E
se a Ribeira Grande fosse já Cidade há 170 anos? – I
Ainda que não consiga obter provas
tão sólidas como as rochas da ‘Chã das
Gatas,’ garanto-vos que não irei contar nenhum conto da ‘carouchinha.’ Vamos a isso? Com data de 16
de Junho de 1852, dava entrada na Câmara dos Deputados em Lisboa o projeto-lei
n.º 86 propondo a atribuição do ‘título
de Cidade à Vila da Ribeira Grande na Ilha de São Miguel.’ Quem o apresentou foi o Dr. João José da
Silva Loureiro (n. 2 de Março de 1809 - Ponta Delgada – f. 24 de
Junho de 1878 Ponta Delgada),[1] deputado
eleito pelo círculo da Ilha de São Miguel. Foi admitido na sessão Parlamentar do
dia 17 de Junho. Não lhe foi acrescentado qualquer informação adicional, excepto
uma nota lacónica indicando que o ‘projecto
lei’ havia sido ‘admitido’ e que
baixaria às ‘secções.’ E o que se
seguiria ao envio às ‘secções’? Após ser submetido à análise e ao parecer dos
membros ‘da secção’ competente, subiria
novamente a plenário onde seria votado? Passaria antes ou depois pelas ‘mãos’
do Ministro de Estado dos Negócios do Reino, Rodrigo
da Fonseca? Em que
ponto do processo entrava a Rainha D. Maria II? Seria esse o percurso normal de qualquer projecto de lei?
A exemplo da Horta com o futuro Conde de Ávila e Bolama ou de Tomar com o
futuro Conde de Tomar, terá Loureiro, antes de apresentar o projecto, tentado
obter o apoio de alguém politicamente influente? Era um passo importante. Para
já, parece que a Ribeira Grande não ‘teve
padrinhos.’ Enquanto as dúvidas aguardam resposta, avanço
para outras perguntas: foi só em Junho de 1852 que surgiu pela primeira vez uma
tentativa para elevar a Vila da Ribeira Grande a Cidade? A de 1852 terá sido apenas
a primeira tentativa oficial? Também não sei. Ou será que essa aspiração já vinha
de trás? Da primeira metade do século XVII? Como aconteceu com o caso da Vila
da Horta? Reis Leite,
indo aos Anais do Município da Horta
de Marcelino de Lima, diz-nos que a vila da Horta havia, em 1670, tentado ser
elevada a Cidade.[2] Quanto
à Ribeira Grande, segundo uma interpretação possível de uma passagem de Frei
Diogo das Chagas, mas sem termos prova indiscutível disso, é possível ver nela
um eco da ambição de a Ribeira Grande vir a ser Cidade. Assim sendo, a
tentativa da Horta teria ocorrido quase três décadas depois. Na tal passagem
sobre a Ribeira Grande, Chagas escreveu: ‘tudo
a Vila sustenta muito bem por sua largueza e lavranças que são as melhores da
Ilha e é de tanto tráfico e trato, como a Melhor Vila do Reino, por seus portos
secos, que do mar não os tem que c[….]
[rasgado] tão grandiosa, que a cidade [de
Ponta Delgada] se não avantaja e por
[….] [rasgado] decurso do tempo o há-de
vi[r a ser?].’[3]
Ainda que, a passagem se
apresente ligeiramente danificada, todavia, não ao ponto de nos impedir a sua
leitura, dela pode retirar-se esta hipótese. E ainda que aquelas palavras de
Chagas não fossem mais do que um bonito gesto de cortesia ou meras palavras de lisonja
para com os seus anfitriões da Ribeira Grande (Chagas esteve em 1646 na Ribeira
Grande), não deixam (contudo) de nos revelar algum fundo de verdade. Que acham?
Não temos provas sólidas, apenas insinuo possibilidades, que carecem de ser
documentalmente comprovadas.
Voltando a 1852. É provável que
alguém (em algum lado), entre 1852 e 1979, tenha escrito sobre 1852. Se assim
aconteceu, a memória disso (oral e escrita) perdeu-se. Por isso, confesso
a minha total surpresa quando li no artigo de apoio à elevação da Ribeira Grande
a Cidade, de Abril de 1979, intitulado ‘A
Ribeira Grande merece ser Cidade’ do meu antigo Mestre de História, Professor Luciano de Resende da Mota
Vieira (São Pedro, Ponta Delgada, 22 de Setembro de 1920 - Ponta Delgada, 16 de Fevereiro de 1994), que a Ribeira Grande tentara ser cidade em 1852.[4] Artigo que apenas li em
2000 ou talvez em 2001. E que ‘saboreei’
como se fosse ‘um biscoito da padaria
Favinha.’ Disso lembro-me.
