Que
destino tiveram estes jovens? - VII
Quantos entre eles mandaram
notícias às famílias como os irmãos Arruda Botelho? Ficaram pelo Brasil, como
José Teodoro ficou? Regressaram à ilha, como aconteceu com João Caetano?
Quantos adoeceram ou morreram na viagem?
Em inícios do mês de Julho de
1748, entrou no porto de a Angra, de volta de Santa Catarina, uma das duas
galeras que transportaram a primeira leva de colonos. Num saco lacrado, o
corregedor das Ilhas dos Açores, Francisco Xavier da Silva, recebeu uma carta
do Governador da Ilha de Santa Catarina dando-lhe conta de que ambas as
embarcações haviam chegado, ‘a salvamento
com a perda tão-somente de um homem e duas crianças.’[1] De
forma seca, sem indicar o nome do homem ou das crianças, das famílias que
haviam ficado sem aqueles entes queridos. Por que morreram? O seu corpo foi
decerto atirado ao mar como se costumava fazer, servindo de refeição a
tubarões. Arrepia. Três seres humanos em 500 transportados, a fazer fé na
informação de que cada transporte levava 250 pessoas,[2]
fora um sucesso.
O que levou aquela gente a sair
da Ilha? À altura, a ilha atravessava um período de graves e constantes crises
frumentárias, aliás ‘a crise frumentária agudiza-se nos anos de 1766, 1768,
1769 e 1770, por via de produções muito insuficientes.’[3]
Excesso de gente. ‘Segundo as próprias palavras de D. João V,
foi atendendo às representações dos moradores das ilhas dos Açores, pedindo
para tirar delas parte da população que aí vivia em grande miséria, que decidiu
mandar transportar até 4000 casais para as partes do Brasil (…).’[4]
Em 1747, São Miguel tinha uma população de 46.415 pessoas. No
mesmo ano, a ilha Terceira tinha quase metade: 22.468.[5]
A Ribeira Grande neste ano mandou para Santa Catarina, no Brasil, sessenta e
duas pessoas, Ponta Delgada 257 e Vila Franca, 9.[6]
Segundo documento de 5 de Novembro de 1756, ‘só na Ilha de Santa Catarina, já existem 1.084 casais açorianos, com
3.421 filhos, cujo transporte foi feito entre 1748 e 1752.’[7]
José e João haviam de ter alguma
ideia de alguns dos que em 1747 e depois de 1747 partiram para o Brasil.
Na introdução à segunda via, de 1767, toca-se nas razões de
1765 e da leva de João Caetano. Eis as razões. Chegara ao conhecimento do Rei
que ‘em São Miguel havia um grande número
de homens ociosos, os quais se poderiam tirar dela sem que fizessem a menor
falta nem à cultura das terras da mesma ilha nem à sua respectiva guarnição,
e por outra parte a necessidade que havia
de gente no Rio de Janeiro.’[8]
Em
parte, os irmãos Botelho Arruda saíram da Ilha porque a família passava dificuldades.
Acrescente-se às dificuldades, a influência
decisiva das ‘histórias’ de riqueza fácil obtida no eldorado brasileiro, o
irresistível fascínio exercido na mente aventureira de jovens, em cujas veias
borbulhava o exemplo aventureiro de Teodoro Botelho de Sampaio, o avô materno.[9]
Ele e o irmão conheceram bem a avó Maria Pimentel (b. 20.12.1664 – SPRS; f.
25.12.1746 - CRG), viúva do avô Teodoro.
Quando esta avó falece, José
Teodoro tinha 6 anos feitos e João Caetano 4.[10]
Os avós tê-los-ão, quase tão certo como dois e dois somam quatro, contado
histórias sem fim e peripécias várias dos tempos áureos do Brasil. Até mesmo,
poderiam ver, dispersa pela casa, alguma tralha trazida de lá. Ou o exemplo do
parente próximo, Francisco Pimentel, administrador de um pequeno vínculo, que,
antes de fixar residência definitiva na Ribeira Grande, em tempos se
estabelecera junto às cabeceiras do Rio São Francisco.[11]
Ou o de dezenas de outros casos de vizinhos e conhecidos. Havia
uma actividade comercial entre mercadores da Ribeira Grande e o Brasil. Quem
era António Dias Tavares que emprestou dinheiro a João Caetano no Brasil? De
António Dias Tavares, o pouco que sabemos sugere-nos uma personagem curiosa.
Pelo menos em duas ocasiões, em 1772 e em 1773, António Dias Tavares era
identificado como um mercador da Ribeira Grande de passagem pelo Rio de Janeiro
a caminho da Baía [D. 4: ‘(...) António Dias Tavares mercador da mesma Vila
(...)’] Segundo o Historiador José Damião Rodrigues, a Ribeira Grande terá
sido, em termos percentuais, a parcela dos Açores que mais contingentes deu ao
Brasil de gente da elite da terra. Muitos foram os que, de facto, tendo nascido
no Brasil, vieram a ocupar cargos importantes na Vila. Ou que no Brasil
ocuparam cargos de igual relevo. Destes, destaca-se, continuando a citar o
mesmo investigador, a família Botelho Arruda. José Teodoro Botelho Arruda, ao
decidir ficar pelo Brasil, e João Caetano Botelho ao regressar à Ribeira Grande,
onde viria a ocupar os mais altos cargos, são disso bom exemplo. Entre o ficar
e o partir, o prato da balança viria a pender para o lado da partida: tomaram a
decisão irrevogável de tentar a sorte no Brasil. Mais tarde, se tudo lhes
corresse de feição, com algum pecúlio amealhado e saciada a sede de aventura,
tão própria da juventude, sempre a sonhar com o horizonte, regressariam à
‘Pátria,’ tal como o avó e muitos outros o haviam feito e muitos mais o
haveriam de fazer.[12]
Outro regressante proeminente foi
Jerónimo Botelho do Rego Sá também conhecido por Jerónimo Botelho de Sampaio.
