São Miguel ganhou?
– XVII
No imediato, terá
ganho. Sem outra alternativa viável no horizonte, a Ribeira Grande fez bem em
aceitar a solução do porto dos Carneiros em vez de esperar por obras no porto
de Santa Iria. Quem terá beneficiado
com a troca? Os proprietários próximos do caminho da Mediana e os que viviam do
transporte de mercadorias. Presumimos, daqui da segurança do século XXI. No
entanto, a longo prazo, a resposta pode ter sido diferente: a ilha perdeu.
Explico-me. Em graus diferentes, prejudicou a Ribeira Grande, as partes ditas
do Norte, Vila Franca, Nordeste, Ponta Delgada e a Alagoa. Tendo, no caso da
Ribeira Grande, começado, possivelmente, por ser uma solução de recurso, logo, temporária,
mercê de sucessivos adiamentos, mais obras no porto e na Fortaleza de Ponta
Delgada, acabaria por tornar-se uma solução ‘permanente.’ Haverá uma causa inicial que explique a falta de
investimento em Santa Iria? Como na Ilha além de Ponta Delgada? Poderá ser que
sim. Vejamos. Como já vimos, o Paço Real (poder central) decidira concentrar em
Ponta Delgada a fortaleza, a Alfândega e o Almoxarifado. Além de ser a única ‘cabeça
de Ilha,’ Ponta Delgada saíra ilesa do cataclismo de 1522, que destruiu Vila
Franca, e do de 1563, que destruiu a Ribeira Grande, por conseguinte, granjeando-lhe
fama de terra ‘segura’ para se viver. Era igualmente o local ideal da Ilha para
quem pretendesse prosperar. Pelo que, concentrando estruturas (‘maná’ que se
manteria ao longo da história) além de ter escapado às destruições, a cidade
tornou-se o destino ‘irresistível’ de muitos da Ribeira Grande, de Vila Franca e
das demais partes da Ilha. Ainda assim, Ponta Delgada, não perdendo tanto quanto
perdeu Vila Franca e a Ribeira Grande, também perdeu algo que lhe poderia ter
sido muito útil: um porto de abrigo alternativo a Norte. Não esqueçamos as
dificuldades na exportação da laranja.
Terá a falta de um bom
porto na Ribeira Grande (na Costa Norte) travado o crescimento no Norte da Ilha?
A resposta que os jornais da Ribeira Grande deram por alturas da primeira
tentativa (gorada, seguida de comentários lamentáveis) de elevação da Ribeira
Grande a cidade, em 1852, foi um sim rotundo. Haviam saudado as obras no porto
de Santa Iria como arauto de progresso. Lamentavelmente, a esperança morreu à
nascença: as obras ficaram a meio. Nos primeiros anos do século XX, a resposta
do Padre Cristiano Borges de Jesus (n. Lagoa - 21.1.1864 - m. Ribeira Grande - 28.1.1944), foi mais do que eloquente: não só travou como impediu a
Ribeira Grande de suplantar Ponta Delgada. Na colaboração que prestou no álbum
dedicado à visita régia do casal D. Carlos e D. Amélia, com ou sem exagero, escrevia
qualquer coisa como ‘se a Ribeira Grande
tivesse um porto de mar seria ela a cidade e não Ponta Delgada.’ Exagero ou
não, não havendo um polo forte no Norte da Ilha (complementar a Vila Franca e a
Ponta Delgada, no Sul), naquele local central da costa Norte ou em local não
afastado daquele ponto, as povoações próximas a Norte terão também ficado
aquém do que poderiam ter chegado, prejudicando assim a Ilha inteira. Pode
concluir-se? Em 1812-14, o britânico Barrett – que talvez espiasse por conta de
Sua Majestade Real -, em trabalho inédito até ao século XXI, propôs planos
grandiosos para o Porto Formoso: seria ‘de
longe, o melhor porto da Ilha.’ Escreveu. Pena, era o acesso, concluiu:
‘como é demasiado afastado, não é viável para porto comercial. Seria um
desperdício investir (…).’[1] Sem
pôr os pés em Santa Iria, mas não desistindo do Norte, as rotas britânicas
passavam preferencialmente a Norte da Ilha, propôs o mesmo para Rabo de Peixe.
