Porto de
Santa Iria III
Um salto para a década de quarenta do século
XIX, sigamos o que diz Francisco Supico em 1901. Como o ‘Porto de
Ponta Delgada, dantes desabrigado de todos os ventos do quadrante sul,
expunha-se a contínuos, demorados e perigosos levantes a grande navegação que o
frequentava. Procuravam os navios, o lado norte da Ilha, e por lá pairavam
enquanto pelo sul não serenavam as tempestades de que andavam fugidos, não
encontrando por aquele lado da ilha portos de que pudessem aproximar-se para
proverem as necessidades muitas vezes urgentíssimas. Para minorar semelhante
falta, tentou-se há 50 anos [c. 1850], aproveitar as bacias do Morro das Capelas, ou
de Santa Iria. E não podendo tratar-se de dois portos ao mesmo tempo,
ponderadas as condições de cada um daqueles locais, optou-se pelo de Santa Iria.’[1]
Apenas
alguns casos ocorridos no ancoradouro do porto de Ponta Delgada nos anos de
1845, 1846 e 1847, entre os quais destruição de estruturas de apoio em terra,
naufrágios e a constante dança do levanta e desce âncoras. Estes, terão dado
força e razão para se encontrar uma solução complementar a Norte (onde surge Santa
Iria) e a Sul (com a construção do Porto Artificial de Ponta Delgada).[2]
Neste contexto, em 1846, em o jornal O Cartista, defendendo que o porto do
Norte devia situar-se nas Capelas, adiantava duas razões para construir um
porto no Norte da Ilha. A primeira razão, porque era não só ‘(…) importante para embarcarem por ele os
produtos da ilha, mas para abrigo de navios que no inverno demandassem a costa
norte.’[3] A segunda razão, porque ‘podem
aproveitar-se estas projectadas linhas de vapores, que vão estabelecer-se para
comunicar a Europa com a América, ficaria com a pequena soma de reis 8:000$000,
em que a orçamos, em estado de abrigar um bom número de navios de grande porte.’[4]
Nas Capelas, continuando a seguir o mesmo
periódico: ‘Para lhe aumentar o valor tornando-se
a bacia das Capelas um porto seguro, aventava o Cartista [de 11 de Abril de
1846] a ideia de resguardar a entrada da
enseada com um quebra-mar, flutuante.’[5]
Classifica a iniciativa, assim: ‘Era arrojada esta arrojada ideia de fazer
uma espécie de doca na bela bacia das Capelas.[6]
Francisco Soeiro Lopes de Amorim, à altura
Presidente da Câmara Municipal das Capelas, foi Presidente entre 18 de
Fevereiro de 1842 e 6 de Junho de 1846, a quem O Cartista chama de ‘O Ilustrissimo Senhor,’[7] sabendo da importância de uma tal
infra-estrutura, dera um primeiro passo: a
construção da via de acesso ao desejado porto. Diz o jornal: ‘Com louvável
empenho vai progredindo a utilíssima obra do porto das Capelas de que temos
falado nesta nossa folha. tem patrioticamente tomado à sua conta a despesa da
abertura da estrada até ao novo cais que tenciona levar em dois grandes lanços,
o primeiro na direcção do Oeste até meia altura da rocha, o segundo partindo
deste ponto até à praia.’[8] Amorim metera o pé na poça, pois, em carta do Alcaide do Mar, que chega
ao Governador Civil do Distrito através da Alfândega de Ponta Delgada, ele é
acusado de ter-se apropriado do caminho contíguo ao morro das Capelas com
prejuízo público.
Mais tarde, ‘quando
já pelo Ministério das obras públicas se contemplava com alguma verba este
Distrito, se tratou de dotar o Norte da Ilha com um porto que utilizassem à
navegação e aproveitasse ao comércio dos povoados, debateram-se opiniões em
dois campos, sendo um por Santa Iria e outro pelas Capelas.’[9]
A questão era, pois, saber se este porto
ficaria na baía do morro das Capelas ou no Porto de Santa Iria. Segundo
Francisco Maria Supico, ‘houve a este
respeito tal discussão na imprensa, e tanto se azedou ela, que chegou a ser
desafiado o redactor do Correio Micaelense, Dr. João José da Silva Loureiro,
que era pelas Capelas, supomos que por António Júlio de Melo, da Ribeira
Grande, que era, se não nos enganámos, quem defendia Santa Iria, pelas previsões de
engrandecimento que disso adviria aquela vila.[10]
Muito
antes de se dar início à construção do porto artificial de Ponta Delgada, em
1861, que se arrastaria por muitos anos,[11]
em Março de 1850, um periódico de Ponta Delgada publica uma ideia que
circulava: ‘Diz-se
que se vão levar a efeito duas obras de grande interesse público, que são: um
cais no porto de Santa Iria na Vila da Ribeira Grande e o Hospital das Furnas.
