Ribeira Grande: Nascimento de uma
Vila
(Biografia)
O
porquê da légua? – III
Podia ter sido mais do que uma
légua? Ou menos? Frutuoso, na
sua versão da elevação do Lugar da Ribeira Grande a Vila, diz-nos que o termo
era constituído por uma légua à volta do pelourinho. Aliás, tal como o
termo de Ponta Delgada, pela carta de Foral de 28 de Maio de 1507. A da Ribeira
Grande, é bom tê-lo presente, é de 4 de Agosto de 1507. É isso que vamos tratar
agora.
Porquê uma légua? A resposta residirá
no limitado alcance dos meios de transporte e nas vias de comunicação. Dizem-nos,
propondo-nos uma possível explicação: ‘podemos
supor, na perspectiva de um morador do núcleo urbano, que se torne
progressivamente antieconómico o autoconsumo baseado na produção de géneros
alimentares em pequenas parcelas de terra situadas para lá desse limite.’ [1] Isto é novidade absoluta para mim, não tomei conhecimento
disso a tempo de o referir em Julho passado. Atenção: Nordeste, Água de Pau e
Lagoa (por razões diferentes), não iriam receber uma légua de termo. Nordeste
estava longe de tudo, como se fosse um outro mundo dentro da ilha, e Água de
Pau e Lagoa, encontravam-se encurraladas entre os dois rivais (Vila Franca e
Ponta Delgada). Lagoa e Água de Pau terão eventualmente sido pensadas para
servirem de áreas de contenção, como tentarei convencer-vos noutro artigo.
Voltando à légua. A que
corresponderia então uma légua? Não se sabe ao certo, porém, haverá um certo
consenso apontando para valores entre os 6.200 metros e os 6600. Mário Viana
inclina-se para o primeiro valor: ‘Estou
convencido que nos fins da Idade Média andaria pelos 6,2 km. Uns 28168
palmos craveiros (x 0,22 cm = 6196,96 m).’[2] O
que confirma o que escrevi em Julho. Poupo-vos à prova (extensa). Digo apenas
que é convincente. E coincide com as distâncias que nos dá Frutuoso.
Acho
que Mário Viana tem razão, aliás, 6 200 e tal pela légua, bate certo com a meia
légua (portanto: 3. 100 e picos, que Gaspar Frutuoso diz Rabo de Peixe distar
da Ribeira Grande.[3]
Atribuindo 6.200 à
légua, é possível confirmarmos outras distâncias. O Corregedor Régio, Doutor
Jerónimo Luís, em data anterior a 25 de Maio do ano de 1515, diz a D. Manuel I,
que saindo de Ponta Delgada andou ‘através
da ilha’ para ‘a parte do Norte
três léguas até chegar à Ribeira Grande.[4]
Multiplicando 6.200 metros por três, chegamos aproximadamente a 18 600 metros.
Ou seja, a distância da estrada velha que atravessa Rosto de Cão e desce a
Mediana e chega à Ribeira Grande. Mais uma confirmação, de novo Frutuoso. A
Ribeirinha dista do centro da Vila da Ribeira Grande, ‘um quarto de
légua.’[5] Ora isso
dá-nos cerca de 1. 550 metros. É o que dista (indo pela primitiva ligação pela
beira-mar, que ainda existe). E o Morro de João do Outeiro, que fica a ‘um
terço de légua (…).’[6]
Medindo hoje: 2.000 metros. Bate também certo. Três séculos depois, a
légua continua a ter essa mesma dimensão.[7]
Ainda em 1858, chega-se à mesma conclusão.[8]
Apesar
de se conhecer já a provável equivalência da légua em metros, temos ainda de
saber onde se situaria o pelourinho da Ribeira Grande. Porquê? Porque Frutuoso
nos diz que a légua foi atribuída em redor do pelourinho. Onde ficaria então o
pelourinho? Resposta: Não se sabe com rigor, todavia, supõe-se que, a exemplo
do que sucede em outros locais, ficasse defronte da Casa da Câmara. E onde
ficava a Casa da Câmara? Também não se sabe com rigor. Para o sabermos, seria
necessário conjugar os dados disponíveis com uma intervenção arqueológica. Mas,
não andaremos longe da verdade se dissermos que provavelmente ficaria num
espaço a Nascente do local onde se ergue o actual edifício da Câmara Municipal
da Ribeira Grande. A uns metros abaixo do nível actual do piso da praça do
Município, daí a premente necessidade de uma intervenção arqueológica.
