretudo atendendo aos meios técnicos de então) intervenção nos fundos da baía do porto: ‘se quebrou debaixo de água uma pedra de rocha, que estava no meio dele, com que dantes perigavam os navios, ao entrar.’ Havendo-se recorrido a ‘gatos e grandes torquezes e tesouras de ferro, e com jangadas de pipas e madeira.’[5] Ora, dispondo da Alfândega, havendo beneficiado das obras que referimos, aquele ‘porto’ era, continuamos com Frutuoso, ‘sempre frequentado de muitos navios, principalmente no Verão, que trazem muitas mercadorias de vários Reinos de fora e levam as da terra, além de outros que de diversas partes passam por ele, de caminho.’[6]

A que época dirá respeito o porto de Ponta Delgada descrito por Frutuoso? Ao certo não sabemos, ainda assim, dever de Historiador, arriscamos uma hipótese: talvez diga respeito à década de setenta ou à de oitenta, altura em que se admite que o cronista possa estar a trabalhar nas Saudades da Terra. Assim sendo, aquele porto não poderá ser o que recebeu ‘oficialmente’ em 1518 a Alfândega da Ilha. E o porto da Ribeira Grande em Santa Iria? A que período dirá respeito a descrição de Frutuoso? Aqui vai outra hipótese: depois de 1522. Porquê? Porque Frutuoso nos diz que a Ribeira Grande ‘se serve do porto da vila da Alagoa.’ Se este porto foi disponibilizado à Ribeira Grande por sentença de D. João III e monarca este começa a reinar em 1521, então só pode ser de pois de 1521. Há autores que apontam a década de trinta, porém, apesar de tentar na Torre do Tombo (via electrónica) não consegui encontrar a dita sentença/alvará do Rei.

O que diz Frutuoso do porto da sua terra de adopção? Santa Iria: ‘pela costa ser brava, não presta a esta vila para navios, nada se carrega nele e só serve de batéis.´[7] Será? Vejamos, o que ele próprio nos diz em outra passagem: ‘para se poder carregar trigo e outras coisas nele.’ Isto em 1525. Como explicar então que tenha antes afirmado que ‘ nada se carrega nele?’ Servia ou não? Contradição?

Em 1525, ‘foi acordado de se fazer o caminho deste porto de Santa Iria, cortando o pico da fajã de cima direito ao dito porto e varadouro dos batéis, para se poder carregar trigo e outras coisas nele, pois não se sofria a descida pela rocha e caminho de pé.’[8] Ora, o que se sabe por Frutuoso, a acta da Câmara da Ribeira Grande não chegou até nós, é que ‘aos vinte do mês de Maio de mil e quinhentos e vinte e cinco,’ se celebrou o contrato para se construir o acesso ao porto de Santa Iria. Quem moveu os cordelinhos para a obra avançar? O Licenciado António Macedo, o Corregedor Régio que havia sucedido a Jerónimo Luís. Atendendo ao facto, chegaram a dar o seu nome ao porto de Santa Iria: De princípio se chamava o porto do Macedo, por respeito do corregedor António de Macedo que procurou que se fizesse.’ Macedo chegou em 1521 e iria permanecer na Ilha até em 1527, altura em que foi substituído por Domingos Garcia.[9] O que terá levado António Macedo a empenhar-se na obra de Santa Iria? Pôr em prática instruções do Rei. Quais? Uma contrapartida ao apoio da Ribeira Grande à mudança da Alfândega de Vila Franca para Ponta Delgada? Apesar de não haver provas, creio ser uma boa hipótese. Que acham? Outra das contrapartidas poderá ter sido a construção da ponte de pedra junto à Praça? É, ainda em minha opinião, outra ‘razoável’ hipótese. Quando Macedo chegou à Ilha, ‘a ponte de pedra junto à praça’ já estaria pronta? Fora arrematada a 4 de Julho de 1520 pelo pedreiro ‘Fernão de Alvares,’ distinto do da construção do acesso ao porto de Santa Iria, apesar de partilharem um nome idêntico e, cúmulo das coincidências, de residirem na Ribeirinha.[10] A sua construção terá sido a resposta do Rei à informação que o Corregedor Jerónimo Luís lhe enviara em 1515.

