Como
cortar o mal pela raiz? –
X
Cortar
o mal pela raiz
(segundo advogavam então) incluía, além de tornar os morgadios e capelas mais
afeiçoados à vontade dos proprietários da Ilha (muitos deles morgados), tentar obter a ‘isenção
das décimas dos prédios urbanos, em virtude da destruição causada pelo Terramoto de 16
de Abril de 1852.’[1] Outra
iniciativa de Loureiro. Não esquecer o seu interesse na medida. Tinha terras e
haveria de querer mais. Para civilizar os ‘proletários,’
outro projecto de Loureiro:
‘ (…) sobre instrução pública.’[2] A Sociedade Promotora das Artes
e das Letras, da qual ele fazia parte, tomava muito disso à sua conta: havia
escolas suas espalhadas pela Ilha de São Miguel. José do Canto dera-lhe o mote?
Vou, antes, centrar-me nos morgadios.
O
Parlamento reabriu a 20 de Maio. Loureiro inscreve-se para intervir na sessão do
dia 24. No entanto, é obrigado a adiar.[3]
No dia seguinte pediu a palavra e leu requerimentos. E apresentou duas
representações em defesa do Tribunal da Relação.[4]
Como a querer recuperar o tempo perdido, a sessão do dia 26, seria das mais produtivas
de Loureiro. Requer ao Governo o envio à Câmara dos Deputados do ofício do
Governador Civil ‘sobre os desastres e
prejuízos causados no Districto
a seu cargo pelo terremoto que ali teve lugar na noite de 16 de Abril do
corrente ano.’ Sobre ‘a reforma
das pautas, em relação à Ilha de S. Miguel,’ requereu ‘uma cópia da Representação que sobre este objecto dirigiu a Associação
Comercial da cidade de Ponta Delgada, e que foi [fora] apresentada na Sessão de 26 de Fevereiro de 1851.’[5]
A coroar aquela ‘admirável’ sessão, ‘leu e mandou à Mesa um Projecto de Lei.’ Aí não se diz qual, mas só poderá ser o dos
morgados e capelas. Dado ser ‘matéria transcendente
sobre que se tem publicado diferentes Projectos (…),’ pedia que fosse ‘impresso no Diário do Governo.’[6]
O Presidente da Câmara dos Deputados agendou (para o dia seguinte) uma ‘segunda leitura.’ Nesta, haveria de se
lhe dar ‘o destino competente.’[7] De
facto, na sessão do dia 27, ‘foi admitido
e remetido às Secções.’ Cinco
sessões depois, a 2 de Junho, talvez para facilitar a troca de ideias, em vez
de o ‘projecto dos morgados’ ficar ‘sumido’ numa qualquer secção, é criada
uma comissão, da qual Loureiro é Secretário.[8] Na do
dia 15, ficamos a saber que, além dele, faziam parte outros seis deputados.[9] Na mesma sessão de 27, ‘resolveu-se que fosse impresso no Diário do Governo.’[10]
Sairia (de facto) na íntegra no Diário do
Governo do dia 31.[11] Ao contrário
do Diário das Sessões (provavelmente),
este chegaria a um maior número de leitores? Loureiro divulgava o que fazia e (mais
importante) assim evitaria ‘remoques
ameaçadores’ tipo dos do Açoriano
Oriental e falatórios ‘desfavoráveis’
nos clubes da Ilha? E promovia uma futura candidatura? É provável.