Estamos
já prontos a procurar no terreno os limites de 1507? Sim, mas antes, um aviso:
conhecem-se razoavelmente os limites a nascente e a poente do concelho junto à
costa e pouco ou nada a partir daí até aos matos. E muito menos os limites a
Sul com os outros dois concelhos: Vila Franca e Ponta Delgada. Isto em 1507.
Posto isto, vamos ver até onde chegamos. Com que recursos? Além de Frutuoso, de
Monte Alverne e de outros escritores, vamos recorrer ao testemunho da própria
paisagem e da cartografia actual. Pedimos
apoio cartográfico a colegas.[9]
Que fizeram? Implantaram, a nosso pedido, num ‘ortofotomapa,’ como me dizem, a tal
légua (= 6200 metros) a partir de um ponto ligeiramente a nascente do
frontispício do edifício actual da Câmara, no que resultou a imagem que segue.
[Proposta
de reconstituição de Manuel António Pinheiro sob orientação de Mário Moura]
Onde chega para o lado nascente? Arranque
da Ladeira da Velha. Dá ou não razão à narrativa histórica conhecida? Dá. Prestemos bem atenção à descrição de Frutuoso: ‘desta
ribeira do Mel até a Gorriana, que atrás fica dita, é a freguesia do lugar de
Porto Formoso, termo de Vila Franca do Campo; da qual ribeira para o ponente se
começa o termo da vila da Ribeira Grande e vai subindo para cima a grande
Ladeira da Velha.’[10]
Quase três séculos depois de
Frutuoso, o minucioso engenheiro militar Francisco Borges da Silva, confirma a
localização. Francisco Borges da Silva dá o limite preciso: ‘Saindo do Porto Formoso para oeste encontra-se a 1/3 de légua a Ribeira
Seca que nunca seca. A 540 braças, a enseada, areal, ribeira e lugarejo dos
Moinhos do Porto, a ribeira nunca seca. A 168 braças a Grota da Ladeira, limite
do Lugar do Porto Formoso, e princípio da Ladeira da Velha que sobe 1/3 de
légua, e 84 braças bastantemente incómoda de inverno.’[11] Apesar de parecer dar outro nome, o
local do limite entre o Porto Formoso e a Ribeira Grande coincidirá com o que
Frutuoso indicou no século XVI. Conheceria o trabalho de Frutuoso? É pouco
provável, pois só foi publicado anos depois. O trabalho deste engenheiro terá
sido publicado em 1815 ou em 1814 ou ainda em 1813, mas terá sido fruto de uma
recolha que fez em 1811, quando tinha apenas 25 anos. Salgado Martins
informa-nos que iniciou ‘em 3 de Julho de
1811 (…) o reconhecimento da ilha,
utilizando prioritariamente o transporte marítimo, por lhe permitir uma
excelente observação da linha costeira e por ser mais rápido, dadas as péssimas
condições das vias de comunicação terrestres.’[12]
Afinal, onde fica esta ribeira do
Mel de que nos fala Frutuoso? Segundo me informaram, hesitantemente, os locais
designam-na por ribeira do Melo. Que nome tem hoje? A carta militar dá-lhe
outro nome: ribeira do Pico.[13]
Ribeira do Mel, do Melo ou do Pico, aí corre a água de Nossa Senhora da Graça.
A ribeira desagua na Praia dos Moinhos.[14]
Por onde corre a ribeira do Mel ou do Melo ou do Pico? Tudo indica que sim.
Portanto, segundo Frutuoso, o
concelho da Ribeira Grande começava aí. Querendo confirmá-lo, voltamos a
implantar numa carta actual uma légua (com a medida de 6 200): a ribeira do
Mel/Pico fica entre 6.300 a 6400 metros. Um pouco mais além, para apanhar a
ribeira. Portanto, um acerto no terreno. Aí terá sido colocado um marco?
