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Ribeira Grande: Limites - IX

Que terá a Ribeira Grande feito em 1515? – IX

A ver o que lhe podia calhar, encostou-se ao poder ascendente – de Ponta Delgada - sem alienar o que declinava – de Vila Franca. Que terá lucrado com isso? Por exemplo, em 1515, ano em que alguns Lugares a Poente de Vila Franca pediram (e alcançaram) a sua adesão a Ponta Delgada?

O que poderia a Ribeira Grande ‘herdar’ de Vila Franca? Ou partilhar com Ponta Delgada? A realidade da Ilha forçava-a a ser realista. Mesmo assim, com uma população idêntica à de Vila Franca e ligeiramente inferior à de Ponta Delgada, a Ribeira Grande havia sido contemplada com um dos três novos Juízes de Órfãos criados pela Rei. Esperava igualmente que o Rei apoiasse uma recomendação do seu Corregedor na Ilha no sentido de se construir uma ponte de pedra sobre a ribeira. E que mais? Entenda-se por Ribeira Grande, não todos os que nela habitavam, ficavam fora os escravos, as mulheres e os camponeses, mas a elite que ‘andava na governação,’ era ela só que decidia o futuro da terra. O que seria legítimo à Ribeira Grande ambicionar? Embora não nos tenha para esse ano de 1515 chegado quaisquer provas ou sequer um simples eco de pretensões da terra, nada nos impede de levantar algumas hipóteses. A Alfandega, não. Iria para Ponta Delgada. A ligação por terra era boa, restava melhorar a sua ligação por mar. Será que desejava ter acesso a um porto a Sul? E a Norte também? Será que cobiçava já as terras férteis a poente do cabo do Lugar de Rabo de Peixe, termo da Ribeira Grande?

Das duas hipóteses que adianto, a de desejar mais espaço a poente, será a menos urgente das duas, talvez até a menos provável. Pelo contrário, a ambição de um porto é uma aspiração recorrente de então até hoje. Posto isso, comecemos pelas terras a poente. Em 1507, tal como hoje, havia uma extensa e bem fértil planície costeira que ia da igreja dos Fenais da Luz ao biscoito estéril onde começava a poente o Concelho da Ribeira Grande. Seria até aí que chegava o Lugar dos Fenais da Luz? Ou não? Francamente, não sei.

Haverá porventura alguma razão para se conhecer mal a história inicial da área onde hoje vemos parte de Rabo de Peixe, do Pico da Pedra e das Calhetas? Talvez a explicação se deva ao facto de a área ser então escassamente povoada. De facto, haveria apenas duas ou três grandes herdades, cujos senhores moravam algures. Com a saída dos Fenais da Luz (em 1515) e da Ribeira Grande (em 1507) de Vila Franca, aquela área foi sendo modelada pela expansão da Ribeira Grande e de Ponta Delgada? É provável.

Havia vantagens em um Lugar pertencer a um concelho em detrimento de outro? Sim. Por que razão os Fenais da Luz, equidistantes da Vila de Ponta Delgada e da Vila Ribera Grande, optaram por Ponta Delgada? Terá sido porque lá - em 1515 - já se encontrava de facto a Alfandega? Era por ali que escoavam os seus produtos.

Em 1515, após a adesão a Ponta Delgada do Lugar dos Fenais da Luz, a quem pertenceria a parte desta planície que integraria posteriormente o Concelho da Ribeira Grande? Terá permanecido nas mãos de Vila Franca? Terá passado para Ponta Delgada? Ou antes, ficou sendo um espaço neutro? Uma espécie de fronteira.

