O
processo de recrutamento de 1766 não demorou mais do que um mês - V
O processo de recrutamento de
1766 não demorou mais do que um mês, vejamos o caso que nos interessa: ‘João Caetano Botelho, filho do capitão
Miguel Tavares do Amaral, morador na Vila da Ribeira Grande, que assentou praça
em dois de Março do dito ano [1766] e
recebeu logo 19.200 réis na forma da dita forma, venceu até 27 de Maio do dito
ano 5.220 réis.’[1]
Era dinheiro bem-vindo.
Que fez e onde esteve na ilha
João Caetano entre a 2 de Março, o dia em que assentou praça, e 28 de Maio, dia
em que a charrua zarpou da ilha rumo ao Rio de Janeiro? Durante quase três
meses, onde terá recebido a instrução militar? Se recebeu. Terá esperado em
casa na Ribeira Grande? Terá ficado todo o tempo ou apenas parte do tempo em
Ponta Delgada? Seja quais forem as respostas (que desconheço), esteve forçosamente
na Ribeira Grande durante a Páscoa que calhou a 30 de Março. Era obrigatório. E
em qualquer circunstância, antes de embarcar, terá ido despedir-se da família.
Na ilha ainda assistiu ao casamento da irmã Inês Eufrázia um ano antes da sua
partida para o Brasil. E em Maio já deveria saber que a irmã estava grávida do
seu primeiro filho. João Caetano em Outubro de 1768 já estava a mudar-se do Rio
para a Baía. Por que trocou o Rio pela Baía? Antes de saber de ter conhecimento
de que tratara de uma leva militar, pus-me a lançar hipóteses verosímeis,
porém, face aos dados concretos da sua ida, tenho de fazer outras perguntas:
Terá cumprido o tempo devido no Rio ou simplesmente pedira transferência? Terá
sido rendido pela nova leva que partiu da ilha para o Rio de Janeiro em 21 de
Julho do ano seguinte? Seja o que for que o tenha permitido sair do Rio de
Janeiro, estaria em Outubro de 1768, dois anos e meio após sair da Ilha para o
Rio de Janeiro, a fazer planos para se mudar do Rio de Janeiro para a
Baía.
No século XVIII, fragatas ‘eram navios
de guerra com três mastros de velas redondas, com comprimento semelhante ao das
naus, mas menores, mais rápidos e com armamento mais ligeiro,
usados em missões de escolta e de reconhecimento. As fragatas dispunham de uma
única bateria coberta de canhões, em comparação com as duas ou mais baterias cobertas das
naus.’[2]
Talvez o nosso D. Francisco
Xavier seja Francisco Xavier Rafael de Meneses, nascido em 1711, 6.ºConde da Ericeira,
2.º Marquês
de Louriçal, Senhor da Ericeira; 4.º senhor de Ancião,
10.º senhor do Louriçal, do morgado da Anunciada e dos da casa de Sarzedas,
comendador de diversas comendas pertencentes à casa dos Condes da Ericeira.[3]
Quanto
a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, ‘foi governador-geral do Estado do Grão-Pará e Maranhão de 1751 a 1759 e secretário de Estado da Marinha e do
Ultramar
entre 1760 e 1769.’ Nasceu em Lisboa a ‘9
de Outubro de 1701,’ e
faleceu em ‘Vila Viçosa (Évora), a 15
de Novembro de 1769.’[4] Seria
o mês de Maio uma boa altura para viajar para o Brasil? Em 1748, dentro do
período de intenso transporte de açorianos para o Brasil, o corregedor das
Ilhas informava o Rei de que ‘em cada ano
se não acha mais que duas monções próprias para o dito efeito de Março e
Outubro como asseveram os marítimos, atendendo ao perigo do mar da costa destas
Ilhas e a melhor passadia dos transportados.’[5]
Portanto, a viagem de João Caetano em finais de Maio, já não estaria bem dentro
do melhor período que os homens experimentados do mar aconselhavam.