Se estas obras se levarem a cabo, muitíssimas vantagens resultarão ao país,
pois que a primeira favorecerá o comércio na costa do norte da ilha, e a
segunda redundará em benefício da humanidade.’[12]
O ‘capitão
Francisco Maria Montano, de engenharia, que por muitos anos esteve em comissão
nos Açores,’ fora encarregado ‘de
elaborar os respectivos projectos e orçamento.’ E foi, ‘em harmonia com os seus estudo,’ que ‘ali se começou a fazer a obra,’ para
tal, ‘despendendo-se não pequena obra.’[13]
Aos estudos feitos antes de Junho de 1850, não sei quanto tempo antes, e à
aprovação e orçamentação da obra, seguiu-se a
12 de Junho, num Sábado, o lançamento da ‘primeira
pedra no alicerce do cais da Vila da Ribeira Grande.’[14]
Será que a obra começou logo a seguir ao lançamento da primeira pedra? Que
estudos foram exactamente feitos? Foram cumpridos? Alguma coisa foi feita,
pois, Lopes garante o seguinte: ‘encontrámos
construídos, os muros designados nas plantas pelas letras n n e com aguada de
cor de terra de siena.’[15]
Mais, as obras, haviam sido dirigidas, continua a informar-nos Lopes, por ‘uma comissão de ilustrados cavalheiros da
Ribeira Grande, mas como não era assunto da nossa competência, limitamo-nos a
algumas ponderações gerais, e vagamente descritivas.’
Foram ou não executadas as obras previstas?
Temos de dizer que desconhecemos este plano. Seja como for, fossem ou não
cumpridos, não foram consideradas suficientes para dar apoio à linha de vapores
da Companhia União Mercantil, prestes a iniciar
a sua actividade. Para perceber um pouco a reação do resto da Ilha, nada como
transcrever a opinião de um influente de Ponta Delgada sobre a Ribeira Grande,
pessoa que pugnava pelo porto em Ponta Delgada e que tinha interesses na
Ribeira Grande. Trata-se de José do Canto que, em
1853, em carta escrita de Paris ao primo José Jácome Correia, referia-se aos da
Ribeira Grande como ‘aquela dissidente e intratável gente.’[16].Aliás,
em 1857, a Câmara estava em litígio aberto com José Jácome por causa da posse
da água da Ribeirinha, ao ponto da autarquia contratar os serviços de uma
Sociedade de Advogados de Lisboa.[17]
Talvez pelo facto de os da Ribeira Grande defenderam com garra o que pretendiam
par a sua terra, tal como José do Canto o fazia para a sua? José do Canto e
outros, vendo a ilha de São Miguel através dos interesses de Ponta Delgada,
pretendiam o porto da Ilha em Ponta Delgada, ao contrário dos da Ribeira Grande
(e de outras partes da Ilha, por exemplo Vila Franca), que viam a Ilha da sua
terra.
Lugar
das Areias
Rabo
de Peixe
[1] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume II, ICPD, 1995, p. 699, Cf. A Persuasão, Ponta delgada, 9 de Outubro de
1901.
[2] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume I, ICPD, 1995, pp. 66-67. In Persuasão, 18 de Março de 1896, Cf.
