‘O ex-aeroporto de Santana: futuro comprometido da Ribeira Grande?’
II
Comecemos pelo princípio. Para
que nos entendamos há que saber do que estamos a falar quando dizemos
aeródromo, aeroporto, campo de aviação ou até aerovacas. O último termo é aparentemente
o mais fácil de se explicar: a relva das pistas precisava de ser mantida curta.
Como o fazer? Ter ruminantes a comer a erva. Quais? Vacas, sim, mas muitas mais
ovelhas.[1]
Então como chamar aquele espaço que também servia de mesa a ovelhas? Aerovacas
ou aerovelhas? Mas também lá apascentavam cabras e bodes, o que complica o
nome. Neste caso seria? Como se vê, aerovacas acaba por ser uma simplificação
redutora. Um autor acha que o nome de aerovacas foi-lhe atribuído ‘carinhosamente.’[2] Pode
ser que fosse, mas também pode ter-lhe sido atribuído ‘desdenhosamente.’ Em 1954, Vitorino Nemésio que aí aterrou no mês
de Agosto, refere-se-lhe também deste modo: ‘o patusco epíteto de aero-vacas.’[3] Aliás,
esse era um dos temas de gozo favoritos dos colegas da cidade. Uma autora, indo
a um dicionário, distingue-nos, passo a transcrever, ‘Aeródromo é o recinto onde se efectuam operações de aterragem e
descolagem de aviões, enquanto aeroporto é o conjunto formado por estruturas
especialmente preparadas com pistas de aterragem e descolagem de aviões,
helicópteros e outras aeronavaes, providas de instalações e serviços destinados
ao tráfego aéreo de passageiros e mercadorias e à recolha e reparação de
aparelhos de navegação aérea.’[4] Há
também quem lhe referisse apenas por Santana. Em que ficamos? Se fosse essa a
definição de então (que não é a actual), a actual parece ter sido regulamentada
em 2007, Santana era um aeroporto. Tinha tudo o que se diz que um aeroporto
deve ter.
Sucede que apesar de os nomes
mudarem, no uso corrente, quem se refere a eles, não descarta os nomes antigos,
até os usa indistintamente. Exemplos? Quando digo que vou a cavalo e vou de
carro. É um. Quando digo que embarquei de avião para a América e não vou de
barco. É outro. Assim se percebe que se usasse inicialmente campo de aviação. A
lógica é semelhante à do campo de futebol. A questão é complexa, como confessa
a mesma autora. Bom, como posso escolher o nome que quero dar a Santana,
escolho o de aeroporto. Dá-lhe outra dignidade. Penso. Mas posso usar os
outros. Nada me impede. Até porque estarei a referir-me a um espaço temporal
que vai do ano de 1941, ano em que abre, ao de 1969, ano da transferência.
Segue-se a explicação da razão da
escolha do Norte da ilha para construir um. Eis a explicação. A linha estratégica
de defesa da Ilha previa a ligação daquele aeródromo (termo de um autor) a
Norte com o porto a sul, na linha da ligação inicial entre Ribeira Grande e
Ponta Delgada.[5]
Pensou-se em outros
locais além de Santana? Sim. Além de Santana, houve a hipótese de ser nas
Calhetas. É Humberto Delgado que o confessa em Abril de 1958 em entrevista que
concede ao Correio dos Açores: ‘quando
secretamente preparava o arquipélago para receber os aliados,’ e mencionou as
zonas de Santana e das Calhetas como as que ofereciam mais vantagens para a
construção de um aeroporto.’[6]
Aliás, antes de Delgado, um famoso aviador francês, de nome Castex, sugeria
Santana. Em Novembro de 1935, procurando locais para
construir aeródromos, ‘segundo as memórias
de [Lois] Castex, logo ao segundo dia de missão, este já teria vaticinado que a
Ilha de São Miguel não reunia condições para a instalação de um aeroporto
terrestre para aviões transatlânticos; apenas um ‘petit terrain’ junto à freguesia de Rabo de Peixe para ligações
inter-insulares (Santana).’[7]
Há uma outra versão
que aponta para um outro local. O Padre Artur Pacheco Agostinho, nas suas Notas
Para o Tombo da Ribeirinha, um fabuloso repertório de quatro volumes que urge
mesmo dar a conhecer ao público, diz-nos que o ‘Aeroporto de
Santa Ana’ trata-o por aeroporto e grafa o nome separadamente, ‘Esteve
para construir-se na Ribeirinha nos terrenos abrangidos entre o Rosário da
Matriz e a Ribeirinha.’
