Sem dinheiro era assim, com
dinheiro é assado!?
Para meditar
(Santa Iria – XVII)
Afinal
o grito de alerta ‘Salvemos o Porto de
Santa Iria!,’ lançado em Dezembro
de 1949 por Tavares Barbosa,’ foi
ouvido. Manuel Francisco Tavares Barbosa casa na Ribeirinha com uma senhora
viúva. Está na freguesia já na década de 30. É um autodidacta, escreve para os
jornais e é autor de peças de teatro. Laureano Almeida lembra-se bem de o ouvir
e a outros discutir obras de Eça de Queirós. Acabou por ir para a Ilha Terceira
onde faleceu. Era aparentado ao José Barbosa, homem do Teatro, jornalista, que
morou na Fajã de Baixo. Tavares Barbosa, não sei se ainda residia na
Ribeirinha, conseguiu que o Comandante do Posto Fiscal da Ribeirinha Gil Soares
Paulino não só ouvisse o seu apelo como passasse à acção. O amigo e mestre nas
coisas da Ribeirinha e que será mestre nas do aeroporto de Santana, chamou-me a
atenção para um artigo de Gil Paulino que explica o que se passou. Muito
obrigado ao amigo e à sua esposa. Vindo a suceder ao Sr. Ezequiel Miranda,
segundo ele próprio nos diz, Gil Paulino chegou ao Posto Fiscal da Ribeirinha
em Junho de 1950.[1]
Era filho de Mestre Amaro, um tanoeiro que tinha tenda na rua do Melo em Ponta
Delgada. Gil estudara na Escola Industrial e tinha imenso jeito para o desenho.
Na Ribeirinha ainda existem casas projectadas por ele. É provável que Gil tenha lido o artigo de
Tavares Barbosa. Mas se o não lesse, bastaria olhar para o porto quando chegou
em Junho de 1950. Ou falar com as pessoas da terra. Ou mesmo com Barbosa. Gil,
que passou a residir na Ribeirinha, encontrou o porto, ‘seriamente danificado sendo já quase impossível a varação das quatro
embarcações existentes.’[2]
Tal como havia descrito Tavares Barbosa. E falou com quem usava as embarcações:
‘Os pescadores com grande mágoa iam vendo
desaparecer este porto, que tanta vez lhes salvara a vida.’
Não ficando de braços parados, começou a
mexer os cordelinhos certos. Conta-o de forma humilde, quase se fazendo
desaparecer da cena: ‘Após várias
diligências junto das entidades competentes levadas a cabo pelo activo e
prestigioso Capitão do Porto - Tenente António Ferreira de Oliveira, vieram a
este porto em visita técnica o ilustre Engenheiro da Junta Autónoma dos Portos
de Ponta Delgada Sr. Abel Férin Coutinho
que era acompanhado pelo sr. Carlos Horta, zeloso chefe dos serviços daquela
Junta, que verificaram a extrema necessidade das obras a efectuar neste porto.’
Medite-se
nisso: no tempo em que mal havia dinheiro para fazer cantar um cego por muito
tempo, a entidade que tutelava o porto de Santa Iria, em gritante contraste com
os dias de hoje, onde há dinheiro a rodos e técnicos a bater com um pau, veio de
imediato ver o que se passava e fez a obra necessária: ‘Após esta visita começaram as obras que constaram dum varadouro novo e
reconstrução de muralhas.’ Veja-se bem: Gil Paulino entrou ao serviço em
Junho de 1950 e estas obras foram ‘concluídas
em Setembro de 1951.’ Bravo. Vergonha para os de hoje que já vão ‘engonhando e engonhando’ há mais de uma
dúzia de anos. Desculpas atrás de desculpas. Não nos tomem por tolos. Estarão
por certo à espera que o problema se resolva por si: seja esquecido. Estarão
mal enganados, pois se há terra que nada esquece é a Ribeira Grande.
Escreve
Paulino: ‘Concluídas estas obras em 1951,
que muito se faziam sentir, beneficiando a vida do porto de Santa Iria, pois
que
As
obras não só fizeram com que as quatro embarcações existentes se mantivessem no
porto de Santa Iria como lograram atrair outras quatro de outros pontos da ilha.
Oiçamo-lo: ‘Já foram, por nossa sugestão,
adquiridas mais quatro novas embarcações completamente apetrechadas.’ Vejam lá de onde veio a primeiro e qual a sua
função: ‘sendo a primeira de António
Bernardo Barbosa, vinda do Porto Formoso em Maio de 1951, encontrando-se
atualmente [4 de Agosto de 1952], a
fim de fazer percursos mais longos e rebocar barcos de menor tonelagem e ainda
para socorros desta área.’ Ainda decorriam as obras e já havia novas
embarcações. Porquê? Porque o porto melhorara e havia grande necessidade ao
redor da ilha de encontrar novos portos. O barco de António Barbosa apostara em
mais do que a pesca. Barbosa trocara o Porto Formoso, ali ao lado, pela
Ribeirinha.