Se dissermos a alguém da
Ribeirinha ou do Porto Formoso que o limite inicial era na Ladeira da Velha,
dizem-nos logo, ‘não senhor, estás bem
enganado, é na Grota do Sombreiro.’ E têm razão. Esta grota fica depois do
miradouro de Santa Iria e antes da ribeira do Salto. Não sabemos nem quando nem
a razão da mudança, podemos apenas especular. Podemos lançar como hipótese que
terá mudado em data posterior a 1811, após o estudo de Francisco Borges da
Silva. Provavelmente, depois de 1820, altura em que o Porto Formoso entra no
Concelho da Ribeira Grande?[15] As
propriedades do Lameiro (medidas em vara pequena), seguiam o trajecto da Grota
do Sombreiro, junto à costa, ficavam dentro do Concelho, junto aos matos,
entravam no Porto Formoso. Com o Porto Formoso (onde as terras eram medidas
pela vara grande) já no concelho, tornara-se fácil acertar os novos limites? Ainda em 2020, terrenos do Lameiro motivaram acertos
nos limites entre a Ribeirinha e Porto Formoso. Outra hipótese. Entre 1861 e 1863, a pedido do
Governo Civil, realizaram-se reuniões entre os municípios para acertarem os
seus limites territoriais. [16] Em 1868, ‘A Freguesia do Porto Formoso foi anexada pela Excelentíssima Junta
Geral de Distrito à Paróquia Civil da Matriz e outras freguesias desta Vila.’[17] Pode também ter sido neste período? Que não terão
agradado? O motivo
central que levou ao alevante de 1869, segundo uma autora, terá sido o valor
tributável atribuído no cadastro predial. [18]
A tradição oral, não o negando,
guardou outra memória dos acontecimentos: ‘(…) o motim fora preparado, pelo
grande proprietário e senhor de alguns morgadios, o soba José Jácome Correia,
em demanda, então, com o tio, Morgado Ildefonso Raposo Bicudo Correia, dono de
alguns prédios do referido Lugar da Ribeirinha, para que este último apresentasse
na Relação – Tribunal Judicial de Segunda Instância – documento comprovativo de
que estes prédios eram seus. E o régulo, lá ficou com eles. - Que contas terão
prestado ao Altíssimo as pessoas, que entraram neste enredo, ou trama !!!.’ [19] Haverá alguma ligação à reformulação dos limites?
No dia 30 de Dezembro de 2021, uma
quinta-feira fria e chuvosa. Fazia vento. Entre as 9 e meia e as 11 da manhã, estive
de novo na Praia dos Moinhos. Fiz-me acompanhar das Saudades da Terra e das
notas do engenheiro Silva. Li e reli, o que Frutuoso escreveu, o que o
engenheiro Silva escreveu e o que a légua dá. Só pode ser aqui mesmo. Confirmei
a tal ribeira na grota ou ribeira do Mel (hoje ribeira do Pico) a seguir à
ribeira dos Limos. Colhi imagens.
Mário
Moura
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
[1] Viana, Mário, Espaço e povoamento numa vila
portuguesa: (Santarém 1147-1350)/; Edição da Tese de Doutoramento
em História Medieval apresentada à Universidade dos Açores, Casal de Cambra:
Caleidoscópio, 2007
[2] Mário Viana a Mário Moura, 19 de Fevereiro de 2020.
[3] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro
Quarto, IV Volume, Ponta Delgada, 1998, p. 192.
[4] Cf. ANTT, Gaveta
15, Maço 21, Documento 17, Carta enviada ao rei D. Manuel I pelo Corregedor dos
Açores, Doutor Jerónimo Luís, 1515, Maio, 25, Vila Franca do Campo, Citado por
Lalanda, Margarida de Sá Nogueira, A
Sociedade Micaelense do século XVII: Estruturas e Comportamentos,
Dissertação de Doutoramento, Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1995, p.
p. 75, fl.2.
[5] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro
Quarto, IV Volume, Ponta Delgada, 1998, p. 186.