Ocuparia cargos importantes na governação da Ribeira Grande. Casou a 20 de
Fevereiro de 1783 na Ribeira Seca com Francisca do Rosário.
Ei-lo
de volta, conforme o vi em 2010, na biografia que dediquei à sua sobrinha (A
Freira do Arcano. Margarida Isabel do Apocalipse): ‘Qualquer alma de Deus que
soubesse tirar feições, saberia há muito que o homem respondia pelo nome de
João Caetano Botelho; alguém mais chegado teria de certeza ouvido dizer que
chegara a Capitão no Brasil: posto que lhe conferia todas as honras e
privilégios costumeiros. Que cara pertenceria àquele nome? Não sei, mas João
Caetano, segundo um passaporte passado treze anos antes, altura em que
regressara do Brasil após uma longa estadia de mais de duas décadas, seria
alto, para os padrões de então, bexigoso e de pele tisnada. Tisnado, talvez
pelo sol que apanhara no Brasil e na travessia de barco do Brasil a São Miguel
com passagem pela corte. O ser tisnado seria uma situação que passaria com o
tempo.
Que
não haja dúvida, o Capitão João Caetano era um homem influente: de poder e
substância. Movia-se com o mesmo à-vontade entre os do seu sangue, os das suas
relações e entre as demais pessoas da terra a que sabia pertencer.
Mário
Moura
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
Março de 2022
[1] Cf. AHU, Açores,
Caixa 3, n.º 25, 3 folhas, Carta do Corregedor das Ilhas dos Açores sobre o
transporte de casais para a América, Francisco Xavier da Silva, Angra, ao Rei,
Lisboa, 19 de Setembro 1748, Arquivo dos Açores, Volume III, 2.ª Série, Ponta
Delgada, 2005, p.99.
[2] Cf. AHU, Açores,
Caixa 3, n.º 25, 3 folhas, Carta do Corregedor das Ilhas dos Açores sobre as
cláusulas e condições com que se devem continuar os transportes dos moradores
das Ilhas para o Brasil, Francisco Xavier da Silva, Angra, ao Rei, Lisboa, 18
de Dezembro 1748, Arquivo dos Açores, Volume III, 2.ª Série, Ponta Delgada,
2005, p.106.
[2] Cf. AHU, Açores, Caixa 5, n.º 53, 4 folhas, Carta de D. Francisco Xavier de Menezes
[3]Nota de 2003: Meneses, Avelino de Freitas, Os Açores nas encruzilhadas
de setecentos (1740-1770), II – Economia, Universidade dos Açores, 1995, p. 47.
[4] Vilhena, Maria da Conceição, A viagem do emigrante açoriano para o Brasil
em meados do séc. XVIII, Anais da 2ª Semana de Estudos Açorianos [1987], Florianópolis, Editora da UFSC,
1989, p. 162.
[5] Cf. AHU, Açores, Caixa 3, n.º 20, 2 folhas, Tábuas dos
casais e pessoas que por ordem régia se alistaram nas Ilhas dos Açores, 1747,
Arquivo dos Açores, Volume III, 2.ª Série, Ponta Delgada, 2005, p.80.
[6] Idem, p.81.
[7] Vilhena, Maria da Conceição, A viagem do emigrante açoriano para o Brasil
em meados do séc. XVIII, Anais da 2ª
Semana de Estudos Açorianos [1987], Florianópolis, Editora da UFSC, 1989, pp.
162-163
[8] 2.ªa Via da Cópia da ordem da Secretaria de Estado
para a leva de duzentas recrutas para o regimento da guarnição do Rio de
Janeiro, Lisboa, AHU, Açores, caixa 6, n.º 7, 5 folhas, in Arquivo dos
Açores, Volume V, 2.ª Série, Ponta Delgada, 2012, 11 de Dezembro de 1765/ 10 de
Julho de 1767, p. 31.
[9] Nota de 2003: Rodrigues, Rodrigo, Genealogias de S. Miguel e Santa
Maria, v. 1, Sociedade Afonso de Chaves, Ponta Delgada, 1998, p. 12.
[10]Maria de Pimentel (b. 20.12.1664 – SPRS; f. 25.12.1746 - CRG)
[11]BPARPD, Tablionato, Testamento n.º 3 085, João Caetano Botelho, Maço
31, 21 de Maio de 1808.
[12]Nota de 2003: Silva, Maria Beatriz Nizza da, A vida quotidiana no
Brasil na época de D. Maria I e D. João VI, Editorial Estampa, Lisboa, 1993, p.
259: ‘Pátria (no sentido setecentista do local de naturalidade.’
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