O que terá acontecido ao Porto de
Santa Iria? – XIII
Por
que haveriam os senhores ‘das terras de
pão e de outros frutos’ da Ribeira Grande e seu termo (seus moradores ou
não) bem como os de ‘certas partes do
Norte’ (moradores ou não) de querer o porto dos Carneiros na Lagoa se já se
serviam do de Ponta Delgada a Sul e do de Santa Iria a Norte? Podendo
igualmente dispor do porto do Porto Formoso, segundo Frutuoso, o melhor do
Norte da Ilha antes do ‘segundo terremoto
e fogo,’ que ficava ao lado de Santa Iria.[1]
Escassas linhas abaixo, na versão impressa, o mesmo Frutuoso já diz que era ‘o melhor de toda a ilha.’[2]
Que quis dizer
Frutuoso com isso: que era o melhor da Ilha inteira ou apenas do Norte Ilha? E, no entanto, também nos diz que no
Porto Formoso, além da construção de navios, vararam ‘alguns navios e carregaram muitos trigos.’[3] Em que pé ficamos? O ‘que não te remédio, remediado está:’ só
temos a versão dele. Saindo deste porto do Porto Formoso, em caso de
necessidade, ainda se poderia recorrer aos portos da Maia, dos Fenais da Ajuda
e da Achada. Ficavam um pouco mais distantes, mas ainda muito perto.
Tanto
mais que, em 1525 a Câmara da Ribeira Grande investira no acesso ao porto de
Santa Iria: ‘cortando o pico da fajã de cima
direito ao dito porto e varadouro dos batéis, para se poder carregar trigo e
outras coisas nele, pois não se sofria a descida pela rocha e caminho de pé.’[4] O que terá então pretendido a Câmara
com aquela obra? Ou o Rei através do seu Corregedor? Como a acta em causa não nos
chegou, resta-nos a versão de Gaspar Frutuoso. E era importante que tivesse
chegado. É bem possível que aí confirmássemos Frutuoso e encontrássemos novas
pistas. Pistas cruciais na construção da nossa própria versão, mas que não terão
interessado a Frutuoso. Apesar dessa lacuna, pelo que Frutuoso nos foi deixando
ao longo dos fólios da sua narrativa, assim como algum documento, cremos talvez
- insistimos no talvez – ser possível propor (com reservas) uma ideia
aproximada do que se pretendeu com Santa Iria. O contrato para a elaboração da
obra, assinado na Casa do Concelho,
juntou veteranos da elevação a Vila e elementos da nova geração da governança:
‘António Carneiro [e] Diogo de Sousa, Juízes Ordinários,’
vinte anos antes, o primeiro, mais o cunhado Rui Tavares, haviam sido (fazendo
fé em Frutuoso) os cérebros e os homens de acção do nascimento da Vila; ‘Fernando Anes e Álvaro de Horta, vereadores,’ Álvaro, filho de João da
Horta, outro fundador da Vila, casou com uma neta de Rui Tavares; ‘Álvaro Gonçalves, procurador do Concelho,
e João de Abrantes e Álvaro Afonso, procuradores dos misteres, e muitos homens
da governança da dita vila.’[5]
Tão ou mais importante, o que pretendeu o Corregedor Régio António Macedo ao
mexer os cordelinhos para a obra avançar? Pôr em prática instruções do Rei? Sem
dúvida.
O
que poderiam pretender com as obras de Santa Iria de 1525 o Rei (através do seu
Corregedor) e aqueles representantes dos interesses da elite da governança da
Ribeira Grande?
Tal
como viria a acontecer no século XIX, terão pretendido criar no Norte da Ilha
de São Miguel um porto de mar que possibilitasse o desenvolvimento da Ribeira
Grande e do seu termos ao mesmo tempo que fosse um porto complementar aos
portos do Sul. Este é o nosso palpite, até prova consistente em contrário. Funcionaria
como um eixo giratório das exportações de algumas partes do Norte da Ilha. Os
batéis poderiam levar aos navios fundeados na baía de Santa Iria o trigo
produzido na Ribeira Grande e o que chegava à Ribeira Grande vindo das partes
do Norte. Não esquecer que a partir da sagração da Igreja de Nossa Senhora da
Estrela em 1517, segundo Monte Alverne, se dera início a uma peregrinação
anual. Acorriam à Ribeira Grande gente de todas as partes da ilha e das outras
ilhas, estes últimos chegariam por mar a Santa Iria. Era uma espécie de Santo
Cristo de então?