[6] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro
IV, ICPD, Ponta Delgada, 1998, p. 192
[7] Talvez em 1814, pois há entradas de
1813: Silva, Francisco Borges da (engenheiro), Notas e Estatísticas da Ilha de São Miguel, Princípios do século
XIX, in A Revista Michaelense, S.
Miguel, Açores, Ano II, N.º 5, Novembro de 1919, p. 485: ‘A ½ légua ao
Sul da Vila, 3 ½ da cidade, tem 110 almas em 35 fogos [lugarejo das Gramas].
(…) O lugarejo da Longaia 1/3 de légua da Vila da Ribeira Grande, tem 36 almas
em 9 fogos.’
[8] AMNSE, Ribeira Grande, Colecção de
Quesitos dirigidos aos párocos em 1858, O Prior Manuel Cabral de Melo, 15 de
Agosto de 1858, fl.132: A que distância estão da Matriz? (…) a [igreja ]de Rabo de Peixe a uma légua (…).’
[9] Arquitecta Catarina Pacheco Vieira, da Câmara Municipal
da Ribeira Grande. Já em 2021 e 2022, juntou-se-nos o arquitecto André Franco.
Hoje, dia 27 de Abril de 2020, quis confirmar junto do meu colega Manuel
António Pinheiro Alves, ele, em Trás-Mosteiros, na cidade da Ribeira Grande,
eu, nas Areias, em Rabo de Peixe: Podes fazer o favor de confrontar 6.200 metros
à volta do pelourinho que estaria à frente do Centro do Artesanato, antes
Bombeiros, e a área actual do concelho? A poente, disse-me, chega até à canada
do cemitério, em Rabo de Peixe, para as Calhetas, faltam cerca de 1800 a 2000
metros. E para cima, para sudeste? Mais uns 2.800 a 3000 metros. Vamos para
Sul: chega até à Mediana mas faltam uns mil metros para o lado da Lagoa do Fogo
e do Monte Escuro. A Nascente entra um pouco na área do Porto Formoso.
Portanto, deve ter sido objecto de negociação.
[10] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV,
ICPD, 1998, p. 185.
[11] Talvez em 1814, pois há entradas de
1813: Silva, Francisco Borges da (engenheiro), Notas e Estatísticas da Ilha de São Miguel, Princípios do século
XIX, in A Revista Michaelense, S.
Miguel, Açores, Ano II, N.º 5, Novembro de 1919, p. 485.
[12] Martins, José
Manuel Salgado, Os engenheiros militares
na Ilha de S. Miguel na transição do século XVIII para o XIX, Letras
Lavadas, Ponta Delgada, 2015, p. 73.
[13]
https://www.arcgis.com/apps/webappviewer/index.html
[14] Testemunho de
António Faria, via telemóvel, 16 de Setembro de 2020.
[15] Há ainda a
hipótese, há que dizê-lo, que a alteração possa ter sido feita antes de finais do
século XVII, se Agostinho de Monte Alverne ao afirmar que a vara pequena
existia só no Distrito da Ribeira Grande se refira da Grota do Sombreiro à
canada de São Sebastião. Porém, porque não o diz, resta ainda a hipótese de a
área ir além da Grota do Sombreiro. Só um documento nos tiraria a dúvida.
[16] AMRG, Sessão de
11 de Abril de 1861, 1861-1863, fl. 2 v: ‘(…) um ofício do Administrador deste Concelho com data de 3 do corrente
acompanhando três cópias das actas concernentes à demarcação territorial deste
Concelho com os Concelhos confinantes da Vila – de Nascente – Povoação e Vila
Franca do Campo; faltando as que dizem respeito aos limites com Ponta Delgada,
e Lagoa.’
[17] O Fórum, Ribeira Grande, 19 de Outubro de 1868
[18] Miranda, Sacuntala, Quando os sinos tocavam a rebate: Notícia
dos alevantes de 1869 na Ilha de São Miguel, Edições Salamandra, 1996, pp.
101-102: não consta dos instigadores.
[19] Silva, João Cabral de Melo e, Concelho da Ribeira Grande, [S.l.: s.
n.], 1959, pp. 16 – 17
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