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Ribeira Grande: Limites - VII

Como reagiu Vila Franca à constante perda de poder? – VII

O Porto não tem os favores da proximidade do poder.’ Balsemão, Francisco Pinto, Entrevista a Rui Vilar, Revista Expresso, 6 de Maio de 2022, p.88

Protesta e inunda o Rei com pedidos, aos quais, o Rei, no geral, faz vista grossa. O protesto? O comportamento dúplice de um procurador que fora ao Reino em nome dos então quatro Concelhos da Ilha tratar de assuntos de interesse geral da Ilha, e que aproveitara a oportunidade para, nas costas de Vila Franca, tratar de assuntos de Ponta Delgada. O caso explica-se em pouco mais do que um ai: ‘senhor desta ilha foi a Vossa Alteza um procurador / por mandado das Vilas e povo todo requerer algumas coisas que lhe eram necessárias o qual levou nossos dinheiros e procuração.’ Até aqui cumpriu o que lhe fora incumbido, porém, o que fez a seguir, mereceu o veemente e justo protesto de Vila Franca: ‘e sendo assim nosso procurador depois de ter despachado o que lhe per nos foi encomendado / ele por ser morador da Ponta Delgada / foi em nome dela pedir a Vossa Alteza o nosso termo.’ Além de deslealdade, implicitamente, acusam Ponta Delgada de querer ‘usurpar’ os velhos direitos da mais antiga e mais importante vila da ilha: ‘não sendo contentes do termo que lhe vossa alteza deu quando os fez vila (…).’ Além do mais, o aumento do termo de Ponta Delgada, em 1515, resultando de uma astúcia e de uma informação errada, fora concretizado à revelia de Vila Franca: ‘e a qual mercê lhe vossa alteza ora fez pela informação que lhe pera isso foi feita como deus melhore / e o Corregedor os meteu logo de posse do dito termo / e nos esbulhou sem nos querer mostrar a carta da mercê (…).[1] Ponta Delgada apoderara-se até, na sua perspectiva, indevidamente de uma determinada canada ‘e agora ao termo da vila da Ponta Delgada caiu um pedaço desta canada desta dada a qual eles ora dizem que é sua / e a ocupam com eiras e a arrendam pera o Concelho da dita Vila (…).’ E pedem a sua ‘alteza mande desocupar toda a dita canada.’ Sendo as grandes querelas com Ponta Delgada, todavia, em grau menor, Vila Franca também se queixava dos demais concelhos. Os moradores de Vila Franca que possuíam bens fora do seu termo viam-se impedidos de levar as suas produções para Vila Franca: ‘(…) os juízes e oficiais das ditas vilas em termos o não quiseram consentir dizendo que estavam em seus termos.

Ao tentar manter o seu poder na Ilha, a Câmara de Vila Franca, ter-se-á feito de desentendida acerca da evidente preferência do monarca por Ponta Delgada. Que fazer, então? Tentou desesperadamente um último recurso. Fingiu não entender a preferência do Rei e jogou uma cartada arriscada. Já que não era a única Vila da Ilha ainda poderia continuar a ser a mais importante Vila da Ilha. Como? Era a Vila a mais antiga. Para provar o seu direito histórico ao termo, adiantam uma data que hoje sabemos ser errada: ‘de que estamos de posse de 80 anos e mais.’  Sendo historicamente impossível admitir que Vila Franca fosse em 1515 ‘Vila há 80 anos,’ pois, apontaria para o ano de 1435, só se percebe o facto como argumento para tentar convencer o monarca da primazia de Vila Franca do Campo sobre Ponta Delgada. Até porque há uma confusão entre ser Vila, que terá acontecido entre 1474 e 1485, e ser sede da capitania e da alfândega. Será que o Rei não conhecia a História correcta? É pouco provável que não soubesse, fora donatário antes de ser Rei e continuava sendo-o agora que era Rei. Mesmo que soubesse, ainda era a mais importante vila da Ilha. Ou assim se considerava. Não esquecer que o Corregedor, em 1515, como já dissemos em artigo anterior, com as reservas e intenções que apresentámos, apontava Ponta Delgada como a maior Vila da Ilha. Vila Franca alegava, por seu turno, ‘ser a primeira e mais principal desta ilha e os capitães terem aqui seu aposentamento e assim almoxarifes, contador e assim o porto dela ser o melhor desta ilha por respeito de um ilhéu que tem a que se recolhem muitos navios.’ Além disso, lembravam ao Rei, ‘vossa Alteza mandou aqui fazer sua alfândega pera despacho dos navios.’ Quanto a isso, não podia haver contestação. Era assim mesmo. Mais tarde, Frutuoso escreveria o mesmo.