No entanto, para
minha decepção, Mota Vieira não transcreveu a proposta de Loureiro. Conhecê-la-ia
só de referência ou conheceria também o texto completo? Ainda que (eventualmente)
conhecesse o texto completo, compreende-se perfeitamente que não o tivesse
transcrito. Não havia só defensores da ideia de elevar a Ribeira Grande a
Cidade, que não seriam muitos, havia os que achavam a ideia absurda, mesmo
ridícula, troçando até dela, neste contexto, parece-nos razoável admitir que
Mota Vieira pretendesse tão-só escrever um artigo (neste Correio dos Açores) em
que demonstrasse o absurdo de se ridicularizar a ideia. Por conseguinte, a
alusão à tentativa de 1852, estou em crer, teria apenas a intenção de servir de
argumento de peso. Não terá, no entanto, como qualquer investigador que se
preze, e ele era um deles, posto de parte a ideia de mais tarde divulgar e até
estudar a fundo aquela proposta, tanto mais que redescobrira a referência ou o
próprio documento.
Interpretação diversa
deverá ter a memória histórica do ‘Projecto de Decreto Regional para
a Elevação’ da
Vila da Ribeira Grande ‘à categoria de
Cidade.’ Datado de 1 de Junho de 1981, e elaborado
pela ‘Comissão
Permanente para os Assuntos Políticos e Administrativos’ da Assembleia Legislativa Regional, nele não se dá conta do trabalho de Mota Vieira.[5]
Porquê? Uma resposta possível: a memória não ambicionava ser um trabalho de
investigação histórica.[6]
Para o fim a que se destinava, seria suficiente uns breves lamirés de História.
O esquecimento daquela tentativa de 1852, no entanto, fez imensa falta, como
tentarei demonstrar mais à frente nesta série de artigos. A História
‘repete-se’ (de certa maneira) quando se perde a memória do passado?
Arregacemos as
mangas? Onde encontrar o texto integral da proposta de 16 de Junho de 1852? Comecei
pela fabulosa colecção de Leis antigas que faziam parte do acervo da Casa da
Cultura da Ribeira Grande.[7]
Ainda que tenha estado horas a fio ‘a
queimar pestanas,’ não consegui encontrar uma ‘agulha.’ Perdi tempo? Pelo contrário, fiquei a saber que deveria
procurar noutra série documental. No Arquivo Histórico da Assembleia da
República? Era bem provável. Tentei, então, de novo sem sucesso, explorar
aquela pista. Ocupado ‘até à ponta dos
cabelos,’ na altura publicava a III série de o jornal Estrela Oriental, vi-me forçado a adiar a pesquisa para outra
altura. Ainda assim, sem remeter o assunto para as ‘calendas Gregas,’ em conversa com Hermano Teodoro, meu colaborador
e cúmplice, das muitas conversas que mantínhamos
quase diariamente, insisti na sua relevância para a História da Cidade da
Ribeira Grande. Um dia, não me lembro ao certo qual, chegou-me com a boa
notícia. Mais tarde, em 2006, pelos 25 anos de cidade, publicou o texto
completo.[8]
Sem, contudo, o comentar.
E agora? Quero
dar o passo seguinte: comentá-lo. Assumindo a postura de ‘escavador,’ vou ‘escavar e analisar’ as várias ‘camadas’ da
proposta. Para a perceber melhor, quero conhecer o contexto histórico em que Loureiro
a apresentou, saber quem foi Loureiro, porque a apresentou, quem lha terá
encomendado, se foi esse o caso, e que sucesso teve. Que tipo de cidade se
pretendia em 1852? Que papel desempenhou nisso o governador Civil Félix Borges
de Medeiros? Quem foram os mentores da ideia na Ribeira Grande? António Júlio
de Melo? José Maria da Câmara Vasconcelos? Maurício da Arruda? E a Sociedade
Escolástico da Ribeira Grande, fundada em 1849, e o seu Presidente José Manuel
Gomes?[9] Quem se terá
oposto à ideia?
Por onde começar? Reler o texto ‘à lupa’ à cata de ‘pistas.’
Como se diz que a proposta fora enviada às ‘secções,’ tentei localizar o
arquivo das ‘secções’ do Parlamento.’ Com esse ou outro nome, nada encontrei.
Onde estará guardada essa documentação? Na Torre do Tombo? ‘Não se esqueça que nem toda a documentação
foi preservada. E também não se esqueça que pode estar numa série com outro
nome.’ Avisaram-me. Onde encontrar na Torre do Tombo o arquivo do Ministério
de Estado dos Negócios do Reino, do tempo de Rodrigo
da Fonseca? Como poderei saber quem foi Rodrigo da
Fonseca e Loureiro? Consultando os três volumes Dicionário Biográfico
Parlamentar – 1834-1910, com a coordenação de Maria Filomena Mónica
(2004-2006). No caso de São Miguel e de Santa Maria, as ‘Genealogias de São Miguel e de Santa Maria,’ de Rodrigo Rodrigues
(1998) são ferramentas a não faltar na ‘bancada’
de qualquer Historiador. Será que a proposta teve eco nas actas ou na
correspondência da Câmara da Ribeira Grande? Não. Silêncio absoluto. E nas
actas da Junta Geral do Distrito Autónomo? Ou nas do Conselho de Distrito? Mais
silêncio. E na correspondência (expedida e recebida) do Governador Civil Félix
Borges de Medeiros? Infelizmente, ainda silêncio. Terá o governador exercido a
sua influência de uma maneira informal? Conversas e promessas de boca? Existirá
correspondência de Loureiro? Haverá dos possíveis intervenientes mais
destacados da Ribeira Grande, como são os casos de António Júlio de Melo, de José
Maria da Câmara de Vasconcelos, de António Manuel da Silveira Estrela e de
Maurício Arruda. Ainda tentei encontrar possíveis descendentes dos que acima
referi: algum papel velho? Nada vezes nada.