Leram bem: Rabo de Peixe.
Apesar
de tudo, ainda que a Ribeira Grande tivesse de trocar o porto de Santa Iria
pelo porto dos Carneiros, e por lá fosse ficando, a Ilha e quem demandasse a Ilha nunca
deixou de servir-se daquele porto. Parece-nos. Sempre que se visse vantagem
nisso. Esta ligação/simbiose de interesses entre a Ilha e Santa Iria, ir-se-ia
manter até meados do século XX, altura em que o recurso aos veículos a tracção
animal começa a ceder o lugar aos veículos motorizados. A este propósito,
recomendo a leitura de um texto do Padre Ernesto Ferreira.
Não basta só blá-blá, onde estão as provas que
atestam este continuado interesse por Santa Iria?
Além do breve período de pouco mais de uma década no século XIX em que serviu
escunas, iates e mais? Para conseguir alguma prova capaz de responder
satisfatoriamente à natural crítica dos pares, de férias e a ‘servir’ de ‘servente’ a um mestre que me pinta portas e janelas, ‘desenfiei-me.’ Fui de ‘fugida’ à biblioteca, uma hora de manhã,
outra de tarde, em três dias seguidos. Provas? Ei-las. Uma legenda do mapa de
1584, da autoria do cartógrafo Luís Teixeira, publicado em ano muito próximo da
escrita das Saudades da Terra de
Frutuoso, pode eventualmente contrariar a afirmação de Frutuoso de que Santa
Iria apenas serviria para o serviço de batéis: ‘P. [porto ou ponta de Santa Iria?] S. Siria.’ Tratar-se-ia de uma indicação destinada apenas a orientar
bateis ou destinar-se-ia também a outros mais tipos de embarcação? Mesmo que
Teixeira pensasse apenas em batéis quando escreveu a legenda, na prática,
qualquer embarcação poderia utilizar aquela informação. Ainda assim, se o mapa
de Teixeira nos pode deixar com dúvidas, muitos anos depois de Teixeira, em 1808,
o mapa minucioso da Ilha da autoria do Cônsul Britânico em Ponta Delgada William
Harding Read (Portsmouth, n. 24
de Agosto de 1775 - f. Ponta Delgada, São José, 6 de Maio de 1839),
destina-se sem dúvidas à orientação de toda e qualquer embarcação. Read
assinala: ‘Lugar de Rabo de Peixe: Porto;’ ‘Porto da
Ribeirinha;’ ‘Lugar do Porto Formoso- Porto.’ O que levaria o cônsul
britânico a destacar a costa
norte? A passagem pela costa Norte da Ilha seria a melhor rota possível entre a
Grã-Bretanha e o Continente Americano? Muito provável. Assim se poderá perceber
a razão das sucessivas referências britânicas ao trabalho de Read? Replicam
o seu trabalho, o britânico Briant Briant em 1812-14, o americano John Webster
de 1817 a 1821 e, em data desconhecida, Sir Richard John Strachan. Já no tempo da navegação a vapor, em 1844, ainda
outro britânico, o Capitão Alexander Thomas Emeric Vidal (1792 – Clifton, Bristol, 5
de Fevereiro de 1863)
sondou toda a costa da Ilha de São Miguel. Para a Costa Norte, entre outros,
sugere como bons pontos de desembarque: Portinha
P.t Landing - [Porto de Santa
Iria].[2] Para
tranquilizar os comandantes dos barcos a vapor que por ali passavam,
esclarecia: ‘Não existem rochedos proeminentes,
os barcos a vapor podem aproximar-se até um quarto de milha da costa.’[3]
Apesar
de (aparentemente apenas?) menos frequente do que as cartas britânicas, tanto
quanto pude apurar nas tais surtidas à Biblioteca, Portugal também se
interessou bastante (era a sua Ilha) pelo levantamento cartográfico da Ilha. Um
exemplo desse interesse: em
1822, o Tenente-Coronel Engenheiro José Carlos de Figueiredo indica
ancoradouros (ou portos) para a Costa Norte: à volta da Ponta de Santa Iria
(porto de Santa Iria?). Em 1826, Luís da Silva Mouzinho Albuquerque publica o
mapa. Em 1839, outro mapa sugere o ‘Porto
da Ribeirinha.’
