Pior do que a morte só o
esquecimento?
(Porto de Santa Iria – XIII)
O
distinto Historiador, Jornalista e Guia de Turismo que foi Luciano da Mota
Vieira, em 1993, citando Oliveira San-Bento, alega que o porto de Santa Iria
teria sido ‘(…) muito melhorado na década
de trinta do presente século, por iniciativa do devotado ribeiragrandense,
Faustino Teixeira de Lima.’ [1]A
julgar pelas finanças do município, não creio que tenha ido além de modesta
obra.
Por que razão ou caprichos se desinvestiu no
porto de Santa Iria? Porque já havia o porto em Ponta Delgada? Porque custara
muito a fazê-lo, a refazê-lo (foi destruído parcialmente na década de noventa
do século XIX e muitas mais vezes sem conta), e a mantê-lo? Porque era melhor
apostar na alternativa das Capelas, assim cortar um potencial rival: Ribeira
Grande? São perguntas que, como micaelense da Ribeira Grande, com algum treino
em História e muito batido na vaga da vida, gostaria que me respondessem. Se alguém
souber e quiser responder. Obviamente.
Seria bom que nos fosse disponibilizada a
digitalização dos periódicos sobreviventes da Região (toda) em formato OCR (ou
outra forma melhor), como tenho defendido há umas duas décadas. Tal instrumento
de pesquisa, abriria portas hoje fechadas e levaria a à escrita da História dos
Açores no seu todo. Dever-se-ia pesquisar a Memória Oral igualmente. Por
exemplo, minha avó Maria Deodata Raposo Taveira Moura (n. 1892 – f. 1975),
dizia-nos que o irmão embarcara ainda rapaz nas Capelas num vapor para a
América. Se não me erra a memória, o irmão era mais velho e chamava-se António.
Na década de
quarenta com revisão actualizada na seguinte, Manuel Maria Sarmento Rodrigues,
almirante da Marinha de Guerra Portuguesa, administrador colonial e professor
de grande nomeada, estudou um a um os ancoradouros da Ilha de São (e o das
demais ilhas dos Açores). Sarmento Rodrigues caracteriza o porto de
Santa Iria como um ‘pequeno
desembarcadouro destinado sobretudo à pesca da baleia.’[2]
Mas, segundo o mesmo (e repetimos), diz que ‘Um bom local para um navio se acoitar é a
Baía de Santa Iria.’[3]
Sarmento Rodrigues diz mais: ‘A
costa Norte protege de todos os ventos do sul. Um bom local para um navio se
acoitar é a Baía de Santa Iria, logo para leste do Morro Grande.’ Porém,
repare-se, continua Sarmento Rodrigues, ‘Mas
é às Capelas que acorre o maior número de navios.’ E qual seria a razão?
Responde, atente-se bem na explicação: ‘porque
se trata ao mesmo tempo de um bom fundeadouro, conveniente desembarcadouro e,’ medite-se
na razão profunda, porque era ‘local
próximo de Ponta Delgada.’[4]
Próximo apenas no sentido geográfico? Ou próximo porque as Capelas pertenciam
ao Concelho de Ponta Delgada e há muito o porto das Capelas era rival do da
Ribeira Grande?[5]
E mais, numa altura em que as comunicações aéreas da Ilha eram através de
Santana, em Rabo de Peixe, Ribeira Grande, o mesmo Sarmento Rodrigues, que não
é da Ribeira Grande ou de Angra ou da Horta, sem se referir à Ribeira Grande,
mas a Angra e à Horta, assentando que nem uma luva na relação de receio
ancestral de Ponta Delgada (uma elite de poder influente aos ouvidos do poder)
que a Ribeira Grande pudesse disputar (ou apenas partilhar) a sua hegemonia,
escreve que ‘Em Ponta Delgada, capital da
ilha e primeira cidade dos Açores, vai-se pouco a pouco centralizando tudo.’ [6] Uma
ironia para quem se arroga a ser adversário do centralismo do Terreiro do Paço?[7] De tanto o querer combater,
copiou-lhe os vícios? Será? Segundo Manuel Barbosa, que há pouco chegara à
Ribeira Grande, para explicar a situação da Ribeira Grande, apontava o dedo ao
‘absentismo, o facto de viverem fora da
terra as famílias que maior riqueza aqui possuem, drena para longe uma boa
parte do seu rendimento, que vai ser gasto, na cidade, no continente ou mesmo
no estrangeiro.’[8]
Eis, pois, a causa e a consequência desse centralismo.
Por
esta altura ou pouco depois, seguramente na década seguinte, Humberto Bento de
Sousa, dono de uma fábrica de chá na Ribeirinha, António Barbosa e outros
sócios formaram uma empresa destinada à pesca de fundo. Adquiriram, para tal,
uma lancha. Foi destruída por um temporal.[9]
Neste tempo, ainda persistia o costume de ir e vir de barco do porto de Santa
Iria ao Porto Formoso no segundo Domingo de Setembro às festas de Nossa Senhora
da Graça. Havia (e há) uma ligação muito forte entre estas duas freguesias
vizinhas. Porque, na altura desta festa, chovia quase sempre o povo dizia que
eram as lágrimas da Senhora da Graça.[10] E
esta?
