A Alagoa foi escolhida? XVI
Porquê?
Foi por ficar próxima da Ribeira Grande? É provável. Antes de mais, Alagoa era
como a Lagoa era conhecida em toda a Ilha, fosse em documentos oficiais, fosse
‘na boca do povo ou na de gente grada.’ A este propósito, até há pouco,
quando se ia lá ‘jogar à bola’ ouvia-se
a pergunta: ‘vais jogar à Alagoa?’ Aceite
a explicação? Regressemos à proximidade? Chegando à ‘coroa’ da
Ladeira da Mediana, caminho usado desde que há memória (oral e
escrita) para se ir da Ribeira Grande ao Sul da Ilha, tomando o primeiro caminho à direita, só dali
a mais ou menos dez quilómetros (medida actual) se alcançava Ponta Delgada. Em
contrapartida, seguindo-se em frente, a pouco mais de quatro quilómetros chegava-se ao porto dos
Carneiros,[1]
onde os da Ribeira Grande (muitos ou poucos, não sabemos) acabariam por alugar
ou comprar casas próximas do porto. Em 1773, eis um exemplo, ‘o Alferes José Francisco Pacheco de Souza Raposo (sic), morador na vila da Ribeira Grande,’ aforou ‘umas casas altas, sobradadas, sitas na Vila da Alagoa.’[2] Em
1786, José Francisco vende umas casas que ficavam na rua que ‘vai para o porto’ da Lagoa.[3] Que
talvez correspondam às de 1773. Para que necessitaria de casas na Alagoa? Como local
de entreposto para os seus negócios? Talvez.
Mais razões para se haver escolhido
a Alagoa? Sairia muito mais barato à Ribeira Grande. Além da maior distância entre a Ribeira Grande e Ponta
Delgada, o que agravaria os custos de transporte, o ‘porto’ da ‘cidade’ estaria
a ‘abarrotar’ de embarcações. ‘Sendo
tempo, dinheiro,’ o tempo de
espera naquele porto para embarcar e desembarcar mercadorias, encareceria ainda
mais os custos e, por conseguinte, cortaria nos lucros, pondo ainda em risco a ‘integridade’ dos produtos. Mais outra
razão: as rendas dos armazéns em Ponta Delgada seriam mais altas do que as da Alagoa. Todavia, isso não
significaria (longe disso) que o maior intercâmbio comercial da ilha não
fosse entre a Ribeira Grande e Ponta Delgada. Exemplos disso? Como no-lo testemunha Gaspar Frutuoso. Cem
bestas e cinquenta homens transportavam todos os dias da Ribeira Grande para
aquela cidade farinha e outros bens. Quais? Das cinco mil pedras de linho
produzidas anualmente pela Ribeira Grande, três mil destinavam-se a Ponta
Delgada. Dos trezentos moios de favas, a Ribeira Grande vendia duzentos a Ponta
Delgada. Muita junça para a engorda dos porcos de toda a ilha. E pastel. E de
outras coisas mais. [4] Tudo
isso no tempo em que Frutuoso escrevia, recorde-se.
A rapidez (aparente?) com que a Ribeira
Grande alcançou o uso do porto dos Carneiros dever-se-á à menor importância do
Concelho da Alagoa face aos Concelhos da Ribeira Grande
e de Ponta Delgada? É possível. Dispor de um porto num outro Concelho, que
significado poderia ter? Que se tinha poder e amigos poderosos? E
condescendentes? Provavelmente. O que vos parece? E poderá ainda ter a ver com
o que (a esta distância no tempo) nos parece ter sido o alinhamento frequente (às
vezes forçado outras voluntário) da Alagoa com aqueles dois concelhos? Seja
qual for a razão da escolha/obtenção, a Alagoa oferecia (forçadamente, ao que
parece) à Ribeira Grande um excelente ancoradouro no porto dos Carneiros. E
a razão do nome dos Carneiros? Aludindo
aos tempos iniciais do povoamento, Frutuoso diz apenas isso: ‘por
acharem ali tantos carneiros.’[5]
Pelos padrões da época, seria um bom porto. Em termos de protecção e ‘de mar,’ como se ouve ainda dizer aos
pescadores da terra, para alguns, o porto dos Carneiros não seria pior, para
outros, em certas circunstâncias, até seria melhor do que o de Ponta Delgada. Este
último porto (duas calhetas e um areal), ficava desprotegido dos ventos do
oeste e de leste. Para nosso descontentamento, já não se ouvem as vozes dos
‘marítimos’ do porto de Pero de Teive, na Calheta, as dos do areal de São
Francisco e as dos da calheta de Santa Clara. Teriam outra opinião? Não se
sabe. Quanto ao assunto, confesso a minha total ignorância.