Antes
de avançar, convém explicar (por alto) que morgadios eram propriedades senhoriais ‘inalienáveis, indivisíveis e insusceptíveis de partilha por morte do
seu titular, transmitindo-se nas mesmas condições ao descendente varão
primogénito.’[12] O
debate acerca do que fazer aos morgadios (e capelas) já vinha de longe. Numa
economia que dependia da terra, a sua extinção (a proposta de Loureiro deixava
de fora os morgados empreendedores) traria (havia essa crença) mais riqueza aos
proprietários e rendeiros. E mais trabalho. Não se falava, no entanto, em aumentos
salariais. E evitar-se-ia a emigração. Algo indesejado pelos proprietários, não
propriamente por motivos filantrópicos, mas porque precisavam de mão-de-obra
abundante e barata. O assunto seria amplamente ‘falado’ nas reuniões da SPAM, nas páginas dos jornais e certamente
nos clubes da Ilha. José
de Torres (n. 17-06-1827 – PDL – f. 04-05-1874 Lisboa), intelectual de primeira água e pequeno ‘manga de alpaca’ da administração
Distrital, já em Setembro de 1851, ‘escavara’
o problema: ‘Muitos
anos há que no arquipélago dos Açores se dá, sempre em crescimento, um fenómeno
social, que deve ter, e tem causa ou causas conhecidas, que sendo efeito produz
ainda efeitos infelizmente mui prontos e sentidos; mas a que se não tem
aplicado remédio, porque os médicos do estado fingem não conhecer a fundo a moléstia
por não ir debelar o mal ma origem, que, ainda assim viciada, a muitos amigos e
afilhados aproveita (…).’ E apontara para uma solução: ‘falamos do corpo legislativo, que em si
tem todo o poder e independência de vontade para acudir aos mui justos clamores
de uma das mais belas e importantes porções da monarquia (…).’[13]
Poucos dias depois da desgraça, como a situação exigisse medidas urgentes (e radicais),
José de Torres, regressava
ao assunto. Querendo ir à raiz do problema, acusou: ‘A
acumulação da propriedade em poucas mãos, e o seu caracter vincular, prejudicam
o solo, dificultam o incremento nacional da população, e ainda mais os meios de
mantê-la (…) É por isso que a população dos Açores não é mais do que composto
de proletários, que não possuem nem o chão em que poisam as paredes da
choupana, nem a jeira de terra onde assoalham o vestido pobre e dilacerado; ou em que acolhem o animal
doméstico, que criam com tanta amargura e sacrifício para lhes ajudar a pagar
as pensões anuais. (…).’[14] Palpita-me
que, antes de escrever a introdução ao projecto de lei, Loureiro tenha passado
uma vista de olhos pelos artigos de José de Torres. E terá aproveitado algo
deles. Acreditava que, sendo a sua proposta aprovada, seria um dos ‘maiores benefícios que’ como deputado poderia ‘alcançar para a (sua) pátria.’[15]
Conhecia (e certamente leu) outras propostas, porém, a que apresenta tenta (diz)
adaptar-se ao caso específico dos Açores. Referindo-se à desamortização dos
bens das ordens, e comparando o que acontecera nos Açores (Ilha?) ao que
acontecera em ‘Portugal,’ afirma que nos
Açores ‘a venda de tais bens não fez
senão, quanto ao presente, acumular mais a propriedade na mão de poucos possuidores.’[16] O caso de José Maria da Câmara Vasconcelos é uma boa prova disso. Comprometido com a situação antes da
Ladeira da Velha (fora Capitão-Mor da Ribeira Grande), após a Ladeira da Velha (virando
a casaca) transformou-se (como Loureiro e muitos mais?) num ‘zelota’ da nova situação. Na posse de
informação privilegiada, era Administrador do Concelho da Ribeira Grande e
cunhado do Presidente da Câmara, comprou terras (não sei ao certo a quantidade). Logo em Dezembro
de 1833, arrematara em hasta pública a cerca e edifícios do Mosteiro de Jesus da
Ribeira Grande.[17]
Porém, talvez por estar mais interessado em política e negligenciar a gestão
das suas propriedades (foi um dos fundadores do Açoriano Oriental e seu primeiro editor), não tirou proveito das
aquisições. Na década seguinte, vende propriedades. Uma dessas, situada no
Telhal, uma das áreas mais férteis da Ribeira Grande, é vendida a ‘Nicolau Maria Raposo do Amaral de Ponta
Delgada.’[18]
Os Raposo do Amaral, tal como os Canto e os Jácome Correia, espreitavam (então)
toda a oportunidade que surgisse. Eram acérrimos adeptos da extinção
(condicionada). José Maria, ainda na década de 50,
advogava a extinção dos morgadios.
Loureiro não esclarece se a informação é apenas uma mera
impressão ou se resulta de estudo credível, o que diz é que ‘poucos países [refere-se a São Miguel?] há onde os prédios rústicos se acham
concentrados em tão poucas mãos, como naquelas ilhas; e por isso, e porque a
sua máxima parte é vinculada ainda não temos a metade cultivada.’ Pior
ainda, (quase todos) os morgadios das Ilhas (ou os da Ilha?) eram na realidade ‘pequenos vínculos e capelas,’ dispersos, o que os tornavam ‘ impraticáveis.’ Resultado da terra mal aproveitada: ‘daí provém a progressiva e assustadora
emigração que se observa. Conclui: ‘os
braços que deviam empregar-se naquele serviço fogem da terra que lhes nega o
trabalho.’ O que poderia pôr fim a este estado de coisas (disso não tem
dúvidas) seria ‘elevar o número dos
possuidores.’ [19]
Se já em Fevereiro
havia crise e era urgente criar trabalhos,[20] e nada
havia sido feito desde então, depois do terramoto de Abril a situação não estaria
melhor. Mais gente com fome, sem tecto, sem trabalho. Um barril de pólvora
prestes a explodir? Nem duas semanas haviam decorrido, e José de Torres, ‘pondo-se na
pele’ dos desfavorecidos, apontava (corajosamente) o dedo acusador aos mais
favorecidos: ‘Há muito que a classe que chora,
pede à classe que ri, compaixão e lenitivo para as lágrimas; mas tem a promessa
desacompanhada da obra, e o mal da terra e do homem continua em crescimento. (…).’[21] Além de ‘burocrata,’ ao que parece competente,
José de Torres era um homem dos jornais (dos bons), e, a par de Francisco
Ferreira Drummond, foi dos primeiros nos Açores a fazer História científica. Entendia
bem a utilidade prática da História e do Historiador no presente. Querendo ir (sempre)
ao fundo das questões, ‘escavava’ as
camadas da História. Veja-se a questão da doca e (agora) a da emigração.