Como decorreu a viagem de João
para o Brasil na charrua de Nossa Senhora da Conceição em Maio de 1766? Passou
bem de saúde? Não sabemos. Mas sabemos o que sucedeu na viagem da fragata Nossa
Senhora da Graça do Porto para os Açores, em Setembro daquele mesmo ano.[6]
Assim, é possível ficarmos com uma ideia do que poderia ter sido a viagem de
João Caetano. Durante a passagem para o Brasil, e para outras partes do
Império, as doenças atacavam frequentemente com força e bastante virulência. No
caso da fragata Nossa Senhora da Conceição, o próprio capitão do navio, não
escapou. Escrevendo a D. Francisco de Mendonça, o capitão não tem pejo em
abrir-se: ‘me tem durado o defluxo com
alguma inflamação dos olhos, mas graças a Deus nada é de cuidado.’ O mal
vinha já do início da viagem: ‘as doenças
com que sai [da cidade] do Porto se
declararam malignas e de bem má qualidade de que me morreram um cabo e um
soldado do regimento de Ponte, mas todos os outros vão bem e não tem continuado
as doenças.’ Haviam adoecido três marinheiros, o grumete, o criado de um
dos ministros, o terceiro carpinteiro, cinco solados do Regimento da Ponte, 1
do Regimento de Artilharia. Haviam falecido, continua, do Regimento da Ponte: o
cabo José António da Silva e o soldado João da Silva. Que doença se tratou? Dá
igualmente para descobrir algumas das várias actividades dos ocupantes da fragata:
carpinteiros, marinheiros, soldados, grumetes, criados, clérigos. Havia dois
tipos de regimentos: artilharia e talvez infantaria.
Além da saúde, havia a temer o
estado do tempo e do mar: ‘me tenho
consumido por encontrar ventos contrários, bonanças e dois dos navios serem
muito ronceiros [lentos].’
Em 1811, dispomos das cartas de
Luís Joaquim Santos Marrocos. Marrocos conta nelas ao pai a sua ida na fragata Princesa Carlota em 1811 para o Brasil.
Ia desempenhar as funções de bibliotecário. Ele e o pai, Francisco José, eram
funcionários régios da Biblioteca Real. Luís aos 26 anos era solteiro e morava
com a família no bairro de Belém, em Lisboa.[7]
Primeiro, um andamento totalmente dependente das condições climatéricas: ‘tendo saído da barra de Lisboa com vento de
feição, mal chegámos ao mar largo, nos soltou vento de travessia, que nos
impediu para a Costa de África: à vista dela passámos as Ilhas dos Açores
[não estará a confundir com a Madeira?] e
as Canárias, por meio de abordagens retrógradas, que por muitas vezes chegou a
suspender-se de todo a navegação pelas calmarias podres, misturadas com ventos
contrários, que nos expunha a imensos perigos.’[8]
Entre muitos efeitos que o mar causava aos passageiros, Marrocos diz ‘tenho passado muito incomodado da garganta,
da boca e olhos, de maneira que estou em uso de remédios.’ Que remédios?
Vejamos: ‘Não há botica
[medicamentos] suficiente para os
doentes, pois não consta mais do que meia dúzia de ervas, sendo aqui as
moléstias em abundância; não há galinhas, nem carnes frescas para eles.’[9]
Mas, felizmente para ele,
acrescenta, ‘não tive enjoo algum,’ causando-lhe ‘compaixão ver o vomitório geral da gente
da fragata: pois entre 550 pessoas que aqui há, foram poucas as privilegiadas
do enjoo.’[10]
E com respeito à agua e aos alimentos sólidos. Começando pela água: ‘Ao oitavo dia de viagem já era corrupta e
podre a água de ração, de maneira que se lançam fora os bichos para poder
beber-se.’ Melhor sorte não tem a carne que seria de esperar que
aguentasse: ‘tem-se lançado ao mar muitos
barris de carne salgada podre.’[11]
Chegado ao Brasil, escreve ao
pai. Nesta carta, lança um terrível aviso a quem queira viajar de barco: ‘E coisa muito de ponderar-se o incómodo, que
sofre qualquer pessoa não costumada a embarcar, e muito principalmente quem tem
moléstias de maior perigo e cuidado: a quem é nocivo o tossir, o espirrar, o
assoar-se, etc., é perniciosíssimo, e de toda a consequência expor-se ao enjoo
marítimo, que faz [parece] arrancar as entranhas e rebentar as veias do
corpo, durante este tormento, dias,
semanas, e muitas vezes a viagem inteira: além disto, o susto do mar, trovoadas
e aguaceiros, balanços, submersões do navio não são coisas ridículas para quem
não é grosseiro.’[12]
Poderia ter acrescentado o perigo de ser capturado por piratas. E de naufrágio.
Não sei se foi ou não pelos perigos da viagem, mas na realidade Marrocos não
viajaria para a Metrópole, ficaria pelo Brasil o resto da vida.
Para nosso azar, as cartas que chegaram até nós de José
Teodoro e de João Caetano enviadas do Brasil à família datam apenas de 1771.