Igual,
pior ou melhor, pouca diferença fará, a somar a tudo isso, o porto dos Carneiros,
além de ficar resguardado dos ventos do quadrante Norte, ainda estava protegido
dos ventos de sudoeste (Ponta Delgada) e de sudeste (ponta da Galera). Aliás,
Frutuoso já dizia do
Porto dos Carneiros que era um ‘bom porto, principalmente de Verão.’[6] Tal como o de Ponta Delgada. Numa informação referente aos portos da Ilha, datada presumivelmente entre
1553 e 1567, quando já seria utilizado pela Ribeira Grande e partes do Norte, o
porto dos Carneiros era considerado ‘muy
importante.’[7]
Mais outra vantagem: a Alagoa
ficava mesmo ao lado de Ponta Delgada. Caso fosse necessário, a viagem do ‘porto’ dos Carneiros aos ancoradouros de
Ponta Delgada ia pouco além da légua marítima. Aliás, em dias de boa
visibilidade, dava a sensação que ficavam ao lado um do outro. À vista um do
outro, situavam-se no interior de uma enorme baía, que Frutuoso descreve assim:
‘ponta de Santa Clara; entre a qual e a
da Galé se faz uma grande enseada, já dita, de compridão de três léguas.’[8]
Num aperto, havia safa possível, já que, toda a costa do sul a nascente do
porto dos Carneiros dispunha de fundeadouros utilizáveis, por exemplo, a
Caloura. Esta proximidade da Lagoa a Ponta Delgada, acabaria por ser uma enorme desvantagem para o futuro
da Alagoa. Diz-nos Sarmento Rodrigues em 1941, que terá contribuído para ‘que os seus desembarcadouros não tenham [tivessem] atingido grande desenvolvimento, como de
outra forma mereceriam.’[9]
O Padre João José Tavares, (a)lagoense
de gema, que deu o nome a um Instituto Cultural na sua terra, em finais do
século XIX, oferece-nos pormenores reveladores do que fora o porto da sua terra.
O que existia à volta dos Carneiros? Diz o padre Tavares: ‘uma eira para debulhar trigo e três granéis, dos quis ainda existe um
bem espaçoso, para depósito dos cereais que eram exportados.’ Isso já no
século XVI? Além disso, continua, ‘Era também um dos locais desta Ilha onde
se construíam embarcações, sendo este serviço feito no beco, no lado norte do
mesmo porto (…).’ Para um período posterior ao século XVI, provavelmente
para o século XIX, acrescenta nova preciosidade: ‘Tem um cais (…). A pedra do forte que lhe ficava contíguo foi
aplicada nesta obra que se revestiu
duma grande utilidade para a exportação da laranja, cuja produção, nesta vila,
era então muito abundante.’[10] O
que não existiria no século XVI? Provavelmente.
Outra pergunta? Quem terá proposto - ou
apadrinhado -, a solução do porto dos Carneiros? Os cronistas deixam-nos completamente
às escuras. Pior ainda, repetimos mais uma vez: não temos acesso à tal provisão
que (ao que nos dizem os cronistas) concedeu o uso daquele porto à Ribeira
Grande. Resta-nos o quê? Palpites? Vamos a eles? O pedido enviado ao Rei terá
partido (ou foi subscrito) por gente da governação e proprietários da Ribeira
Grande, tais como Pedro Rodrigues da Câmara, Rui Tavares e outros poderosos,
entre os quais, D. Gil Eanes da Costa, o preferido de D. João III. Gil Eanes teria pedido ao Rei
aquele ‘favor,’ mais um dos que já
alcançara, como o da vara pequena? Os trigos de Gil Eanes vinham das suas terras
do Pico Arde e do Morro e de mais terras na Ilha, pelo que lhe daria ‘um jeitão’
servir-se do porto dos Carneiros. Além dele, outros mais terão visto
conveniência nisso. Ou não terão tido alternativa. António Santos Pereira, que
trabalhou as actas de 1555 e de 1576, identifica-nos, além de Gil Eanes, D.