Açoriano, Ponta Delgada, 31 de Janeiro de 1846: tempestade faz estragos no cais
da Alfândega de Ponta Delgada e paralisa todo o comércio da laranja; Açoriano,
28 de Fevereiro de 1846: 48 navios que aguardavam uma oportunidade para
carregar laranja, devido ao mau tempo, não puderem fazê-lo; Açoriano, 7 de
Março de 1846: o capitão da escuna inglesa Idea
devido ao mau tempo foi vítima de um grave acidente; 12, 26 e 31 de Dezembro de
1846: a 8 o tempo obrigou alguns navios a levantarem âncora, a 9, continuando o
mau tempo, grande parte dos navios ‘andarem sobre vela,’ a 10 o tempo piorou, a
13, continuou o mau tempo; a 14 o tempo permitiu e havia à vista 42 navios; a
24 naufrágio no calhau do Corpo Santo, da escuna inglesa Herbert. Salvou-se a
tripulação. O tempo soprou bastante rijo do sudoeste e obrigou os navios a
levantar; 9 de Janeiro de 1847: a 5 soprou de oessueste bastante forte
obrigando os navios a levantar âncora; a 7 outra vez mau tempo que obrigou
novamente os barcos a levantar âncora, a 8 tempo chuvoso e vento forte;
Açoriano, 6 de Fevereiro: a 30 naufragara o iate Tio e sobrinho, salvara-se a
carga e a tripulação. O motivo não foi o mau tempo; Açoriano, 27 de Fevereiro:
a 21 vento rijo do oeste, obrigou parte dos navios a levantar âncora; a 25 os
navios continuavam sem ancorar, a 26, apenas alguns fundearam; Açoriano, 13, 20
e 27 de Março: a 1 o vento forte do Sul obrigou todos os navios a levantar
ferro; a 14 repetiu-se o cenário; q 17, os navios vieram procurar ancoradouro;
a 25, continuam os levantes nos navios que apenas alguns conseguem entrar no
ancoradouro, por causa dos ventos fortes constante de oeste; Açoriano, 3 de
Abril de 1847: a 8 levantaram-se todos os navios surtos no ancoradouro; a 14,
correu como certo que dos barcos que dos diversos portos da Ilha tinham ido à
pesca a Santa Mari se perderam dois da Vila do Nordeste.
[3] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume I, ICPD, 1995, p. 97. Cf. O Cartista
dos Açores, Ponta Delgada, 11 de Abril de 1846.
[4] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume I, ICPD, 1995, p. 97. Cf. O Cartista
dos Açores, Ponta Delgada, 11 de Abril de 1846.
[5] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume I, ICPD, 1995, p. 97. Cf. O Cartista
dos Açores, Ponta Delgada, 11 de Abril de 1846
[6] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume I, ICPD, 1995, p. 97. Cf. O Cartista
dos Açores, Ponta Delgada, 11 de Abril de 1846
[7] Nasceu em Angra, S. Pedro, em 3 de
Novembro de 1791. Fez parte da Comissão inicial do novo Concelho das Capelas.
[8] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume I, ICPD, 1995, p. 97. Cf. O Cartista
dos Açores, Ponta Delgada, 11 de Abril de 1846
[9] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume I, ICPD, 1995, p. 97.
[10] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume I, ICPD, 1995, p. 97.
[11] A 30 de Setembro, que se lançou a primeira pedra para a
construção do porto artificial de Ponta Delgada, arrastando-se as obras até
1942.
[12] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume I, ICPD, 1995, p. 106;
Cf. Açoriano Oriental, Ponta Delgada, 9 de Março de 1850.
[13] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume II, ICPD, 1995, pp. 699-900, Cf. A Persuasão, Ponta delgada, 9 de
Outubro de 1901.
[14] Açoreano, Ponta
Delgada, 13 de Junho de 1850: ‘Consta
nesta cidade o haver-se ontem lançado a primeira pedra no alicerce do cais da
Vila da Ribeira Grande.’ CF. Supico, Francismo Maria, Escavações, Volume
II, 1995, p. 700.
[15] Lopes, J. L., Memoria
descriptiva em apoio do Projecto para o melhoramento do Porto de Santa Iria no
Concelho da Ribeira Grande, Districto Administrativo de Ponta Delgada, na Ilha
de S. Miguel dos Açores pelo Capitão
do Corpo de Engenheiros, Director das Obras Publicas do mesmo Districto João
Luiz Lopes, [S. l.: s. n.], Ponta
Delgada, Typ. A. das Lettras Açorianas, 1856, p.6; Arquivo CID, Secretaria Regional das Obras Públicas e
Comunicações, Projecto para o melhoramento do Porto de Santa Iria 1855 por João
Luís Lopes, Direcção das Obras Públicas, Districto de Ponta Delgada, 439 C-43:’ Esboço da Planta do Porto de Santa Iria com
o Projecto para melhoramento do dito Porto e estrada adjacente com as letras de
referência à Legenda explicativa.’
[16] Canto, José do, Cartas
particulares a José Jácome Correia e Conde de Jácome Correia 1841 a 1893,
Carta VII de José do Canto a José Jácome, 24 de Agosto de 1853, Paris,
Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1999, p. 16.
[17] AMRG, Acta da
sessão de 13 de Outubro de 1857, 1856-58, fl. 150 v.
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