Afinal,
o que há publicado sobre a proposta de 1852? Além da acta do Parlamento,
passado um mês, a proposta foi publicada integralmente no Correio Micaelense, jornal afecto ao Partido de Loureiro, onde este
habitualmente escrevia.[10] Sete
dias depois de O Correio Micaelense,
o Açoriano Oriental publicava apenas
a parte da proposta legislativa.[11]
Fá-lo ainda no fim de uma extensa coluna, onde enumera outras propostas de
Loureiro. Porém, nem o jornal A Ilha,
nem a Revista dos Açores, periódicos
que então se publicavam em Ponta Delgada, dão qualquer nota (favorável ou não) acerca
do assunto. A Ilha (jornal) acompanhava
de perto o evoluir da quase moribunda Câmara das Capelas. A Ribeira Grande
viria só a ter o seu próprio jornal (o primeiro) em Maio de 1856. Onze anos
depois, na sua A Persuasão, Supico revelará
o que muitos na ilha pensaram desta tentativa de elevação. E, até ao momento,
foi só o que encontrei.
Havendo
pesquisado fontes (primárias e secundárias), enquanto lia monografias e ‘passava a pente fino’ periódicos, e
entrevistava protagonistas da elevação de 1979-1981, reuni a informação (imensa)
em ficheiros crono-temáticos. Como elementos de comparação, acrescentei os
alvarás de Cidade de Angra (em
21 de Agosto de 1534), de Ponta Delgada (2 de Abril de 1546). E, contemporâneas
da proposta de 1852, a carta da Horta (3 de Julho de 1833), e as cartas Régias
que elevaram as Vilas de Tomar (13 de Fevereiro de 1844), Viana do Castelo (20 de Janeiro de 1848) e de Guimarães (22 de Junho, de 1853) a Cidade. E a
partir daqui? Para me orientar/organizar, construí uma primeira ideia
(provisória) do contexto geral e tentei encontrar paralelismos entre 1852 e 1979/1981. É possível (numa
primeira abordagem) identificar semelhanças e diferenças entre a proposta do
Dr. João Loureiro de 16 de Junho 1852 e a do Dr. Jaime Gama de 17 de Janeiro de
1979. No entanto, valerá o exercício apenas como ‘ensaio,’ já que, no decurso desta narrativa, inevitavelmente, ideia
(prévia) inicial irá tomando novos rumos e adquirindo novos contornos. No
próximo artigo, conto (re)publicar e comentar a proposta de Loureiro de 16 de
Junho de 1852.
[1] Rodrigo,
Rodrigues, Genealogias de São Miguel e Santa Maria, vol. 5.º,
Dislivro Histórica, 2008, pp. 3317-3318.
[2] Leite, Reis, A
Cidade da Horta e a União dos Açorianos, Horta- De Vila a Cidade,
Comemorações tricinquentenárias 1833-1983), edição da Câmara Municipal da
Horta, 1983, p. 130.
[3] Chagas, Frei
Diogo das, Espelho Cristalino em Campo de Várias Flores, 1989, pp.163-64.
[4] Vieira, Luciano de Resende Mota, A Ribeira Grande merece ser Cidade, Correio dos Açores, Ponta
Delgada, 11 de Abril de 1979, pp. 1, 3.
[5] Faziam parte da Comissão, os deputados: José [Rodrigues]
Ribeiro (PSD- Ilha de São Jorge), Avelino [Feliciano Martins] Rodrigues PS –
São Miguel), Carlos [Manuel Cabral] Teixeira (PSD – São Miguel), Álvaro
[Cordeiro] Dâmaso (PSD – São Miguel), Fernando [António] Monteiro [da Câmara
Pereira] (CDS – Santa Maria). Cruzei informação do decreto com José Andrade
(organização), A vontade dos Açorianos:
os órgãos de governo próprio da Região Autónoma dos Açores – 1976-2020,
2020.
[6] Ainda assim, segundo informação de Álvaro Dâmaso, é possível que Fernando Monteiro tenha pedido algum apoio ao irmão, o Padre Jacinto Monteiro, conhecido Historiador.
[7] Ao que me dizem, por falta de espaço, foram abatidas. Foram?
[8] Teodoro,
Hermano, Ribeira Grande, lugar, vila e
cidade, in Ribeira Municipal da Grande, Edição Especial dos 25 anos de
cidade, N.º 3, Junho de 2006, p. 8.
[9] Correio Micaelense, Ponta Delgada, N. º 292, 1 de Maio de 1852, fl. 2
[10] Correio
Micaelense, Ponta Delgada, N.º 303, 17 de Julho de 1852, fl. 2.
[11] Açoriano
Oriental, Ponta Delgada, N.º 912, 24 de Julho de 1852, fl. 4.
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