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Ribeira Grande: Limites - VIII

O ‘castigo’ de Deus que derrotou Vila Franca – VIII

Dedico este texto à Maria de Fátima, nascida em Água de Pau, avó do meu filho, que partiu hoje, dia de Santo António, e a José de Sousa ‘Batata,’ meu bisavô, nascido em Vila Franca, partido há muito. Ambos estão no meu coração.

Como poderá o Historiador avaliar uma História que tem um castigo como causa e Deus como seu autor? Não pode. Apenas poderá aproximar-se. Uma das formas de o fazer, neste caso concreto, creio, consistirá em dissecar o que o cronista disse ou deixou por dizer e um ou outro documento. Não mais, tanto quanto sei.

Vamos a isto? Como explica o ‘cronista’ Gaspar Frutuoso (mais à frente esboça-se um diferença possível entre Cronista e Historiador) o facto de Ponta Delgada ter ficado com o lugar que antes pertencera a Vila Franca? Frutuoso, perplexo, não o sabe explicar, remete o caso para Deus. Como poderia entender que a sua cidade natal houvesse passado de ‘solitário ermo, saudoso lugar e pobre aldeia, e depois pequena vila, a que agora é grande, rica, forte e tão afamada cidade?’[1] Não propõe ‘uma explicação demonstrável’ para o que designa ‘herança do morgadio,’ aponta somente para o alto: ‘por ocultos juízos da Divina Providência (…).[2] E liga isso a um ‘castigo.’

Na narrativa de Frutuoso, seguindo-se à intervenção Divina, segue-se a narrativa do nascimento da Vila de Ponta Delgada, que, como já vimos em trabalho anterior, poderá ter ocorrido entre 1499 e 1507, portanto, anterior ao ‘castigo’ de 1522. Sigamos com atenção (e razão) esta narrativa. Foram os do Lugar da Ponta Delgada a ‘Vila Franca pelas festas em que eram obrigados.’ Obrigados? Vejamos. Seria a ida ‘obrigatória’ à procissão do Corpo de Deus (talvez fosse essa) dos do Lugar de Ponta Delgada e de todos os dos Lugares existentes à altura na Ilha uma ida forçada? Seria vexatória ou antes uma enorme honra que todos cobiçariam? Sentado na minha casa das Areias, passados cinco séculos, podendo estar redondamente enganado, penso assim: quem não quereria participar numa festa onde todos os honrados da Ilha se viam e eram vistos?

Voltando à procissão. O que terá acontecido de anormal naquela em particular? Aqui vai, ‘pondo-se um Antão Pacheco, pai de Pero Pacheco, de Vila Franca, detrás dele [Pero Jorge, pai de Hierónimo Jorge, de Ponta Delgada] com outra tocha,’ ‘lhe pingou um tabardo novo, que ele levava vestido, como então se costumava, (outros dizem que era um capuz cerrado, de punho preto fino).’ Reconhecendo Frutuoso desconhecer a causa certa, regista várias possíveis causas: ‘ou por descuido ou por malícia ou zombando.’ O que faz muita diferença. Certo? Continue-se a prestar atenção.

Pero Jorge, sem apurar razões, ‘arrancou logo sua espada contra quem lho pingara, com que se armou um grande arruído, ajuntando-se, como em bandos de parte a parte, muita gente, onde houve alguns feridos e se desordenou a procissão.’ E seguiu-se, já na Ponta Delgada, a decisão ‘de não obedecer a Vila Franca e procurar fazer a Ponta Delgada vila.[3] Se alguém cometeu pecado grave, merecedor da ira Divina, dar-me-ão ou não razão, foi quem desembainhou primeiro a espada em plena procissão: lugar e tempo sagrados. Dito isto, a passagem do Lugar da Ponta Delgada a Vila, e o início do declínio da importância de Vila Franca, não decorreu de um acto pecaminoso da Vila mas de uma reacção a quente dos do Lugar da Ponta Delgada. Pode ainda dizer-se, o que vai dar na mesma, que seria pecador, tanto o que iniciou o acto como o que respondeu ao mesmo. Ou que quem respondeu a uma agressão, agiu em legítima defesa, portanto, não é culpado de coisa nenhuma? Que vos parece? O Historiador, um desconfiado natural, desconfiará disso. Então, não houve inquirições? Onde param?

