Por
que razão a Ribeira Grande não foi logo além da légua? – VI
‘Devias
pensar unicamente no que pode acontecer, não no que acontece. O que acontece
tem pouco interesse.’ Mexia, Pedro, A
vida é que está errada, Revista Expresso, 6 de Maio de 2022, p.74
Nos
cinco artigos anteriores a este, tratámos da légua concedida pelo Rei, em 1507,
a Ponta Delgada (Abril) e à Ribeira Grande (Agosto). Explicámos, em nosso
entender, de forma razoável, o valor e a razão da légua: dada a natureza dos
transportes, seria este o espaço economicamente viável. No entanto, como
explicar que – apesar das sucessivas amputações -, Vila Franca do Campo tenha
mantido um termo muito superior a uma légua? E que, em 1515, Ponta Delgada
adquirisse um espaço concelhio muito superior à légua recomendada? Havendo
espaço na Ilha, por que razão Nordeste, Água de Pau e Lagoa, não alcançaram uma
área idêntica ou aproximada à de Ponta Delgada e de Vila Franca do Campo? A
Ribeira Grande, ainda no século XVI, entre 1515-22 e 1577, ampliaria o seu
termo para Poente e, no século XIX, a partir de 1820, ampliá-lo-ia para
Nascente. Decisões resultantes de considerações políticas? É bem possível. E a
demografia? E a economia? É igualmente provável. Segundo teses, fundadas mais
em suposições e indícios do que em estudos quantitativos sólidos, em 1515, a
maioria da população e a força da economia já se deslocara para o Centro
Norte/Sul da Ilha.[1]
Em
assuntos humanos, tal como em geral na ciência, qualquer que ela seja, raramente
ou nunca há uma só explicação para seja o que for. Em minha opinião, além de
todas as possíveis razões, há uma que raramente ou nunca é referida: a geopolítica. A decisão final do Rei,
podendo ser a de manter ou mesmo de reforçar o poder de Vila Franca do Campo,
foi também (não digo só) no sentido de quebrar o poder de Vila Franca do Campo
e do capitão-do-donatário. E de criar um equilíbrio de forças entre os
Concelhos. Já antes da catástrofe de 1522, o rei pretendeu um Concelho de Ponta
Delgada forte, porém, com concelhos tampão entre Vila Franca do Campo e Ponta
Delgada. Falando de Concelhos tampão entre os dois grandes blocos, dá-me a
impressão de que a Ribeira Grande terá sido isso, no entanto, também terá sido
ou pretendido ser muito mais do que isso. Tê-lo-á conseguido? Vamos ver isso e tentar
perceber as razões?
Tudo
começou com a Infanta D. Beatriz, mãe do futuro Rei D. Manuel I. Na menoridade
dos filhos e em nome deles, os verdadeiros donatários, a infanta criou no ano
de 1474 a capitania da Ilha de São Miguel. Foi seu primeiro capitão, Rui
Gonçalves da Câmara. Entre 1474 e 1483, tornou o Lugar do Campo no primeiro
município da Ilha de São Miguel. Um município de iniciativa senhorial. Aí
também se construiu a principal igreja da ilha, a sede da capitania, da
Alfândega e do Almoxarifado. Aí se localizava o melhor porto da ilha. É
consensual afirmar-se que, a partir da altura em que Rui Gonçalves da Câmara
chega à Ilha, havia comprado a capitania em 1474, a Ilha prospera a olhos vitos.
Surgem diversos Lugares por toda a Ilha. A agricultura e a pecuária criam
riqueza como a ilha não conhecera até então. Por morte do irmão D. Diogo às
mãos de D. João II, o duque D. Manuel, futuro Rei D. Manuel I, torna-se o
donatário da Ilha. Desenvolve uma acção intensa. Ao tornar-se Rei, reúne na
Coroa a capitania. Estão a seguir-me? O capitão-do-donatário, mercê das suas
regalias, entretanto, era ele quem distribuía as dadas, enriquece e ganha imenso
poder. O Rei não pôde consenti-lo. Chovem as queixas, o Rei manda chamar à
Corte o seu capitão, acabando por demiti-lo do cargo. No entanto, o capitão viria
a reavê-lo, passada uma década, com poderes bastante diminuídos.
Quando D. Manuel I reformava
forais antigos e criava legislação aplicável aos municípios, surgem duas novas
vilas na Ilha em São Miguel: Ponta Delgada (1499/1507) e Ribeira Grande. (1507)
Há um pormenor que não convém esquecer: o foral de 1499 de Ponta Delgada, alegadamente
feito em papel, segundo Frutuoso. Aquela garantia provisória do monarca ao
Lugar de Ponta Delgada, não se destinaria já a atalhar o poder da Ilha
concentrado em Vila Franca?