Para quê aquelas obras? Em 1515, o Corregedor dizia ao Rei que a ponte era para servir em segurança: ‘gente e gado e bestas.’ No caso da obra de Santa Iria, era para facilitar o acesso, já que se ‘sofria a descida pela rocha e caminho de pé.’ Em suma, iriam facilitar a circulação no interior da Vila, do Concelho e deste com os restantes concelhos da Ilha. Tornaria mais fácil ‘carregar trigo e outras coisas’ no porto de Santa Iria. Seria mais um porto disponível na Ilha? Carregar para onde? Sobretudo para Ponta Delgada, onde se situava a Alfândega? Directamente para destinos fora da Ilha? Seria um porto complementar ao de Ponta Delgada? Intermédio? Recebia os trigos da Achada e encaminhava-os para Ponta Delgada?

Ainda antes de o Lugar da Ribeira Grande ser feito Vila, chegavam ao porto de Santa Iria os trigos de António Rodrigues da Câmara e de seu irmão Pedro Rodrigues da Câmara, das suas propriedades da Achada, dos Fenais e de outras bandas do Norte, possivelmente de outros mais. O porto ficava próximo das propriedades daqueles senhores, se não mesmo dentro das propriedades do primeiro: ‘junto das casas de D. Catarina Ferreira, mulher que foi de Antão Roiz da Câmara (…).’ E não longe, um outro, junto à ribeira da Ribeirinha, ‘ao longo da qual tem sua rica quinta Rui Gago da Câmara, parente do Conde, Capitão desta ilha.’[11]

O contrato, assinado na Casa do Concelho, por ser obra que iria consolidar o lugar da Ribeira Grande entre os três mais poderosos concelhos da Ilha, por ser projecto de continuidade, juntou veteranos da elevação a Vila e elementos da nova geração da governança: ‘António Carneiro [e] Diogo de Sousa, Juízes Ordinários,’ vinte anos antes, o primeiro, mais o cunhado Rui Tavares, haviam sido (fazendo fé a Frutuoso) os cérebros e os homens de acção do nascimento da Vila; ‘Fernando Anes e Álvaro de Horta, vereadores,’ Álvaro, filho de João da Horta, outro fundador da Vila, casou com uma neta de Rui Tavares; ‘Álvaro Gonçalves, procurador do Concelho, e João de Abrantes e Álvaro Afonso, procuradores dos misteres, e muitos homens da governança da dita vila.’[12] Não foi fácil construir ‘o caminho de carro que agora tem,’ foi de tal monta que para Frutuoso a obra parecia ter sido feita pelos ‘Romanos.’ Segundo ainda Frutuoso, haviam utilizado a força da água de duas ribeiras: ‘a ribeira do Salto com a Ribeirinha e elas juntas levaram a terra ao mar, que os homens iam cavando, com que se abriu um alto pico pelo meio.’[13]

Talvez desde o início do povoamento do Lugar, aquele porto já servisse de apoio a uma rica faina piscatória. É Frutuoso quem no-la descreve: ‘O pescado de toda a sorte, chernes, peixe escolar, peixe-galo, congros, gatas, gorazes, pargos, garoupas, abróteas, sargos, salmonetes e outras sortes.’ Sem faltar os mariscos: ‘lagostas, lagostins e cavacos.’ Era tamanha a abundância, continua, ‘ que do porto de Santa Iria levavam sebes cheias em carros carregados dele à vila da Ribeira Grande.[14] Carros antes da construção do acesso em 1525? Não sei. Bom, além da pesca e da carga de cereais e de outras coisas (que não se especifica), o porto terá sido local de chegada de peregrinos das ‘Ilhas de Baixo.’ Explico-me: a 8 de Março de 1517, quando se sagrou a igreja de Nossa Senhora da Estrela, ter-se-á iniciado uma romaria. O Bispo que a sagrou depositou ‘em uma caixinha pequena de cedro, metida em de pedra, debaixo da campa do altar-mor, estas Relíquias, convém a saber, um osso pequeno de São Sebastião, e terra da casa de Nossa Senhora do Loreto, e terra do sepulcro de Santa Eufémia, virgem e mártir, e um osso de uma das Onze Mil Virgens.’[15] Frutuoso não diz nem cita qualquer pergaminho. Quem no-lo diz e cita, já em finais do século XVII, é o nosso conterrâneo Agostinho de Monte Alverne. O Bispo concedeu ‘quarenta dias de indulgência a todo fiel cristão que neste dia e noutro tal, em cada ano, visitar o altar e relíquias nele postas.’[16] O que interessa destacar, é o que escreve a seguir: ‘de toda a ilha concorre gente a ganhá-los [indulgências a que vulgarmente, diz Monte Alverne, perdões],’ e muita mais ainda, o que lhe acrescenta: ‘e é tradição que das Ilhas de Baixo, em barcos, vinha gente a ganhá-los (…).’[17] Duas perguntas: Quando começa esta peregrinação? Depois de 1517 e antes de Monte Alverne escrever. Quando ao certo? Não diz. De onde vêm os peregrinos? E onde desembarcavam? Santa Iria? Provavelmente.