Na
costa Sul, no porto artificial de Ponta Delgada, refiro-me a 1943 mas
poder-se-ia ir até 1958, data da 2.ª edição actualizada, Sarmento Rodrigues que
como já dissemos percorrera pelo mar a ilha, diz que navios transatlânticos
tais como Vulcânia e o Saturnia ‘Ficavam
no fundeadouro exterior e, se o mar a isso obrigasse, iam tomar e desembarcar
viajantes às Capelas, na costa Norte.’[11]
Porque, e continuo a citar o estudo de
Sarmento Rodrigues: ‘O porto artificial
[Ponta Delgada] dá um bom abrigo para
todos os ventos, excepto os que vão de ENE ao SE. O de ESSE que é o pior,
levanta muito mar dentro do porto. Tanto o ONO, como o O ou o OSO entram na doca como oestes. As ventanias
do NO, N e NE, especialmente deste último quadrante, são más para os navios
atracados aos cais. Nesta situação, os próprios ventos de SO e SE – que não
sente soprar quem está atracado ao molhe (…).’[12]
Além
do mais, reforça-nos a ideia de que a ilha toda podia servir de ancoradouro.
Ainda hoje funciona assim com os pescadores da Costa Norte ou com os navios que
vêm-se abrigar à costa Norte: ‘S. Miguel
permite pela sua grandeza e pelo feitio levemente dobrado, que à sua sombra um
navio encontre mar relativamente tranquilo sob qualquer temporal. Mas em
contrapartida nem sempre tem bons fundos.’[13]
Elucidativo é o mapa em que o autor coloca âncoras (símbolo de ancoradouro),
referindo-me apenas a locais do Concelho da Ribeira Grande, Rabo de Peixe,
Ribeira Grande, Santa Iria e Porto Formoso. Na costa Norte, além dos locais
enumerados anteriormente, apenas Capelas. Mais uma vez se repete: É pois um
mito dizer que o mar do Norte não permite o que o do Sul permite.
Em
Dezembro do ano de 1949, como resultado de uma visita recente ao Porto de Santa
Iria, Tavares Barbosa ficou constrangido com ‘o estado de abandono em que se encontra,’ pois ‘o porto de Santa Iria, de velhas e honrosas
tradições, esta[va] em ruínas.’ E
descreve o que viu: o ‘cais está(va) totalmente destruído’ e também estava ‘o varadouro dos barcos de pesca,’ cujo ‘paredão de suporte deste varadouro está a
ruir pela base, na iminência de total desabamento, do que resultará, então, a
ruína total do porto.’[14] Daí,
os poucos pescadores sobreviventes iam ‘pensando
em mudar as suas embarcações para outro porto que lhes garanta a vida.’ Pedia
à ‘Junta Autónoma dos Portos, que do seu
alto critério lance(çasse) um olhar
de compaixão para o Porto de Santa Iria,’ e ‘à Junta de Freguesia da Ribeirinha compete o dever de velar pelos assuntos locais, quer oficiando
às entidades competentes, quer pela sus própria acção.’ Termina o seu
‘artiguete,’ como o designa, lançando ‘um
brado,’ que ecoasse ‘nos corações dos
homens de boa vontade: - Salvemos o Porto de Santa Iria!’
Lugar das Areias
– Rabo de Peixe
Mário Moura
[1] Vieira, Luciano
da Mota, Discurso comemorativo do 45.º
aniversário da elevação da Ribeirinha a freguesia proferido em 3 de Agosto de
1993, in Agostinho, Padre Artur Pacheco Agostinho, Livro do Tombo da
Ribeirinha, Volume 4, Data da Nota de Abertura: 30 de Março de 1993, pp. 8-8v.
[2] Sarmento
Rodrigues, Manuel Maria, Ancoradouros das
Ilhas dos Açores, Edição dos Anais de marinha, [1943], 2.ª edição 1960, p.
111.
[3] Sarmento
Rodrigues, Manuel Maria, Ancoradouros das
Ilhas dos Açores, Edição dos Anais de marinha, [1943], 2.ª edição 1960, p.
93.
[4] Sarmento
Rodrigues, Manuel Maria, Ancoradouros das
Ilhas dos Açores, Edição dos Anais de marinha, [1943], 2.ª edição 1960, p.
93.
[5] Por alturas da
intervenção em Santa Iria, rebentou uma violenta polémica às páginas dos
jornais, que atestam eta rivalidade. Na altura, a decisão pendeu para o mais
forte: Ribeira Grande.
[6] Sarmento
Rodrigues, Manuel Maria, Ancoradouros das
Ilhas dos Açores, Edição dos Anais de marinha, [1943], 2.ª edição 1960, p.
96.
[7] Ao não explorar
de modo científico a existência histórica de outras narrativas, que nos
apresentem a Ilha num todo e não a ilha vista de Ponta Delgada, cai-se na pouco
científica (porque também anacrónica e parcial) narrativa explicativa da
História da Ilha de São Miguel oferecida ao visitante do Museu Carlos Machado.
[8] Barbosa, Manuel,
Impressões da Ribeira Grande, A Voz
da Ribeira Grande, Diário dos Açores, Ponta Delgada, 12 de Fevereiro de 1949,
p. 2.
[9] Testemunhos de
Laureano de Almeida e Manuel Francisco Aguiar, 31 de Outubro de 2021.
[10] Testemunho de Laureano de Almeida, 31 de Outubro de 2021.
[11] Sarmento
Rodrigues, Manuel Maria, Ancoradouros das
Ilhas dos Açores, Edição dos Anais de marinha, [1943], 2.ª edição 1960, p.
94.
[12] Sarmento
Rodrigues, Manuel Maria, Ancoradouros das
Ilhas dos Açores, Edição dos Anais de marinha, [1943], 2.ª edição 1960, p.
97.
[13] Idem, p. 93.
[14]
Tavares
Barbosa, Atenção ao porto de Santa Iria,
Diário dos Açores, Ponta Delgada, 28 de Dezembro de 1949, pp. 1-2.
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