O que nos quererão dizer estes pontos
ou portos?[4] Serão
simples pontos ou portos destinados a orientar/acolher navios que por ali navegassem?
Sem mais? Provavelmente. E que poderiam utilizar aquele porto, caso desejassem ou
a isso fossem obrigados? Bem como outros portos a Norte e a Sul. É provável. Já
agora, acham razoável admitir que os capitães ou mestres de navios com ordens de
carregar ou descarregar fosse o que fosse na Ilha - fosse onde fosse na Ilha -,
sabendo que haveria carga na costa Norte, sendo-lhes economicamente vantajoso, deixassem
de ir a Santa Iria só por ser a costa Norte? Não aproveitarem a ocasião, seria
um completo absurdo. No entanto, atenção, tendo o ser humano tanto de absurdo
como de racional, não podemos deixar de admitir a hipótese de não aproveitarem.
Avancemos? Ou que alguém na Ribeira Grande ou nas proximidades da Ribeira
Grande necessitando de embarcar ou desembarcar fosse o que fosse e o estado do mar
do Norte permitisse e fosse igualmente economicamente vantajoso, se recusaria a
utilizar aquele porto só por ser no Norte? Não faz qualquer sentido. Ou fará
para quem não faz caso disso? A meu ver, decidir-se-ia uma deslocação a Santa
Iria, para além do estado do mar, à rendibilidade do frete: a carga a carregar
em Santa Iria viabilizaria ou não economicamente a viagem a Santa Iria? Certo?
Ou errado?
Será
que existe um mito em torno do porto de Santa Iria? Que acham? Terá esse mito tido
origem num equívoco?
Ter-se-á confundido a falta de
obras no porto com a sua alegada - mas longe de estar provada -, inaptidão, mesmo
que ali se tivessem feito obras tecnologicamente adequadas ao local? Que acham?
Virá daí o voltar de costas da Ribeira Grande ao seu porto de Santa Iria?
Que acham? O ‘preconceito’ (no seu
sentido primitivo) da falta de um porto e da ‘ruindade’ do seu mar (em absoluto contraste com a universal
‘bondade’ do mar do sul) está tão profundamente ‘entranhado’ nos ‘neurónios e
suas sinapses’ das pessoas - cultas ou não, da terra ou de fora dela -, que
perguntando muito recentemente a um antigo alto governante regional pela razão
de a Ribeira Grande, apesar de já ser cidade desde 1981, ainda não ser uma
verdadeira ‘cidade,’ me respondeu: porque não tem mar para um porto. Que acham?
Ao pretender fazer um qualquer balanço a tudo o que
foi dito, acho-me a perguntar (mistério intelectual a desvendar ou impenitente
bairrismo sem solução?) em que medida teria a ilha ganho se tivesse havido partilha de poder entre as
duas principais Vilas (Ribeira Grande e Vila Franca) e a Cidade (Ponta Delgada)?
Tanto mais que, em termos de área, a ilha é ligeiramente superior à área da
Madeira e muito superior à da Ilha Terceira. Ambas tiveram duas capitanias, ao
passo que S. Miguel só teve uma. Não sei se adiantou alguma coisa. Que acham? Uma
coisa parece certa, com a criação da terceira ouvidoria da Ilha, a da Ribeira
Grande, algures no século XVII, a Igreja (integrada no ‘sagrado’ padroado
real), face à imensidão da Ilha e aos difíceis transportes de então no interior
da Ilha, reconhecia a vantagem em distribuir a administração da Ilha pela
cidade e pelas duas principais Vilas. À mesma conclusão, no primeiro quartel do
século XIX, terá chegado a coroa ao criar a Comarca de Ponta Delgada com quatro
Districtos dentro da Ilha de São Miguel. Ou com a criação dos círculos
eleitorais, no período liberal. Mas nada disso terá sido suficiente para a Ilha.