Para que tal fosse possível, continua ‘Desapareceria
o cemitério de Nossa Senhora da Estrela e algumas casas do princípio da
Ribeirinha com a Ermida de Santo António e Forno da Cal.’ Para sermos
exactos, ficava na freguesia Matriz, antes e depois da criação da freguesia da
Ribeirinha. E a prova, acrescenta o padre Artur: ‘Chegou a existir neste freguesia alguns bidões de gasolina e tractores
destinados ao futuro aeroporto.’ Agostinho já estava no então curato
autónomo de São salvador do Mundo. A que se deve o facto de o projecto não ter
sido concretizada? Reposta rápida: ‘influências
dos interessados junto das autoridades fizeram derivar para o actual sítio o
aeroporto de Santa Ana.’ Não diz mais nada, porém, acham que andarei longe
da verdade se lançar a hipótese de ter sido em grande parte por causa do
cemitério? Terá sido confusão?
O aeroporto não ficou naquela
zona e foi para Santana, mas gente da Ribeirinha andou nas obras de Santana: ‘Muitas dezenas de trabalhadores agrícolas da
Ribeirinha e alguns operários de construção civil, carpinteiros e pedreiros,
ocuparam-se na construção do aeroporto durante vários meses.’
E gente de fora que veio
construir o aeroporto de Santana fixou residência na Ribeirinha: ‘Em 1941, no início da construção do
aeroporto fixou residência nesta freguesia na casa de D. Elvira da Glória
Correia Arruda na rua Aristides Soares Gamboa o tenente de engenharia Renaldo
(?) Carrilho casado com D. Maria Beatriz Carrilho naturais, ele, da freguesia
de Souto de Vale de Espinho, Diocese da Guarda. Os melhorais dotes religiosos e
morais ornavam este casal modelo do sentimento religioso. Simultaneamente e ao
mesmo tempo fixou também residência na rua do Porto o sargento de engenharia
Augusto do Carmo Duro casado só civilmente com Guilhermina de Jesus Duro ele de
Beja e ela de Sarzeda, Quinta do Vale do Covo, Bragança.’
O Padre Agostinho inquietou-se na
sua missão evangélica, pois ‘Ele [Augusto]
nunca comungava, tinham um filho de nome
Narciso do Carmo com oito anos por baptizar.’ Era uma má influência no meio
do rebanho católico praticante. Porém, resolveu o assunto, primeiramente ‘Com a colaboração e a influência do tenente
Renaldo Carrilho e esposa foi possível realizar o baptismo do menino na noite
de vinte e quatro de Dezembro de 1941, sendo eles padrinhos do neófito (…).’
Depois, ‘A 6 de Maio de 1943, casavam catolicamente o sargento Augusto do Carmo
Duro com Guilhermina de Jesus Duro servindo de padrinhos os tenentes de
engenharia Renaldo Carrilho e esposa D. Maria Beatriz Carrilho e João Matos da
Silva, solteiro, natural da freguesia do Louriçal do Campo, Concelho de Castelo
Branco.’ Termina a entrada do Tombo com:
‘Padre Artur Pacheco Agostinho.’[8]
Voltando ao local
eleito, a Santana, sucede que o Estado Português, em 1941, requisitou terrenos
em Santana, para servir de aeródromo militar, a Base Aérea N.º 4, como veio a
suceder.[9] Ora, Santana ‘começou a funcionar em 1941, juntamente com
o aeródromo das Lajes, na Ilha Terceira, após receber as primeiras aeronaves
que entraram na Ilha por meio marítimo, desmontadas. A partir de 1943, seria
cedido como ponto de apoio de emergência aos aliados, nomeadamente a ingleses e
americanos, tutelados pelo comando britânico.’[10]
O espaço onde se
implantou o aeroporto de Santana situava-se ‘(…) numa zona
partilhada de freguesias: Rabo de Peixe e Ribeira Seca, numa série de terrenos
que seriam alugados no início do conflito a mais de quarenta proprietários, a
um preço imposto pelo Estado, dito na altura, como preço justo, terminando o
conflito com o interessante número de 90 proprietários.’[11]
Em abono da verdade, dois terços das pistas ficavam na freguesia da Ribeira
Seca e o restante terço e as infraestruturas em Rabo de Peixe. A zona é
conhecida por Santana, parte, e Morro (melhor morros de Baixo e do meio),
outra. Voltando aos terrenos onde estava implantado o aeroporto de Santana e os
seus proprietários: o Estado (rendeiros) nem os adquiriu nem actualizou rendas.