Outra notícia de Frei Agostinho de Monte Alverne, já para a segunda metade do século XVII, confirma-nos a complementaridade entre o mar do Norte e o do Sul da Ilha. Trata-se do desembarque da imagem de Santo Cristo Atado à Coluna ‘a 8 de Junho de 1664, em dominga da Trindade.’ Refere-se-lhe nestes termos: ‘tanto que esteve em terra o caixão do Santo Cristo, logo o vento se mudou ao Norte e a caravela se fez à vela para o porto da cidade, onde ancorou terça-feira, desembarcando o Senhor no porto de Santa Iria.[18] Que se pode inferir daqui? Que era possível que esse episódio não fosse um caso isolado.

O que concluir deste nosso trabalho? Enquanto não houver mais provas e mais investigação, à cautela: que se fosse menos oneroso fretar um navio para carregar trigo em Santa Iria, carregava-se? Sim. Que se houvesse tempestade a Sul se poderia carregar a Norte? Sim. Com os direitos da Alfândega de Ponta Delgada assegurados, a Ribeira Grande retirava vantagem do porto de Santa Iria em complementaridade ao de Ponta Delgada. No próximo trabalho, procuraremos tentar perceber a razão de (talvez) na década de trinta o porto dos Carneiros passar a ser usado pela Ribeira Grande como se fosse seu. Por o porto de Ponta Delgada estar sobrecarregado e o da Lagoa ficar mais próximo da Ribeira Grande? Uma coisa é certa: só o conseguiu porque era útil ao Rei. Tinha poder. Porque era uma das três Vilas mais poderosas da Ilha.

Mário Moura – Lugar das Areias – Rabo de Peixe

 



[1] O porto de Santa Iria, Diário dos Açores, de 24-09-2021 a 17-11-2021 (19 artigos); A saga dos irmãos Botelho Arruda, Diário dos Açores, 18-03-2022 a 25-03-2022 (7 artigos).

[2] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p.176.

[3] Supico, Francisco Maria, Escavações, Volume II, ICPD, 1995, p. 699, Cf. A Persuasão, Ponta delgada, 9 de Outubro de 1901.

[4] Sarmento Rodrigues, Manuel Maria, Ancoradouros das Ilhas dos Açores, Edição dos Anais de marinha, [1943], 2.ª edição 1960, p. 93.

[5] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 176.

[6] Frutuoso, Gaspar Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 176.

[7] Frutuoso, Gaspar Saudades da Terra, Livro IV, 1998, pp. 190-191.

[8] Frutuoso, Gaspar Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 186.

[9] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, 1998, Livro VI, p. 36.

[10] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, 1998, Livro IV, p. 188.

[11] Frutuoso, Gaspar Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 186.

[12] Frutuoso, Gaspar Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 186.

[13] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro Quarto, IV Volume, Ponta Delgada, 1998, p. 186; Olhando hoje para as ribeiras com aquele nome, distantes uma da outra, custa a crer que tivesse sido assim como nos diz Frutuoso. No entanto, analisando demoradamente a carta geográfica (acompanhado pelo colega André Franca), admitindo certas condições, não nos pareceu assim tão inverosímil. Porém, fica a dúvida.

[14] Frutuoso, Gaspar Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 228.

[15] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro VI, 1998, p. 40.

[16] Alverne, Agostinho de Monte, Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos Açores, ICPD, volume II, 1969, pp. 296-297.

[17] Alverne, Agostinho de Monte, Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos Açores, ICPD, volume II, 1969, pp. 296-297.

[18] Alverne, Agostinho de Monte, Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos Açores, ICPD, volume II, 1969, p. 304.

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