Noutra passagem da sua crónica, dando como adquirida a perda de poder de Vila Franca para Ponta Delgada, esclarece-nos os tais ‘ocultos juízos.’ Distingue claramente causas primárias e secundárias: ‘Deus, que é causa primeira de que tudo depende, quando por seus justos e ocultos e às vezes manifestos juízos, quer castigar algumas das criaturas que ele criou, toma por instrumentos as causas segundas, que são os elementos; e às vezes, contra grandes e desaforados males, coisas pequenas e baixas, como são os bichinhos da terra, ou a mesma terra, como a tomou nesta ilha de S. Miguel para cobrir e assolar a mais populosa vila que nela e em todas as ilhas dos Açores naquele tempo havia, chamada Vila Franca do Campo (…).’ Vou interromper o texto para o analisar. A que habitantes de Vila Franca se refere Frutuoso em particular? Vejamos o que disse: ‘os ministros da justiça eclesiástica e secular, e a mais nobre gente da ilha (…) e ricos e grossos lavradores e mercadores.’ Seriam estes os principais pecadores de Vila Franca? E os únicos da Ilha? Que acham? Talvez a razão do ‘pecado’ se encontre em outra causa. A cobiça? Em Vila Franca ‘estava o porto principal, e escala, e alfândega.’ O que Vila Franca ainda possuía era para passar à posse de quem o monarca escolhera: Ponta Delgada. A resistência à vontade Real (representante de Deus na Terra) seria interpretada como uma afronta a Deus e ao Rei? Logo pecado? Destinado a servir de exemplo: ‘(…) para com tal exemplo ser Deus engrandecido em seu poder e temido em seu juízo e castigo.’[4]

Admitindo que houve castigo, o de Outubro de 1522, que Frutuoso refere, não pode ter sido o golpe inicial, quanto muito, foi o capítulo final da perda da importância de Vila Franca. Em 1518, já aquela Vila fora desapossada da Alfândega e reduzida à área territorial que chegaria a 1822. Certo?

Ainda assim, ‘o castigo’ poderia ter sido evitado, caso os pecadores (os tais de Vila Franca) se arrependessem a tempo. Muito tempo antes do castigo, a palavra é ainda de Frutuoso, o Céu recorrera à ‘boca dos meninos para denunciarem o castigo que Deus queria dar àquela Vila (…).[5] Pouco antes do mesmo castigo avisou o mesmo. Mas aqui os alvos não são apenas Vila Franca. Vejamos: ‘que se havia de alagar uma vila ou ilha.’ Porém, ‘outros dizem que não pregava senão que se emendassem todos nesta ilha e fizessem penitência, porque lhe arreceava vir sobre ela grande castigo, pelos males e pecados que via na gente dissoluta, com a grande abundância e fartura que então havia nesta ilha, onde todos viviam ricos e abastados, sem se achar um pobre a quem se pudesse dar esmola.’[6]  Então, os pecados estavam ou não espalhados pela ilha inteira?

Mais provas? Aqui vão. Sempre de Frutuoso. Criada depois de 1522, a versão ‘de um romance que se fez de algumas mágoas e perdas que causou este tremor em Vila Franca do Campo e em toda a Ilha,’ é clara a este respeito.[7]  Resumindo Frutuoso: Morreram cinco mil pessoas em toda a ilha. Nos termos de Vila Franca, Ponta Garça e Maia, morreu muita gente. ‘Morreram altos e baixos, sem lhes valer fidalguia; Morreram grandes e pequenos (…).’ ‘Outros escaparam nas quintas porque Deus assim queria.’