Não conhecemos igualmente nenhuma carta de resposta da família da Ribeira
Grande. Todavia, pela leitura das cartas sobreviventes e de um documento de
1768, tudo aponta para que tenham existido cartas anteriores a 1771.[13]
Que lhes terá sucedido? Perderam-se na viagem? Era comum, por isso, enviavam-se
missivas por várias vias. A família perdeu-as? É possível. Os irmãos no Brasil
perderam-nas? Ou não as guardaram? É possível. Perderam-se com os tempos? É
possível que após a morte dos destinatários, alguém as tenha destruído. Sabemos
quando foi mas não sabemos como decorreu a viagem de João Caetano. Quanto a
José Teodoro, não sabemos nem quando nem para onde e muito menos como correu a
viagem. Podemos, no entanto, fazer uma ideia.[14]
Como foi José Teodoro para o Brasil? As respostas podem ser várias. Poderá ter
ido incorporado num dos contingentes militares anteriores a 1766. E pode não
ter ido daquele modo.
Mário Moura
Lugar das Areias – Rabo de Peixe
[1] Cf. AHU, Açores,
Caixa 5, n.º 49, 30 folhas, António Borges Bettencourt, sargento-Mor de São
Miguel, relata a partida de 200 soldados recrutados naquela ilha para reforçar
a guarnição do Rio de Janeiro. Inclui documentos comprovativos das despesas
feitas no recrutamento e manutenção deste corpo militar, nomeadamente a relação
dos soldados pagos, 5 de Agosto de 1766, Arquivo dos Açores, Volume IV, 2.ª
Série, Ponta Delgada, 2007.
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Fragata
[3] https://www.wikiwand.com/pt/Francisco_Xavier_Rafael_de_Meneses
[4]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_Xavier_de_Mendon%C3%A7a_Furtado
[5] Cf. AHU, Açores,
Caixa 3, n.º 25, 3 folhas, Carta do Corregedor das Ilhas dos Açores sobre as
cláusulas e condições com que se devem continuar os transportes dos moradores
das Ilhas para o Brasil, Francisco Xavier da Silva, Angra, ao Rei, Lisboa, 18
de Dezembro 1748, Arquivo dos Açores, Volume III, 2.ª Série, Ponta Delgada,
2005, p.106.
[6] Cf. AHU, Açores,
Caixa 5, n.º 53, 4 folhas, Carta de D. Francisco Xavier de Menezes Borges,
capitão-de-mar-e-guerra, a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, relatando a
posição da fragata Nossa Senhora da Guia e o estado de saúde das tropas
embarcadas, provenientes do Porto, 18 de Setembro de 1766, Arquivo dos Açores,
Volume IV, 2.ª Série, Ponta Delgada, 2007.
[7] Gomes,
Laurentino, 1808: Como uma rainha louca,
um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a
História de Portugal e do Brasil, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2008, pp.
69-75, 281-288.
[8] Ferreira,
Armando Seixas, 1821: O regresso do Rei.
A Viagem de D. João VI e a chegada da Corte a Portugal, Planeta, Lisboa,
2021, p. 131.
[9] Idem, p. 132.
[10] Idem, p. 131.
[11] Idem, p. 132.
[12] Idem.
[13] [Documento D.1]
contraído ao mercador António Dias Tavares, morador na Ribeira Grande, mas ao
tempo, de passagem pelo Rio de Janeiro, foi feito numa segunda-feira, dia 3 de
Outubro, de 1768.
[14] Para ter uma
ideia, recomendo: Arquivo dos Açores, Volume I, 1.ª Série; Arquivo dos Açores, Volume III, 2.ª Série,
Ponta Delgada, 2005; Arquivo dos Açores, Volume IV, 2.ª Série, Ponta Delgada, 2007; Vilhena, Maria da
Conceição, A viagem do emigrante açoriano
para o Brasil em meados do séc. XVIII, Anais da 2ª
Semana de Estudos Açorianos [1987],
Florianópolis, Editora da UFSC, 1989, p. 162-170; Vilhena, Maria da Conceição, Viagens
no século XVIII: dos Açores ao Brasil, Studia, Lisboa, Instituto de Investigação Científica
Tropical, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, Nº 51, 1992, p.
5-15. Os dois textos são iguais, diferendo apenas o título e a qualidade da
impressão; Gomes, Laurentino, 1808:
Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram
Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, Publicações D.
Quixote, Lisboa, 2008; Ferreira, Armando Seixas, 1821: O regresso do Rei. A Viagem de D. João VI e a chegada da Corte a
Portugal, Planeta, Lisboa, 2021.
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