Seriam
essas as expectivas da Câmara, representante dos senhores da terra, que excluía
tudo que não o fosse, ao contratar em 1525 a obra de acesso ao porto de Santa
Iria? E as do monarca? Era ainda o que desejavam igualmente os donos de terras na
Ribeira Grande mas que moravam fora dela, no seu termo, na costa norte, noutros
concelhos da Ilha ou mesmo fora da Ilha? Não sabemos, falta-nos a acta, como já
dissemos. Ou outros documentos. Mesmo assim, há uma certeza: as obras não foram
feitas contra a vontade do Rei. Não podiam. Até podem ter sido feitas por sua
iniciativa. Partilhassem ou não todos ou só alguns daquelas intenções para o
porto de Santa Iria, o porto dos Carneiros na Lagoa talvez na década de
quarenta ou na seguinte substitui Santa Iria.
Porquê se alteraram os planos? O que temos para discutir o assunto? Escassos
documentos e o que nos deixaram os cronistas, nada mais. Vamos aos factos relatados
pelos cronistas. Tudo somado, a informação não chega para responder além do
satisfatório e do plausível ao porquê da troca de Santa Iria pelos Carneiros.
Ainda assim, vamos tentar lá chegar o mais próximo possível. Frutuoso, sem nos acrescentar
mais quaisquer explicações, como razão da mudança, apenas diz: ‘pela costa ser brava, não presta a esta vila
para navios, nada se carrega nele e só serve de batéis (…).’[6] O
que nos leva a fazer uma pergunta a Frutuoso: que se passara de 1525 até à
altura em que escreveu esta passagem? O mar e a costa sofreram alterações
drásticas? Não me parece. Que se conheça, houve constrangimentos pontuais na
sequência de 1563, 64, mas nada de tão drástico. Três séculos depois, na década
de quarenta do século XX, Sarmento Rodrigues dizia que o melhor ancoradouro a
Norte da Ilha era em Santa Iria. No entanto, recorria-se, por ficar mais perto
de Ponta Delgada, às Capelas.
Ou terão antes chegado à
conclusão de que para que o porto de Santa Iria pudesse cumprir o que se
esperava dele, era necessário melhorar-lhe o acesso por mar, fazer obras no
porto e no varadouro daquele porto? E retirar alguma pedra no fundo da baía,
como haviam feito (e continuavam a fazer) no porto de Ponta Delgada? Além de
construir casas de apoio para guardar cereais enquanto o navio não chegasse ou
não pudesse aproximar-se da terra? Logo, poderemos levantar a hipótese de que
as obras de 1525 teriam sido insuficientes. Tratar-se-ia de uma primeira fase
de obras? Outras deveriam segui-las? Se assim foi, por que não se avançou para a
fase seguinte? Porque não havia capacidade técnica então para executar as obras
necessárias? Havia capacidade, mas não havia verbas disponíveis? Havia primeiro
que preparar o porto de Ponta Delgada apetrechando-o com instalações para o
Almoxarifado, a Alfândega, varadouros e fortalezas de protecção?
Como
responder a estas questões? Vou tentar ‘conversar’ com os cronistas (uma
espécie de revisão de pares a longa distância) e ‘espremer’ algum documento que
se relacione com o assunto. Vamos a isso? Acerca
da troca de Santa Iria pelos Carneiros, informam-nos os cronistas Gaspar
Frutuoso, Diogo das Chagas e Frei Agostinho de Monte Alverne. Comecemos pelo
primeiro: ‘por sentença em um litígio que
tiveram.’[7]
Diogo das Chagas, pouco mais de meio século após a morte de Frutuoso,
esclarece-nos: ‘por provisão de El-Rei D.
João 3.º’ Tendo Frei Diogo provavelmente visto e lido o documento de que
nos fala, que era ‘bem pequeno e em papel
sem pergaminho, indica-nos ‘aonde a
podem os curiosos ver.’ Era: ‘no tomo
da Vila de Alagoa, por parte dos da Câmara da Ribeira Grande está registada.’[8] Monte Alverne, além da Lagoa, inclui a
Ribeira Grande: ‘tombada nos livros das
Câmaras desta Vila e Alagoa.’[9] Monte Alverne e Chagas terão muito
provavelmente visto o que nos dizem. [10]
Sendo
o bê à bá de qualquer candidato a Historiador ir às fontes citadas, que os
cronistas garantem ter visto e com as quais construíram as suas versões, fui à
cata dos livros das Câmaras da Lagoa e da Ribeira Grande. À partida, esclarecer-se-ia
uma dúvida: a
diferença entre ‘sentença de um litígio’
como nos diz Frutuoso, e ‘provisão,’
como diz Chagas. Seria, sobretudo, de primordial importância, analisarmos as razões alegadas na ‘provisão.’ Por outras palavras, quais
seriam os limites, os deveres mútuos (se fosse o caso) e as razões pelas quais
o Rei concedeu o porto dos Carneiros à Ribeira Grande. De quem teria partido a
iniciativa? Do Rei ou da elite governativa da Ribeira Grande? Quando se iniciou
e concluiu aquele processo? Quem teria estado envolvido no processo? Resultado
da nossa pesquisa? Zero. Perderam-se as actas. Como continuasse - assim como
continuo -, a querer ler a tal sentença/provisão, recorri à Torre do Tombo.