 

Mas outro perigo, ainda mais importante do que a perda de termo, ameaçava o poder de Vila Franca sobre a Ilha: ‘o contador por ter sua fazenda no termo da vila da Ponta Delgada se foi lá morar / e lá despacha os navios sem virem a esta alfândega / e diz que a quer lá mudar.’ Aí residia a verdadeira ameaça à hegemonia de Vila Franca. E os responsáveis estão bem conscientes disso. Elas sabiam que caso isso se concretizasse, seria causa da ruína de Vila Franca: ‘será causa de se irem dela todos os mercadores tratantes e ela irá em deminuimento de sua honra.’ Pelo que pediam ‘mercê a Vossa Alteza queira mandar que o contador e almoxarife estejam nesta vila e que não haja aí outra alfandega senão esta e este aqui sempre como está de 80 anos a esta parte e que aqui se despachem todos os navios e não em outra parte nenhuma.’[2] O Rei, o que respondeu a esse e aos outros pedidos? Tanto quanto se sabe, pelo menos nós, não deu resposta nenhuma. Se deu, não satisfez. Não conhecemos a resposta, conhecemos o silêncio que nos diz mais do que a resposta. O Rei pretendia outra coisa.

 

Haveria alguma maneira possível de contrariar esta tendência? Havia, pensaram. Em desespero de causa, parece-nos, jogaram uma última e arriscada cartada. A única forma de a sua primazia ser indiscutível, pensaram, seria no caso de a Vila passar a Cidade. Assim, Vila Franca pede (repare-se) repetidamente ao Rei que a eleve à categoria de Cidade: ‘(…) antes ser acrescentada em mais honra e ser feita cidade de graça como senhor lhe já tem pedido em outros apontamentos que já lá são a vossa alteza (…).’[3] A última súplica conhecida – não se deve por de parte a existência de outras, entretanto, desaparecidos ou ainda não reencontradas -, terá sido enviada ao Rei numa data entre 1515 e 1518? A carta ao Rei terá sido escrita pouco depois de 8 de Agosto, mais precisamente depois do Corregedor ter, em nome do Rei, passado legalmente os ditos Lugares para Ponta Delgada. O Rei certamente não apostava na continuidade do poder de Vila Franca, tinha, naquela altura, outros planos em mente: estava a reorganizar a Ilha da Madeira. O Funchal fora elevada a cidade em 1508 e, em 1514, criado o Bispado do Funchal, ao qual os Açores estavam subordinados. Não estava nos planos de D. Manuel criar cidades nos Açores. Na década de trinta, o filho, D. João III, após a reorganização da Madeira, voltando-se para os Açores, escolheu Angra: em 1534 criou a cidade de Angra e em 1535 (apesar da fífia de Roma, prontamente corrigida, que a coloca em Ponta Delgada) Angra foi escolhida para sede do bispado. Escolheu Angra pela sua excelente situação geográfica: era uma angra abrigada num espaço central das ilhas que daria bom apoio e abrigo à ‘Carreira da Índia.’ Na década seguinte, em 1546, quando precisou de um segundo porto alternativo, criou uma cidade em Ponta Delgada. Por que escolheu Ponta Delgada e não Vila Franca que tivera sempre melhores ancoradouros do que os areias e as duas calhetas de Ponta Delgada? Resposta possível, porque sempre poderia mudar tudo, ou seja mudar o que era de Vila Franca e fora para Ponta Delgada. Talvez porque, havendo-se mudado a Alfândega e o Almoxarifado para Ponta Delgada, o poder mudara-se de Vila Franca para Ponta Delgada. E não convinha mudar até porque a área onde estava implantada Ponta Delgada era mais segura e calma do que a de Vila Franca? Nada lhes sucedera de mal em 1522 nem haveria de suceder em 1563, como voltaria a suceder a Vila Franca. Pode ser que fosse. Assim, por uma ou várias razões, concretizara-se os planos da coroa, iniciados ainda no tempo de D. Manuel I? O que fez Vila Franca então? Minimizar danos. Como? Não era cidade, mas mantinha o seu termo. Vila Franca pede ao Rei para impedir que houvesse uma nova amputação ao seu termo. Com a criação da Vila da Lagoa, em 1522, a Ilha atingira, na perspectiva do Rei, um ponto de equilíbrio estável, que só terminaria em 1820’s. Desta vez o Rei acede ao pedido. A 2 de Abril, eleva Ponta Delgada à categoria de cidade, a 30 de Abril, impede que o Lugar da Maia passe a Vila. A Povoação também vai pedir, sem sucesso.