Se
a ilha já conhecera alterações territoriais significativas de 1499/1507 a 1514
(Nordeste), em 1515, sofreria mudanças profundas. O que levou o Rei a promover
esta mudança? Queixas enviadas da Ilha ao Rei. Em resultado delas ou a seu pretexto,
para impor a sua visão e poder, D. Manuel altera a relação de forças na ilha. Precisa
de alguém da sua confiança pessoal para pôr em prática a sua estratégia. Envia
à Ilha de S. Miguel, em finais de Setembro de 1514, o Corregedor das Ilhas, Doutor Jerónimo Luís. Leva
consigo instruções precisas. Para cumpri-las, o monarca concede-lhe poderes à
altura da tarefa que lhe incumbira. Poderes que vão entrar em choque com os
poderes estabelecidos na Ilha. O Alvará de 17 de Setembro de 1514, ‘manda [que] os capitães das ilhas dos Açores obedeçam ao Corregedor.’[2]
Na Ilha de São Miguel, seria tarefa fácil, já que o capitão-do-donatário havia
sido recentemente demitido pelo Rei. No entanto, para surpresa do Corregedor,
este depara-se com resistências. A própria mulher do capitão-do-donatário (a capitoa, como era chamada) é um foco inesperado
de resistência. Mas não é única a não obedecer ao corregedor. Em finais de
Março do ano seguinte, o Bacharel Rui Pires, queixa-se pela terceira vez ao Rei
da desobediência dos poderes da Ilha sediados em Vila Franca do Campo: o
Ouvidor do eclesiástico excomungara-o e a capitoa queria expulsá-lo da Ilha.[3]
Era insustentável manter ou pactuar
com aquele desafio aberto à autoridade Régia. O monarca, que nunca tolerou
desobediências, aperta o cerco aos rebeldes. Em Maio do ano seguinte de 1515, volta
a mandar a São Miguel o Corregedor das Ilhas, Doutor Jerónimo Luís. O
Corregedor segue mais uma vez com instruções rigorosas. Desta vez, tem de fazer
cumprir as ordens régias, doa a quem doer. Vê com atenção o que se passa no
triângulo, Vila Franca, Ribeira Grande e Ponta Delgada. Que se conheça, além da
criação dos concelhos anteriores, uma das primeiras machadadas vibradas no
poder concentrado em Vila Franca do Campo, abate-se sobre a instituição do Juiz
dos órfãos. Havendo na Ilha de São Miguel um só Juiz de órfãos e seu escrivão
sediado em Vila Franca, o Rei instruiu o seu corregedor para instalar mais dois
Juízes de órfãos e seus escrivães: um, em Ponta Delgada, outro, na Ribeira
Grande. Para a Ribeira Grande, Luís Gago, a primeira escolha recusou, Simão
Lopes de Almeida aceitou. Repare-se, naquela altura de 1515, além das três
Vilas, existia a Vila de Nordeste (desde o ano anterior) e em breve haveria a
Vila de Água de Pau. Porque só escolhe o Rei três das cinco vilas para sede de
novos Juízes de Órfãos? A esta distância dos acontecimentos, sem dispor de
documentos que nos lançassem alguma luz sobre o tema, a minha interpretação (provisória,
como sempre) é a seguinte: Nordeste é periférico e Água de Pau viria a ser um
minúsculo Concelho, pelo que, o Rei distribui o poder aos três primeiros e mais
poderosos municípios da Ilha: Vila Franca do Campo, Ponta Delgada e Ribeira
Grande. A tendência manter-se-ia ao longo dos séculos seguintes. A este
propósito, adianta-se a criação de três Ouvidorias.
Mas o poder não será equitativamente
distribuído entre aqueles três municípios. O Rei pende (e isto é indesmentível)
para o lado de Ponta Delgada. Por que razão? Vamos ver. Reitero o aviso: esta é
uma nova hipótese interpretativa. O Doutor Jerónimo, acerca da Vila de Ponta Delgada,
diz ser a ‘povoação maior de todas as
desta Ilha em que haverá 250 fogos (…),’ acerca da ‘outra Vila que se chama a Ribeira Grande (…) dizem ser povoação de 200 vizinhos (…),’ quanto ao
‘lugar da Lagoa que será de 100 vizinhos termo de Vila Franca (…) Vila Franca que é Vila de 200 vizinhos.’[4] Sem
adiantar vizinhos, também toca em Água de Pau.
Uma pausa para pensarmos. Onde
obteve o Corregedor os dados demográficos que envia ao Rei? De conversas com os
locais. Se repararem bem, o Corregedor usa os termos: ‘dizem ser e será.’ E como obtiveram aqueles números os habitantes
locais? Será o resultado de uma estimativa por alto ou de um inquérito? Será
que, no caso de Ponta Delgada, já se incluía nos 250 fogos, o número de fogos
dos Lugares que em breve iriam fazer parte do termo de Ponta Delgada ou ainda
não? E por aí fora. Inquérito a olho, mais ou menos rigoroso, ou totalmente
falseado, não sabemos, todavia, os dados demográficos indiciam uma tendência de
concentração demográfica no eixo Centro Norte/Sul da Ilha (Ribeira Grande/Ponta
Delgada/Lagoa) em detrimento do eixo Sul/Nascente da Ilha (Vila Franca do
Campo).