Nem para a Ribeira Grande. O cónego Cristiano, a findar o século XIX, menos de três anos após a instalação da Autonomia Distrital,
caracterizava-a em termos duros: ‘Fugimos do Terreiro de Paço para
ir cair no Largo do Colégio. E a diferença é contra nós, porque o Terreiro do
Paço é muito mais espaçoso.’[5] No
ano seguinte, continua a ser contundente: ‘não é autonómica mas
automática,’ considerando ‘todo o
Distrito escravo do Largo do Colégio (…).’[6] Que
acham desta versão da nossa gloriosa autonomia? Já em 1921, numa altura em que ‘o Distrito’ reclamava mais poder ao insensível
‘padrasto’ do Terreiro do Paço, o
mesmo Cristiano voltava a abordar a Descentralização Distrital ‘madrasta’ da (quanto a ele) inadiável ‘descentralização Municipal.’ O que
despertou o interesse e a entusiástica concordância dos jornais de Vila Franca. Que acham? Só de pensar que a Ribeira
Grande e Vila Franca se pudessem aproximar ou, maldição, onde é que já se vira
isso, mesmo ultrapassar Ponta Delgada, terá ‘compreensivelmente’ deixado sempre a cidade ‘insegura do seu porvir.’
No caso da Ribeira Grande a ideia viria já do século XVII, veja-se Frei Diogo
das Chagas, ou de 1852, na primeira tentativa de elevação a cidade. No caso de Vila
Franca (terra do meu bisavô oleiro) recuava a 1515. Não acham que o caso
mereceria uma atenção especial?
Para
terminar em grande, regressemos a Santa Iria de hoje? Duarte Monteiro da Silva, empresário da ‘Pure Sail’ e navegador experimentado em
muitos mares do Globo, em entrevista recente, confessou a este jornal:’ ‘Uma das
minhas sugestões e um dos projectos que gostaria de ver acontecer seria a
criação de pontos de ancoradouro.’[7]
Quais? Chegando à fala com ele, eis a sua resposta: ‘A minha ideia seria estes três pontos: aliviar as
marinas na altura do verão, no caso de São Miguel, trazer mais embarcações para
a costa norte e por último promover a oportunidade de dar a volta à ilha com
várias paragens. No caso do Porto de Santa Iria recuperado, certamente traria a
possibilidade dos utilizadores das boias desembarcaram em terra e utilizar os
serviços locais.’[8] Não será um desperdício
económico (histórico, desportivo, etc.) a Ilha teimar em desaproveitar Santa
Iria? E uma injustiça histórica? Quanto a mim, enquanto cidadão/historiador: SIMMMM.
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
[1] Barrett, Briant,
Relato da minha viagem aos Açores
1812-1814, Letras Lavadas, 2017, p. 157.
[2] ‘Ajuda P.t
Landing [Fenais da Ajuda]; Maya P.t– Landing; Formosa P.t Landing [Porto
Formoso]; Portinha P.t Landing - [Porto de Santa Iria]; Costa P.t Landing
[Ajuda].’ Uma carta, talvez de 1880, reproduz a carta de Vidal de 1844. Em
1886, Walter Frederick Walker (Ponta Delgada - 1846 -
Kent, 1924), filho de um
inglês nascido em Ponta Delgada, reproduz também a planta de Vidal. Em 1902,
continua o interesse britânico: ‘Portinha P.t - Landing [Santa Iria]; Formosa
P.t Landing [Porto Formoso]; Maya P.t Landing; Ajuda P.t Landing [Fenais da
Ajuda]; Costa P.t - Landing [Ajuda da Bretanha]; Port. Cappelas (Porto?); Fanais P.t Landing [Fenais da Luz].’
[3] ‘No outstanding
rocks, steamers can approach to within a quarter of a mile of the shore.’
[4] Haveria a considerar, antes da existência dos faróis, o primeiro da Ilha parece ter sido o da ponta do Arnel, no Nordeste, ainda na década de 1870, outras formas de afastar os barcos dos perigos da costa. Mas não vamos explorar esse assunto.
[5] [Padre Cristiano
de Jesus Borges?], A Descentralização,
O Norte, Ribeira Grande, Ano III, N.º 183, 12 de Novembro de 1898, p. 1.
[6] A Persuasão, Ponta
Delgada, 11 de Janeiro de 1899, fl. 3.
[7] João Paz, Entrevista a Duarte Monteiro
da Silva, Correio dos Açores, 21 de Agosto de 2022
[8] Conversa
telefónica com Duarte Monteiro da Silva, 24 de Agosto de 2022.
Comentários