Espírito livre, colaborou (na Ilha e no Continente) em jornais de ‘sinal’
distinto (às vezes antagónico): O Cartista,
O Correio Micaelense, O Progresso. Faz-me lembrar Supico (para
melhor).
Sucede que, sempre
que acontecia alguma catástrofe na Ilha, o que não era raro, apenas quatro anos
antes a Várzea havia sido arrasada, uma das opções mais frequentes dos
desfavorecidos era sair da Ilha. Poucos dias depois do terramoto, o diagnóstico
que (a esse respeito) José de Torres faz, acerta (a meu ver) em parte do alvo:
‘Dissemos
já que a propriedade mal constituída, e o trabalho sem garantia eram talvez as
causas primárias da espantosa emigração anual dos colonos açorianos.’[22] Investigadores
actuais, contudo, à precariedade de trabalho, acrescentam outras causas: fuga
ao recrutamento militar, espírito de aventura e vontade de ir ao encontro de familiares
que já haviam partido.[23] Os baixos salários e a
precariedade produziam pobreza. Pelo que, não nos deve espantar que (escreveu Fernando Aires) ‘dos meados de 1852 a Novembro de1873,
embarcaram para o Brasil cerca de 9 mil indivíduos naturais da Ilha.’[24] Ao
que acrescenta: ‘fora os que,
naturalmente se encaminharam para os Estados Unidos da América e outras zonas
de acolhimento (Trindade) (…). Não
falando ainda nos clandestinos…’ Ora, quanto a estes, do Distrito de Ponta
Delgada, em 1857 e 1859, representaram 71,8 e 82, 7% dos embarcados com destino
ao Rio de Janeiro.[25] Números
confirmados pelo próprio Cônsul Geral de Portugal naquela cidade. Porque recorriam
‘à emigração clandestina’? A esta
pergunta, Luís Mendonça e José Ávila, respondem: ‘porque as pessoas muitas vezes não dispunham de condições materiais
para adquirir um passaporte; mas também porque as restrições impostas pelo
poder político impediam que elas saíssem, livremente, ou só saíssem mediante a
satisfação de determinados requisitos.’[26] Como eram recrutados os clandestinos? De
acordo com um documento oficial, seriam ‘tanto os proprietários de navios, como os seus comissários disseminados
pelas cidades, vilas e aldeias,’[27]
que os angariariam. O jornal Açoriano Oriental explica como eram
recolhidos fora do alcance das autoridades: ‘Larga um
navio para o Rio de Janeiro, e antes de seguir o seu destino anda em volta da
Ilha tomando passageiros em todos os portos, faltando depois filhos aos pais,
maridos às esposas.’[28]
O que resultou das medidas de
Loureiro? Não impediu a emigração, não melhorou a sorte dos
desgraçados nem criou pequenos ou médios proprietários. O Decreto de
30 de Julho de 1860, aumentando o rendimento mínimo necessário e obrigando o
registo de todos os vínculos existentes, traria resultados tímidos.[29]
A maioria das propriedades desvinculadas acabaria nas mãos dos grandes
proprietários de Ponta Delgada. Só eles tinham capacidade de ir à banca pedir empréstimos.
Exemplo: José do Canto comprou
o seu prédio no Pico Arde em 1 de Abril de 1865 à Condessa do Redondo por mais
de 114 contos de réis insulanos. Cerca de metade a pagar a pronto e o
restante faseadamente.[30] O ‘Banco Hipotecário,’ após
várias tentativas que não haviam
resultado, emprestou-lhe, ‘60 contos de
réis fortes, amortizáveis em 25 anos.’ Calculava ter de esperar ‘14 anos’[31]
para começar a dar lucro. Quem mais na Ilha teria essa disponibilidade? No
próximo trabalho tratarei do ‘penso
rápido na crise.’
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
[1] João José
da Silva Loureiro, Maria Filomena Mónica (coordenadora) (Lisboa, 2006).
Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910). Assembleia da República Vol. II.
pp. 564-5.
[2] Diário do
Governo, N.º 130, [3 de Junho] de 1852, p. 1.
[3] Diário da Câmara dos Deputados, 24 de Maio de
1852, p. 7.