Simão de Sousa, que reside em Lisboa. E outros que moram em Ponta Delgada:
Jerónimo Botelho de Macedo e Diogo Gonçalves. Aires Jácome, Aires Jácome
Correia, D. Álvaro da Costa, Fernão Correia, Francisco Carneiro, residem na
Ribeira Grande. A ideia pode ter
colhido o apoio (pelo menos não terá tido a oposição) da governança de Ponta
Delgada. Porquê? Haveria mais espaço no porto se o Norte e a Ribeira Grande
despachassem o seu trigo (e mais frutos) por outro porto. E a Alfândega de
Ponta Delgada, como encarou essa opção? Terá encontrado maneira de não sair prejudicada?
Disso não pode haver dúvidas. A opção teve de ter obrigatoriamente a
concordância do Corregedor Régio: olhos, ouvidos e boca do Rei na Ilha. Qual
poderá ter sido a sua posição no assunto? Sendo inviável fazer obras no imediato
no porto de Santa Iria, estando o porto de Ponta Delgada sobrecarregado com
obras e bastante (à escala de então) movimento, a solução ideal seria o uso
alternativo do porto dos Carneiros, terá pensado. Provisório? De qual
Corregedor estaremos a falar? Dependendo do ano em que isso aconteceu, tanto
poderá ter sido o doutor Francisco Toscano, o primeiro Corregedor de São Miguel
e de Santa Maria, que chegou à Ilha em 1534, ou Domingos Garcia, que veio em
1527, ou Aires Pires Cabral, em 1530.[11]
E qual terá sido a posição do capitão do donatário, que tinha paço na Lagoa? Apesar
de já não ter o poder que dantes tinha, poderia dar ainda uma ajuda? Sim. Bastava
nada dizer, já era ajuda. No caso, poderá ter sido ainda o capitão Rui
Gonçalves da Câmara (-1535), próximo da Ribeira Grande, ou o filho deste,
Manuel da Câmara (1535-1558).
O porto dos Carneiros começou a servir
a Ribeira Grande no reinado de D. João III, talvez ainda na década de quarenta
ou já na seguinte, mas quando terá terminado
de servir a Ribeira Grande? Sabe-se que em 1625 ainda era utilizado.[12] No
tempo em que Monte Alverne escreve, ainda era. Preste-se atenção: Frei
Agostinho deu por terminada a sua narrativa em 1695, no entanto, atenção, há
apontamentos posteriores que remontam à primeira década do século XVIII. Então,
a informação que nos interessa virá de 1695 ou de data posterior? Não se sabe. E
depois? Poucos anos depois de Frei Agostinho, em finais do primeiro quartel do
século XVIII, Afonso de Chaves e Mello nada diz. Mantinha-se ainda ou já não? Não
se sabe. Recomeçam os palpites. O que nos poderá querer dizer a venda em 1786
de umas casas na rua daquele porto? Que já não interessava à Ribeira Grande
aquele porto? Estava-lhes já vedado? O porto não estava operacional? São
possibilidades a considerar, no entanto, não temos provas. Ou a Ribeira Grande
deixou de usar aquele porto mais à frente? Em ano próximo do vintismo? Uma
carta topográfica levantada em 1822 não menciona o porto dos Carneiros mas menciona
Santa Iria. Como interpretar isso? Por essa altura, Mouzinho de Albuquerque diz-nos que a Lagoa e Água de
Pau pertenciam ao Districto de Vila Franca. Então, socorrendo-me de John
Webster, se a Lagoa em 1821 ou em 1822 (ou até antes) pertencia ao Distrito de
Vila Franca, será que faria sentido que Vila Franca continuasse a permitir –
caso fosse o caso -, aquela dependência à Ribeira Grande. A criação dos três
Distritos alterara o equilíbrio de forças na Ilha. Que acham? Soares de
Albergaria, assim nos identificam o seu autor, em trabalho publicado em 1822,
confirma-o: ‘o seu comércio [Ribeira
Grande] (…) é feito na cidade.’[13]
No entanto, como ‘o seguro morreu de
velho e a senhora prudência foi ao seu enterro,’ será melhor aguardarmos por
melhor prova da altura exacta em que a Ribeira Grande deixou os Carneiros e
regressou a Ponta Delgada. Por exemplo um documento. Acho que sim. Não
concordam? Última pergunta: a longo prazo, quem ganhou e quem perdeu com a
troca de Santa Iria pelos Carneiros? Vou tentar responder à pergunta no próximo
trabalho?