Já se estaria a esboçar uma nova
relação de forças na ilha? Penso que sim. De facto, a 28 de Julho de 1515, um
Alvará cria o minúsculo Concelho de Água de Pau, com uma meia légua de termo.[5]
Metade da área que fora concedida, oito anos antes, à Ribeira Grande e a Ponta
Delgada. A alteração do mapa da Ilha iria prosseguir de forma ainda mais
radical, onze dias depois, a 8 de Agosto. O que se passou? Algumas (apenas
algumas) freguesias da metade poente da Ilha de São Miguel saem de Vila Franca
e entram no Concelho de Ponta Delgada. O Rei D. Manuel assina o Alvará que
acede ao pedido dos moradores (alguns ou todos?) das ‘Feteiras, Mosteiro e das Capelas e dos Fonais,’ para deixarem o
Concelho de Vila Franca do Campo e passarem a fazer parte do Concelho de Ponta
Delgada.[6]
De quem terá partido a
iniciativa? Tendo ou não sido iniciativa de gentes (influentes) dos Lugares em causa,
ainda assim, por que razão o monarca (que poderia não aceitar) aceitou? A
justificação oficial (dada sempre) é a distância entre a sede do Concelho, localizada
em Vila Franca do Campo, e aqueles Lugares. Mas atenção, apesar de ficarem mais
próximos de Ponta Delgada do que de Vila Franca do Campo, ainda distavam umas
boas léguas de Ponta Delgada. Veja-se os
Mosteiros. Caso mais curioso ainda? Por que
razão os moradores ‘da Candelária, de S.
Sebastião (que incluía a Várzea e as Sete Cidades) e Bretanha’ não requerem então ao Rei a entrada em Ponta Delgada? São
Lugares localizados a Norte e a Sul da Ilha. A Candelária e São Sebastião,
estão mais perto do termo de Ponta Delgada do que os Mosteiros. As Feteiras
encostadas à Candelária entraram mas as Feteiras, não. Porquê? Ninguém nos diz
a razão. Nem conheço documento que o diga. Vou atirar, como sempre, com algumas
hipóteses. Será que algum dos Lugares que não manifestou então interesse em entrar
no termo de Ponta Delgada, acalentava a ambição de vir a ser vila? São conhecidas ambições (posteriores) de São
Sebastião dos Ginetes. Em 1515, para a banda poente da Ilha, quem subisse em
dias descobertos ao alto da serra das Sete Cidades, veria os concelhos de Ponta
Delgada e de Vila Franca encaixados como um queijo suíço esburacado. Continuando
a merecer o bom acolhimento deste jornal, entre as diversas relações de força na
Ilha, tentarei explicar a estratégia de Vila Franca para travar a constante
perda de poder. Em próximo número.
Mário
Moura - Lugar das Areias – Rabo de Peixe
[1] Um exemplo: Santos,
João Marinho dos, Ponta Delgada – Nascimento
e primeira infância de uma cidade, in Revista de História Económica e
Social, N. º 1, Janeiro-Junho de 1978, pp. 33-53.
[2] Cf. Livro n.º 4
de Registo da Câmara de Ponta Delgada, fl. 23 v., trasladado pelo escrivão da
Câmara João Rodrigues em 1519, Alvará de 17 de Setembro de 1514, que manda os
capitães das ilhas dos Açores obedeçam ao Corregedor o Bacharel Jerónimo Luís,
in Aquivo dos Açores, Volume IV, 1981, pp. 33-34.
[3] Carta do
Corregedor da Ilha de São Miguel, o Bacharel Rui Pires, a El-Rei D. Manuel, 28
de Março de 1515, publicado em o Arquivo dos Açores, Vol. I, 2.ª edição, 1981,
pp. 110-113
[4] Cf. ANTT, Gaveta
15, Maço 21, Documento 17, Carta enviada ao rei D. Manuel I pelo Corregedor dos
Açores, Doutor Jerónimo Luís, 1515, Maio, 25, Vila Franca do Campo, Citado por
Lalanda, Margarida de Sá Nogueira, A
Sociedade Micaelense do século XVII: Estruturas e Comportamentos,
Dissertação de Doutoramento, Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1995.
[5] Carta de Vila de
Água do Pau, 28 de Junho de 1515, Costa, José Pereira da, Prefácio, (Direcção, leitura, prefácio e notas), Livro das Ilhas,
Região Autónoma da Madeira, Região Autónoma dos Açores, 1987, fl. 320
[6] Feteiras
Mosteiro e das Capelas e dos Fonhais privilégio para que sejam da jurisdição de
Ponta Delgada 8 de Agosto de 1515, Costa, José Pereira da, Prefácio, (Direcção, leitura, prefácio e notas), Livro das Ilhas,
Região Autónoma da Madeira, Região Autónoma dos Açores, 1987, fl. 318
Comentários