[4] Diário da Câmara dos Deputados, 25 de
Maio de 1852, p. 25.
[5] Diário da Câmara dos Deputados, 26 de
Maio de 1852, p. 33.
[6] Diário da Câmara dos Deputados, 26 de
Maio de 1852, p. 34.
[7] Diário da Câmara dos Deputados, 26 de
Maio de 1852, p. 34.
[8] Câmara
dos Deputados, 2 de Junho de 1852, p. 14: ‘O Sr. Cunha Pessoa- — Participo a V. Ex.ª que a
Comissão nomeada para dar o seu Parecer sobre diferentes Projectos aqui
apresentados que tractam dos Vinculos, se acha instalada, e nomeou para seu
Presidente o Sr. Oltolini, para Secretario o Sr. Loureiro, e para secretário a mim.’ - Diário
do Governo, N.º 130, [3 de Junho] de 1852, p. 3.
[9] Diário da Câmara das
Sessões dos Deputados, 15 de Junho de 1852, p. 187: ‘Sousa Caldeira, Ferreira de
Castro, Ottolini, Alves Vicente, A. Castello Branco, Cunha Pessoa e Loureiro.’
[10] Diário da Câmara dos Deputados, 27 de
Maio de 1852, pp. 34-35; Diário do Governo Digital, N.º 126 [29 de Maio], 1852,
p. 5.
[11] Diário do Governo Digital,
N.º 127 [31 de Maio], 1852, pp. 3-4
[12] Um regime de propriedade de origem
castelhana que entrou em 1603 na legislação portuguesa nas Ordenações
Filipinas. Porém, há muito havia sido adoptado em
Portugal.
[13] José de Torres,
Emigração Açoriana, I, Revista dos Açores, Ponta Delgada, 24 de Setembro de
1851, pp. 153
[14] Torres, José de,
Emigração Açoriana II, Revista dos
Açores, Ponta Delgada, 28 de Abril de 1852, pp. 277.
[15] Diário da Câmara dos Deputados, 27 de
Maio de 1852, pp. 34-35; Diário do Governo Digital, N.º 127 [31 de Maio], 1852,
pp. 3-4.
[16] Diário da Câmara dos Deputados, 27 de Maio de 1852, pp. 34-35.
[17] O
mosteiro e seus edifícios é arrematado em hasta pública a 14 de Dezembro de
1833.
[18] Propriedade ‘de trinta alqueires de terra dizima a Ds. Cita ao Tilhal desta Villa que faz a Joze Maria Câmara Vasconcellos desta Villa [Ribeira Grande] p.r 1:300$000 rs.’
[19] Diário da Câmara dos Deputados, 27 de Maio de 1852, pp. 34-35.
[20] Açoriano
Oriental, Ponta Delgada, 21 de Fevereiro de 1852, p.4.
[21] Torres, José de,
Emigração Açoriana II, Revista dos
Açores, Ponta Delgada, 28 de Abril de 1852, p. 277
[22] Torres, José de,
Emigração Açoriana II, Revista dos
Açores, Ponta Delgada, 28 de Abril de 1852, pp. 277.
[23] Luís Mendonça e
José Ávila, Emigração Açoriana (séculos
XVIII-XX), Lisboa, 2002, p.112
[24] Sousa, Fernando
Aires M., Emigração e delinquência na 1.ª
metade do século XIX, Separata do Boletim Insulana, ICPD, Ponta Delgada,
1988, p. 27. Cf. Dados da Revista Micaelense, 1921, p. 958.
[25] Luís Mendonça e
José Ávila, Emigração Açoriana (séculos
XVIII-XX), Lisboa, 2002, p.131.
[26] Luís Mendonça e
José Ávila, Emigração Açoriana (séculos
XVIII-XX), Lisboa, 2002, p. 120;Cf. José Guilherme Reis Leite, Emigração clandestina dos Açores para o
Brasil no século XIX, II Congresso das Comunidades Açorianas, p. 226.
[27] Luís Mendonça e
José Ávila, Emigração Açoriana (séculos
XVIII-XX), Lisboa, 2002, p. 121; Cf. Documentos portugueses sobre a
emigração, Doc. 225, p. 232.
[28] Açoriano
Oriental, Ponta Delgada, 24 de Julho de 1858.
[29] Seriam extintos por Carta de Lei de 19 de
Maio de 1863. Subsistindo no entanto o vínculo da Casa de Bragança, o qual se
destinava ao herdeiro da Coroa. Este último morgadio viria a
perdurar até 1910.
[30] Borges, Ob. Cit., 2007, p. 56
[31] Cf.
UACSD/FAM-ABS-JC/001/002 [Cartas de
1865-1869], Carta de José do Canto ao
Visconde de Santa Isabel, Ponta Delgada, 7 de Março de 1865.
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