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
[1] Por exemplo,
ainda hoje de manhã, dia 20 de Julho de 2022. Para ir além dos livros, das plantas e até da magnífica
fotografia da NASA, e refrescar as ideias, subi de novo ao pico da Barrosa e a
olhei em redor. Percorri os caminhos antigos, visitei de novo o porto de Santa
Iria, dos Carneiros, do Porto Formoso, Maia, Ponta Delgada.
[2] BPARPD,
Tablionato Lagoa, Livro de Notas de Agostinho de Souza Rapozo, L 9, M 9, 7 de
Setembro de 1773, fls. 10 v.-13.
[3] BPARPD,
Tablionato, Ribeira Grande, Francisco Xavier Álvares, L 65, M 10, 14 de Julho
de 1786, fls. 53v-56.
[4] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV,
1998, p. 191.
[5] Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p. 166.
[6] Gaspar Frutuoso,
Saudades da Terra, Livro IV, 1998, p.
166
[7] Arquivo dos Açores,
volume IV, pp. 121 e seguintes
[8] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, ICPD,
Livro IV, 1998, página 172.
[9]Sarmento
Rodrigues, p.120
[10] Tavares, Padre
João José, A Vila d lagoa e o seu
Concelho: Subsídios para a sua história, Câmara Municipal da lagoa, 1979,
p. 289; Pode também ver (com plantas): Martins, José Manuel Salgado, Do basalto ao betão: fortificações das ilhas
de São Miguel e Santa Maria – séculos XVI-XX, Letras Lavadas, 2013, pp.
94-95: ‘Forte de Santa Cruz, ex-prédio
militar n.º 6.’
[11] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, VI Volume,
Ponta Delgada, 1998
[12] Transcrição de
cópia de treslado de uma precatória que veio da Vila da Ribeira Grande,
Extraído do Livro do Tombo da Câmara Municipal da Lagoa, Ribeira Grande, 17 de
Setembro de 1625, cf. Tavares, Padre João José, A Vila da Lagoa e o seu Concelho: Subsídios para a sua história,
Câmara Municipal da Lagoa, 1979, pp. 289-290
[13] Albergaria, João Soares, Corografia Açórica (…), Lisboa, 1822, p. 69.
A Alagoa foi escolhida? XVI
O
que carregava a Ribeira Grande e partes do Norte pelo porto dos Carneiros? Frutuoso: ‘(…) todo o pão que vai da banda do norte, como
da vila da Ribeira Grande e seu termo.’[1]
A Vila da Ribeira Grande cujo termo, ao tempo que
Frutuoso escreve, já incluiria a área das Calheta e do Pico da Pedra. Mas a que
banda do norte se referia Frutuoso? Porto Formoso para Nascente? Dos Fenais da
Luz para Poente? Não diz. Um século depois de Frutuoso, Frei Agostinho de Monte
Alverne, nascido e criado na Ribeira Grande, onde possivelmente terá escrito
parte da sua obra, além dos trigos, identifica de forma genérica outra
exportação: ‘frutos.’[2] Quais?
Não nos identifica, porém, por esta altura, o pastel estava em alta, seria pois
pastel. E mais? Panos?
Como
deveria fazer quem pretendesse exportar ou importar pelo porto dos Carneiros?
Resposta: obter despachos assinados ‘pelos oficiais da Câmara’ da Ribeira Grande. Como deveria proceder a Lagoa? Aos da Lagoa, diz-nos
Frutuoso: ‘com obrigação que têm
ali de guardar, sem contradição.’[3]
A razão viria explicada numa sentença: ‘porque assim o tem a vila da Ribeira
Grande por sentença, em um litígio que sobre isso tiveram.’[4]
[1] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, Livro Quarto, IV Volume, Ponta Delgada, 1998, p.
166.
[2] Alverne, Frei
Agostinho de, Crónica da Província de São
João Evangelista das Ilhas dos Açores, Volume II, ICPD, 1961, p. 294.
[3] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, Livro Quarto, IV Volume, Ponta Delgada, 1998, p.
166.
[4] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, Livro Quarto, IV Volume, Ponta Delgada, 1998, p.
166.
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