Pedi ajuda aos arquivistas daquela instituição, vi/consultei com cuidado o que
existe disponível nas Chancelarias Régias. Resultado? De novo: zero.
Apesar
disso, para começar, parece óbvio que sentença remeterá para uma
decisão/resposta legal relativa a um litígio. Certo? E provisão? Será antes o
documento legal que originou o litígio. Começou por uma provisão do Rei que foi
contestada sem sucesso (litígio) pela Câmara da Lagoa. Tudo aconteceu no reinado
de D. João III.
De que se terão queixado em
concreto os da Lagoa ao Rei? Eis o que os cronistas nos dizem: ‘polos quererem obrigar a que as suas carregações sem dependência
desta outra vila e assim o que lá vem despachado passa por ela direito ao porto
sem outra alguma dependência, como consta da sentença que no tomo da Vila de
Alagoa, por parte dos da Câmara da Ribeira Grande está registada.’[11] A
Lagoa, porque certamente não retirava proveito, e ainda teria que manter (será
que tinha?) aquele porto em condições de operacionalidade, protestou (foi
assim?) pelo uso que a Ribeira Grande fazia do porto dos Carneiros como se
fosse seu: O Rei foi a
favor da Ribeira Grande, isto sabe-se. Havia necessidade de dar saída rápida ao ‘pão e outros frutos,’ com origem na Ribeira Grande e seu termo,
assim como de ‘outras partes do Norte.’
Corriam-se riscos, se se esperasse a vez no movimentado porto de Ponta Delgada,
disponível para abastecer as armadas das Índias (de Portugal e eventualmente de
Castela). Além das constantes obras de Santa Engrácia naquele porto.
Que
achariam os responsáveis da Alfândega em Ponta Delgada do uso que a Ribeira
Grande, o seu termo e partes do Norte iriam fazer do porto dos Carneiros? Seria
um abuso? Estariam a aliviar o movimento do porto de Ponta Delgada? Concedendo
autorização à Ribeira para operar no porto da Lagoa estariam a diminuir o risco
de contrabando através do porto de Santa Iria? Posso estar enganado, mas acho
que Ponta Delgada (Câmara) além de não pôr qualquer obstáculo até pode ter
subscrito o pedido feito nesse sentido ao Rei ou ter concordado de imediato com
a medida Real. Repararam que ainda não dei qualquer explicação por que razão o
porto se chama de Santa Iria? Acho que é tempo de o fazer. Convoco Gaspar
Frutuoso, o único que nos explicou. Virá de Santarém, diz-nos. Sendo uma santa
venerada em Santarém, como chegou o nome à Ribeira Grande? Seria o de uma
ermida que João do Outeiro, e o seu
enteado Pero Roiz Raposo
haviam pretendido edificar no ilhéu daquele porto que antes se ia a pé enxuto.
Primeira versão. Segunda versão: a ermida iria ser construída num pico perto,
que agora tem o nome de pico de Santa Iria, por um ‘homem de fora.’ E é isso.
Mário Moura - Lugar das Areias-
Rabo de Peixe
[1] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p.185.
[2] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 185.
[3] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra,
Livro IV, 1998, p.185.
[4] Frutuoso, Gaspar
Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 186.
[5] Frutuoso, Gaspar
Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 186.
[6] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro Quarto, IV Volume, Ponta Delgada, 1998, pp. 190-191.
[7] Gaspar Frutuoso,
Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 166.
[8] Chagas, Frei
Diogo das, Espelho cristalino em jardim
de várias flores, 1989, p. 170.
[9] Alverne, Frei
Agostinho de, Crónica da Província de São
João Evangelista das Ilhas dos Açores, Volume II, ICPD, 1961, p. 294.
[10] Monte Alverne,
Frei Agostinho, Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos
Açores, Volume II, ICPDL, 1961, p. 294. Todavia, acrescenta que tal fora tombado
nos livros das Câmaras da Lagoa e da Ribeira Grande.
[11] Chagas, Frei
Diogo das, Espelho cristalino em jardim
de várias flores, 1989, p. 170.
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