Após tudo o que aqui ficou dito: pergunta-se se Frutuoso será cronista ou Historiador? A resposta não pode ser uma a preto e branco, pois, Frutuoso é um homem do Renascimento sem, no entanto, deixar de ser um homem da Idade Média. Por que o digo? Após atribuir a autoria da História a Deus, causa primeira da História, coisa que o Historiador não faz, Frutuoso ao narrar/elencar as causas secundárias da História (se bem que raramente as relacione) aproxima-se um pouco mais do Historiador. E mais: coloca o Homem (simples, honrado ou não) no que resta do centro da sua narrativa. Com que legitimidade faço esta distinção? Vou-me socorrer da proposta de Walter Benjamim. Vejam se Frutuoso faz o que Benjamim diz que um Historiador deve fazer: ‘O historiador é suposto explicar, de um ou de outro modo, os acontecimentos sobre os quais se ocupa; não pode limitar-se a apresenta-los como exemplos do curso do mundo.’ Não faz, certo? Vejam agora o seguinte: ‘O que é precisamente o que faz o cronista, sobretudo no caso dos seus representantes clássicos, os cronistas medievais, que foram os percursores dos historiadores modernos. Dando como fundamento à sua narração histórica o plano divino da salvação, imperscrutável em si mesmo, os primeiros libertavam-se o ónus de uma explicação demonstrável. Em vez desta, introduz-se a interpretação, que não se ocupa da concatenação exacta de determinados acontecimentos, mas do modo como estes se inserem no grande e imperscrutável curso do mundo.’[8] Isso faz Frutuoso. Insisto: no ponto que trato, parece-me assentar bem em Frutuoso. Que pensam os leitores?

Circulariam narrativas pela Ilha antes mesmo de Frutuoso as recolher? Sim. Será que tiveram origem em Ponta Delgada? Sim, ao que parece, mas não todas. Que faz Frutuoso? Regista o que consegue colher, porém, dá destaque às que apontam o dedo ao castigo de Vila Franca. Porquê? Talvez porque, quando escreve, a maior destruição na Ilha tivesse ocorrido em Vila Franca. Porque não explicou as razões ‘humanas’ da perda de importância de Vila Franca? Achando tão extraordinário o percurso de Ponta Delgada, de simples Lugar a grande Cidade, o que só se poderia explicar por intervenção de Deus? Portanto, um mistério fora do alcance da compreensão humana. O que secundarizou Vila Franca: um castigo Divino. E o que é que tornou Ponta Delgada cabeça da ilha? Virtude? Não diz, mas depreende-se. Claro que, como Historiador, vejo (como escrevi em outro trabalho) causas mais Humanas. A explicação de Frutuoso, porém, poderá ter tido outro objectivo. Adianto mais conjecturas. Podendo ter ou não partido de Frutuoso, sendo ‘a mais honrada Vila que tendes na vossa Ilha Ponta Delgada’ (como em 1526 um dos revoltosos à cerca sanitária imposta a Ponta Delgada afirmou na cara do amedrontado capitão-do-donatário), agora que era a mais rica e honrada cidade, não podia deixar pairar sobre si o ignominioso labéu de ‘usurpador do poder de Vila Franca.’ De se ter aproveitado da desgraça de Vila Franca para lhe arrancar o mando. Não se poderia permitir que tal história circulasse? Longe de ser usurpador, Ponta Delgada fora o que Deus quis que fosse. E o Rei, seu representante na Terra, como pretendo demonstrar no trabalho anterior.  

Mãozinha Divina ou não, Vila Franca, no final de tudo, privilégio de ter sido a primeira Vila da ilha e sede inicial da capitania, restou-lhe um prémio de consolação: condescenderam-lhe a honra de presidir a reuniões e de nelas tomar a palavra antes de qualquer outra vila. Fama sem proveito? Obviamente.

Lugar das Areias – Rabo de Peixe



[1] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 171

[2] Idem.

[3] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, ICPD, Livro IV, 1998, p. 171.

[4] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, pp. 279

[5] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, ICPD, Livro IV, 1998, p.277.

[6] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, pp. 277-78.

[7] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, pp. 292-296.

[8] Agamben, Giorgio, A loucura de Holderlin: Crónica de uma vida habitante (1806-1843), Edições 70, 2022, p. 15.

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