Como o Corregedor Régio fosse pondo cobro, uma a uma, a situações que iam contra a vontade do Rei, com o poder de Vila Franca quebrado, mediante garantias e poderes reduzidos, a 22 de Agosto, era seguro o Rei restituir a ‘Rui Gonçalves da Câmara Capitão da Ilha de São Miguel (…) a jurisdição da dita capitania de que foi privado por sentença.[4] Seis dias depois, outra carta confirma Simão Lopes de Almeida como Juiz dos Órfãos da Ribeira Grande. Com a mesma data, outra carta confirma o de Ponta Delgada.[5]

 

O Rei sabia bem o que queria, infelizmente para o Historiador, apenas podemos nos aproximar do seu pensamento através de meras hipóteses. Não será inverosímil admitirmos que, aqui vai uma hipótese, além de pretender promover um maior e mais rápido desenvolvimento da ilha, o Rei tivesse pretendido dividir para melhor reinar? Equilibrar os poderes da Ilha, criando um bloco forte a Poente (em cujos responsáveis ele parece confiar) em contraponto a outro a Nascente (de cujos responsáveis ele desconfia) e com concelhos tampão entre os dois (para prevenir e conter os dois blocos)? Controlar funcionários régios e municipais? Criar laços directos de lealdade com a coroa. Se, em política, o que parece é, como parece ser o caso: para além de tudo o mais, o monarca também quis quebrar (dividindo) qualquer poder hegemónico, sobretudo, o poder sediado em Vila Franca do Campo. Não nos referimos apenas ao poder municipal, mas ao da Ouvidoria da Ilha, da sede do capitão-do-donatário, da Alfândega, do Almoxarifado. Posso estar redondamente enganado, no entanto, com os dados de que disponho, parece-me uma hipótese credível. Claro, até prova em contrário. Que vos parece? No próximo artigo, seja lá quando me for dada nova oportunidade de o partilhar convosco, irei ver à lupa o que disse o cronista Frutuoso sobre a passagem ‘do morgadio,’ como ele se lhe refere, de Vila Franca para Ponta Delgada. Antecipando, Frutuoso atribui-o a um Castigo de Deus, cuja origem, alega, pertencerá aos desígnios de Deus. Começara antes, com os contornos de mito fundacional que derivara de uma briga sacrílega contra os de Ponta Delgada provocada pelos de Vila Franca durante uma procissão? Não deixa a razão de estranhar que Vila Franca fosse a única pecadora da Ilha merecedora de castigo divino. Ou então, pode suspeitar-se de que resultasse de uma versão posta a circular por gente da ‘mais honrada Vila da Ilha - Ponta Delgada,’ atirando as culpas pela usurpação aos altos desígnios de Deus. Muito pior, culpa por se ter aproveitado da desgraça alheia para lhe tirar o seu legítimo lugar. A resposta poderá, em parte, ser-nos dada pela distinção que Walter Benjamin faz entre Cronista e Historiador. Como tentaremos ver.

 

Mário Moura

Lugar das Areias – Rabo de Peixe



[1] Cf. ANTT, Gaveta 20, Maço 2, Documento 46, Apontamentos e queixas enviadas ao Rei D. Manuel I em nome do Concelho de Vila Franca do Campo, 1515 (?), Citado por Lalanda, Margarida de Sá Nogueira, A Sociedade Micaelense do século XVII: Estruturas e Comportamentos, Dissertação de Doutoramento, Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1995.

[2] Cf. ANTT, Gaveta 20, Maço 2, Documento 46, Apontamentos e queixas enviadas ao Rei D. Manuel I em nome do Concelho de Vila Franca do Campo, 1515 (?)

[3] Idem.

[4] A Rui Gonçalves da Câmara Capitão da Ilha de São Miguel Carta por que foi restituída a jurisdição da dita capitania de que foi privado por sentença, etc, 22 de Agosto de 1515, Costa, José Pereira da, Prefácio, (Direcção, leitura, prefácio e notas), Livro das Ilhas, Região Autónoma da Madeira, Região Autónoma dos Açores, 1987, fl. 232.

[5] Carta de D. Manuel de 28 de Agosto de 1515, confirmando a eleição de Simão Lopes de Almeida, para Juiz dos órfãos da Ribeira Grande, ilha de S. Miguel, Retirado do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Livro 24 das Doações de D. Manuel I, folha 114, publicado em o Arquivo dos Açores, Vol. III, 2.ª edição, 1981, pp. 205-206.

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