O Lugar de Rabo de Peixe, termo da Ribeira Grande, ficava apertado entre dois biscoitos com nenhum valor agrícola. Entre estes, existiam algumas boas terras aráveis. Não muito recuado no tempo, próximo do ano de 1493, o ‘lugar de Rabo de Peixe (…) estava despovoado, e ermo, sem haver nele mais que duas cafuas em que dormiam os vaqueiros e roçadores dos matos (…).’[1] Como seria naquele ano de 1515? Conhecera já algum desenvolvimento. Vejamos. Antes de 1527, prova da existência de um agregado populacional de certa importância, já havia no termo de Rabo de Peixe a igreja do Senhor Bom Jesus, cujo capelão recebia do erário Régio 5$000 reis.[2] A igreja do Bom Jesus, aliás, segundo Frutuoso, sucedera a uma ermida anterior: a de Nossa Senhora do Rosário.[3] Quando teria sido construída essa ermida? Não se sabe a data, mas será seguro apontar para uma data posterior a 1493 e algum tempo antes de 1527. Poderia ter sido em 1515? Não é de se excluir essa possibilidade. Seja em 1515 ou mais tarde, uma ermida aponta para a existência de uma certa população. Concordam? Mas isso não prova que um naco daquela planície que nascia nos Fenais e terminava no biscoito de Rabo de Peixe, pertencia já pertencesse à Ribeira Grande. Essa prova só nos surge em 1576. A confirmar o aumento populacional daquela área por aquela altura, sem nos referirmos às duas ermidas do lado que hoje pertence aos Fenais da Luz, no lado que hoje pertence à Ribeira Grande, aparecem-nos duas: a de Nossa Senhora da Boa Viagem (Calhetas), antes de 1595, [4] e a de Nossa Senhora dos Prazeres ((Pico da Pedra), antes de 1598. [5] No próximo número, conto tratar desse ponto.

Mas se a parte daquela área não ficou integrada na Ribeira Grande – como parece - em 1515, poderá ou não admitir-se que tenha ficado a promessa de que futuramente iria pertencer à Ribeira Grande? Ou a integração futura explicar-se-ia mais pelo desenvolvimento que conheceu aquela área do Concelho da Ribeira? A ponto de tornar essa partilha mais provável? Talvez. Talvez sobretudo através dos laços familiares que se foram entretecendo com aquela área: entre senhores das terras e entre os que trabalhavam naquelas terras. Que outros factores poderão ter existido? A crescente importância da Ribeira Grande. A perda de terras aráveis em 1563, devido à crise sísmico-vulcânica. Mas isso será explicado em outro trabalho.

Segundo hipótese: uso do mar. Esta hipótese é, para a Ribeira Grande, insiste-se, a mais importante das duas. Manter-se-á ao longo dos anos, como veremos. Já tratei este assunto em 2021, tanto no ‘Nascimento de uma Vila’ como numa série de artigos publicados no Diário os Açores. Além dos três areais e das duas ou três calhetas de que dispunha em 1515, o Areal de Santana, o de Santa Bárbara e o da Conceição, e as calhetas do Castelo (no centro da Vila), de Santa Iria (a nascente), e, talvez já a de Rabo de Peixe (a Poente), a Ribeira Grande necessitava de acessos ao mar alternativos a estes referidos. Uma explicação: quer as calhetas quer os areais eram usados em toda a ilha e por todo Portugal Continental. O uso dependia do estado do mar. No Norte, poderia servir-se ainda do Porto Formoso, que pertencia a Vila Franca. A Sul, servir-se-ia do porto dos Carneiros, ainda de Vila Franca, do porto da Caloura (já pertencente ao novo Concelho de Água de Pau), e dos areais e calhetas da Vila de Ponta Delgada.

Por que razão o Porto Formoso, que dispunha do melhor porto no Norte da Ilha, não tendo entrado em 1507 no Concelho da Ribeira Grande, não entrou em 1515? A julgar pelo testamento de Pedro Vaz, feito já na Vila da Ribeira Grande, em 1509, existiam relações preferenciais entre a Ribeira Grande e o Porto Formoso.[6] Pedro Vaz reside no Porto Formoso, mas tem igualmente casa na Ribeira Grande. Havia uma relação muito estreita entre o Porto Formoso e a vizinha Ribeira Grande, com quem partilhava a fronteira nascente na Ladeira da Velha. Tanto assim foi que, entre os anos de 1542 e 1600 (com falhas nos registos) em 933 casamentos na Matriz da Ribeira Grande, 200 foram de homem que vieram casar com mulheres da Ribeira Grande, entre os quais, doze eram oriundos do Porto Formoso.[7]

Então porque não fez parte da Ribeira Grande? Apesar de ser então um excelente porto, usar o porto do Porto Formoso era impraticável para a Ribeira Grande. Seria muito difícil transportar a mercadoria daquele porto para a Ribeira Grande. A Ladeira da Velha era um obstáculo difícil de vencer. Como seria se houvesse interesse da Ribeira Grande? Seria muito provável que Vila Franca fizesse tudo para o impedir. Luís Bernardo Leite de Ataíde, citando Gaspar Frutuoso, ao tratar a construção naval na Ilha de São Miguel, afiança que o estaleiro do Porto Formoso ‘parece ter sido o mais importante.[8] E vai daí e diz, continuando a valer-se de Gaspar Frutuoso, que ‘aí vararam e foram feitos muitos navios,’ e dele (Porto Formosos) saiu ‘uma embarcação de grande tonelagem, uma das maiores que nesta ilha se construíram.’ E exemplifica-nos: ‘pertencente a um tal Fernando Correia, madeirense, lançada à água com muita festa e grandes banquetes.’ O navio (caravela) ‘fez a primeira viagem para Lisboa e de lá para a Ilha da Madeira.