E
continua, já depois de concluídas as obras, ‘sendo a segunda de Gabriel Furtado Tachinha, vinda do porto da Calheta,
em Julho de 1951, denominada S. João de Brito.’ Ainda as obras não haviam
findado e consegue interessar um pescador da costa sul, da Cidade de Ponta
Delgada, ao ponto de o trazer para Santa Iria, na costa norte. Outra
da costa Sul: ‘Terceira de António
Marieta vinda do Porto de Água de Pau em Dezembro de 1951, denominada de Santo
Cristo.’ E, por fim, do Norte, oriunda de um local que já estava em
contacto com Santa Iria desde o século XVI, a ‘Quarta embarcação de Eduíno Furtado
de Medeiros, vinda do porto da Achada, em Janeiro de 1951, denominada Estrela
do Mar.’[3]
Como vimos em artigos anteriores, os trigos dos irmãos Pedro e António
Rodrigues da Câmara das suas terras da Achada vinham do porto da Achada para o
porto de Santa Iria no século XVI, e terão sido uma das causas principais da
‘construção’ daquele porto de Santa Iria ou a adaptação ‘rudimentar’ daquele primitivo calhau. Porquê ali? Pela proximidade
às propriedades dos ditos senhores e porque reconheceram ser aquele ponto o
melhor ancoradouro das redondezas.
A acção de Gil Paulino não ficou por aí, pois,
‘havendo como é natural um mais
movimentado tráfego, fazia-se sentir a falta de um guincho, para varação
(p.7) dos rspectivos barcos, o que a
nosso pedido se verificou pouco depois.’[4]Sendo
necessário dar mais e melhores condições ao porto, ‘Pedindo ao Excelentíssimo Senhor Capitão do Porto em Novembro de 1951 a
beneficiação do Porto de Santa Iria,’ veja-se que o pedido acontece apenas
dois meses após a conclusão das obras do varadouro e da muralha. E veja-se o
resultado: ‘Quis sua Excelência
comunicar-se com a Junta Geral do Distrito, cujas obras ficaram concluídas,’
corem de vergonha os actuais responsáveis, ‘em
Março de 1952.’[5]
Ou seja, foram necessários três meses para pedir e ver as obras feitas. Que foi
feito naqueles três meses? Veja-se: ‘fazendo
parte a reconstrução do Ramal de acesso a este porto,’ e remata, ‘ficando assim uma obra de grande utilidade.’[6] Há
anos que se vem pedindo a simples consolidação de um troço das arribas de
acesso ao porto e há anos que a gente desespera sentados! Acrescentando-se,
entretanto, a ruína de um enorme troço da muralha e da total destruição do
primitivo varadouro.
Mas
as obras do tempo de Gil Paulino não ficaram por aí: ‘Havendo ainda necessidade de canalizar água potável, para uso dos
pescadores deste porto, e ainda para os pescadores de outros portos, que aqui
vêm encher os seus barris, tendo para isso, de percorrer, uma distância de
cerca de um quilómetro, já mos foi prometida a realização da útil como
benemérita obra.’ Foi cumprida a promessa? Existe água potável no porto,
desconheço desde quando. Gil havia chegado à Ribeirinha há pouco menos de dois
anos.
Gil,
após ter começado o artigo com um historial do Porto, referindo a baleação, a
pesca, o comércio da laranja, termina com uma visão actual e de futuro do mesmo
porto: ‘Por aqui se vê que, o antigo
Porto de Santa Iria, de antigas e honrosas tradições voltará em breve a ter o
prestígio de outrora.’ Após
agradecer ao capitão do Porto, conclui: ‘por
todas as razões expostas, esperamos que o porto de Santa Iria continue em
progresso, para o bom nome duma terra que quer e pode, devido às suas boas
vontades, marcar um lugar de destaque nesta terra.’[7]
Se
no tempo das vacas magras do pobre Distrito composto por duas ilhas e pouco
mais dos tempos de Salazar era assim, neste da Autonomia das nove ilhas das
gordas maquias de Bruxelas é assado?! Porquê? Santa Iria deixou de prestar? O
mar do Norte já não presta? Haja vergonha! Cumpram a palavra dada!! Vejam com
olhos de ver o potencial daquele porto!!
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
Mário
Moura
[1] Numa segunda
fase, dever-se-ia indagar da existência de relatórios e outros documentos nos
arquivos da GNR ou da Guarda Fiscal. Bem como procede à recolha de histórias
junto a uma comunidade que viu desaparecer os seus pescadores. Seria também
seguir o exemplo da investigadora canadiana Alison Nilson em ‘Uma Mão Cheia de Vida: visões dos Açores,’
2021, e Ruben Farias em ‘Hominis Aqua: A
comunidade Piscatória de Rabo de Peixe,’ 2015. Comparar estes trabalhos que
retratam comunidades vivas com a memória que se foi apagando sobre Santa Iria.
[2]
Paulino, Gil Soares, Porto
de Santa Iria, A Ribeirinha, Edição da Junta de Freguesia da Ribeirinha,
Número único, 4 de Agosto de 1952, p. 5.
[3]
Idem, p. 5.
[4]
Idem, pp. 5, 7.
[5]
Idem, p. 7.
[6] Idem, p. 7.
[7] Idem, p. 7.
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