Por aqui se pode concluir que o Porto Formoso seria demasiado valioso para Vila Franca abrir mãos dele. O Rei, ao mesmo tempo que retirava poderes a Vila Franca, não terá pretendido criar uma Ribeira Grande assim tão forte? Precisava de manter equilíbrios de poder na ilha. Que portos haveria disponíveis para a Ribeira Grande no Sul da Ilha? O porto dos Carneiros – na Lagoa- e os areais e as calhetas de Ponta Delgada. A Ribeira Grande preferia-os ao de Vila Franca? Faz todo o sentido que assim fosse. Porquê? Ficavam mais próximos e mais longe de Vila Franca. Explico-me. A ligação por terra da Ribeira Grande à Lagoa e a Ponta Delgada era mais curta e beneficiava de bons acessos. E ficando mais longe da Alfândega que ainda tinha assento em Vila Franca, os da Ribeira Grande podiam sempre escapar a um controle mais apertado? Certo?

Posto isto, uma pergunta: em 1515 estaria já a Ribeira Grande a pretender um porto seu a Sul? O dos Carneiros? Uma ligação mais estreita aos areais e calhetas de Ponta Delgada? Vamos ver no próximo trabalho. Mas, quanto ao mar do Sul da Ilha e aos seus portos, continuo a pensar o que segue: até prova em contrário, os portos do Sul não eram melhores do que os do Norte. À altura, aquilo a que se chamava porto de Ponta Delgada, não passaria de duas calhetas, uma a nascente, outra a poente, e um areal. Em termos de segurança e de comodidade, não era superior nem inferior aos demais da ilha, quer a Norte quer a Sul. As embarcações (tanto as maiores como as mais pequenas, quer as de pesca quer as de comércio) vinham ao Norte em alternativa ao Sul. A questão vinha já do início do povoamento. Os ventos fortes do Sul levavam as embarcações a refugiarem-se na costa Norte e as Nortadas levavam as do Norte a refugiarem-se no Sul. Estou em crer que a rota predominante (é um facto) dos portos do sul da ilha, se deverá menos ao mar e mais ao facto de existirem mais polos desenvolvidos na costa Sul. Saía mais em conta, uma embarcação na ida e volta tinha vantagem em parar na Povoação, em Vila Franca, na Lagoa e em Ponta Delgada. O mesmo não se poderia dizer na Ribeira Grande que ficava no outro lado da Ilha.

Lugar das Areias – Rabo de Peixe



[1] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, ICPD, Ponta Delgada, 1998, pp. 54,55.

[2] Contas e receitas dos almoxarifes, copiado pelo escrivão Bastião Roiz, 1527, transcrito no século XIX (?) por J. I. de Brito Rebelo de Contas e receitas dos Almoxarifes, Maço 4.º n.º 3, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, fls. 43-61, In Arquivo dos Açores, Volume IV, Ponta Delgada, 1981, p. 117

[3] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 192.

[4] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, ICPD, p. 193.

[5] Câmara, Morgado João d'Arruda Botelho da, Notícias históricas, genealógicas e vinculares da ilha de São Miguel. Extratos de testamentos dos que instituíram vínculos em São Miguel e seus instituidores e administradores, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1995, p. 95

[6] BPARPDL, Provedoria dos Resíduos e Capelas de Ponta Delgada, Testamento de Pedro Vaz, Lugar do Porto Formoso, feito na Vila da Ribeira Grande, 20 de Junho de 1509, Legados Pios, N. 1132. (Nota de J. I Rebelo: Este Pedro Vaz é o Pedro Vaz Pacheco, de que trata o Dr. Gaspar Frutuoso no Livro VI, capítulo 10 das Saudades da Terra)

[7] Tavares, Marília de Assis, Os casamentos na Ribeira Grande durante o século XVI (1542-1600), In: Os Açores e o Atlântico: séculos XIV-XVII. - Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1983, p. 491.

[8] Ataíde, Luís Bernardo Leite de, Etnografia, Arte e Vida Antiga nos Açores, Volume II, Coimbra, 1974, p.275.

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