Os tais 90 proprietários ‘que, na sua
maioria, eram gente pobre ou simplesmente remediada,’ face à subida do
custo de vida, que se seguiu ao fim da guerra, ‘sentiam-se enganados.’ Pois, ‘as
rendas dos ditos terrenos agrícolas mantinham-se congeladas. O escândalo era
tanto maior porquanto o Estado era o rendeiro.’[12]
Vejam como um autor se lhe refere
‘Este aeródromo, pequeno aeroporto ou
campo de aviação,’[13]
vejamos como era de pistas: ‘era
constituído por três pistas de relva: a primeira com 1500 metros; uma segunda
com 1200 e a terceira com 1100 de largura cada.’[14] No
que se refere a estruturas, ‘na atura,
também se construíram algumas (…) de apoio à aviação, embora datem d pós-guerra
os principais edifícios agregados ao aeródromo, tais como a aerogare, a torre
de controlo, os armazéns, o hangar, as oficinas e o armazém para depósito da
Shell.’[15]
Com Santana, avó de
Jesus de Nazaré, renasceu uma certa esperança na terra: se não havia portos,
pensaram, havia um aeroporto. A Casa do Soldado da Base Aérea N.º 4 editou o
jornal mensal Passarola (1943),[16] onde
se dá conta de inúmeras actividades culturais e desportivas em Santana. Alguns
militares integraram as equipas de futebol locais, o Águia e o Ideal. Na base
houve mesmo um Laboratório de Fotografia. Finda a guerra, em 19 de Dezembro de
1947 passou a aeródromo civil.[17]
Que sucedeu à Base
Aérea N.º 4? Foi extinta e o nome passou para as Lajes ou passou o nome e o
resto para as Lajes?
Mário Moura
Lugar das Areias – Rabo de Peixe
[1] Dias, Fátima Sequeira, O aeroporto de Ponta Delgada, João Paulo II: 40 anos de História, ANA, Aeroportos de Portugal, 2010, pp.33-34
[2]
Sérgio
Resendes (alunas do Colégio dos Castanheiro: Bárbara Nunes, Filipa Marques,
Maria Cordeiro), Um património único em
S. Miguel: o aeródromo de Santana (1941-2011), Correio dos Açores, Ponta
Delgada, 8 de Janeiro de 2012, p. 19: .
[3] Nemésio,
Vitorino, Corsário das Ilhas,
Livraria Bertrand, Lisboa, 1956, p. 230.
[4] Dias, Fátima Sequeira, O aeroporto de Ponta Delgada, João Paulo II: 40 anos de História, ANA, Aeroportos de Portugal, 2010, p.17.
[5] Rezendes,
Sérgio, A II Guerra Mundial nos Açores,
Caleidoscópio, Lisboa, 2018, p. 62; Rezendes, Sérgio Guerra Mundial, II,
http://www.culturacores.azores.gov.pt/.
[6] Entrevista a Humberto Delgado,
Correio dos Açores, Ponta Delgada, 4 de Abril de 1958
[7] Monteiro, António, As
Ilhas nas relações internacionais. Santa Maria (Açores) no século XX,
Lisbon International Press, Lisboa, 2021, p. 135
[8] Agostinho, Padre Artur Pacheco Agostinho, Aeroporto de Santa Ana, Livro do Tombo da Ribeirinha, Volume 1, 26 de Novembro de 1987, pp. 42-42 v.
[9] Dias,
Fátima Sequeira, O aeroporto de Ponta
Delgada, João Paulo II: 40 anos de História, ANA, Aeroportos de Portugal,
2010, p.23.
[10] Sérgio Resendes (alunas do Colégio dos Castanheiro: Bárbara Nunes, Filipa Marques, Maria Cordeiro), Um património único em S. Miguel: o aeródromo de Santana (1941-2011), Correio dos Açores, Ponta Delgada, 8 de Janeiro de 2012, p. 19.
[11]
Sérgio
Resendes (alunas do Colégio dos Castanheiro: Bárbara Nunes, Filipa Marques,
Maria Cordeiro), Um património único em
S. Miguel: o aeródromo de Santana (1941-2011), Correio dos Açores, Ponta
Delgada, 8 de Janeiro de 2012, pp. 18-19.
[12] Dias,
Fátima Sequeira, O aeroporto de Ponta
Delgada, João Paulo II: 40 anos de História, ANA, Aeroportos de Portugal,
2010, p.31
[13] Sérgio Resendes (alunas do Colégio dos Castanheiro: Bárbara Nunes, Filipa Marques, Maria Cordeiro), Um património único em S. Miguel: o aeródromo de Santana (1941-2011), Correio dos Açores, Ponta Delgada, 8 de Janeiro de 2012, p.19.
[14] Dias,
Fátima Sequeira, O aeroporto de Ponta
Delgada, João Paulo II: 40 anos de História, ANA, Aeroportos de Portugal,
2010, p.27.
[15] Dias, Fátima Sequeira, O aeroporto de Ponta Delgada, João Paulo II: 40 anos de História, ANA, Aeroportos de Portugal, 2010, p. 27.
[16] Cf. Catálogo
Jornais Açorianos, BPARPD, Ponta Delgada, 1995: Passarola, Santana, 1943-1943. Jornal do
Expedicionário da aviação/ Direcção da Casa do Soldado da Base Aérea N.º 4, São
Miguel), Tipografia: Correio dos Açores.
[17] Dias,
Fátima Sequeira, O aeroporto de Ponta
Delgada, João Paulo II: 40 anos de História, ANA, Aeroportos de Portugal,
2010, p.31; Rezendes, Sérgio, Base Aérea das Lages, https://acores.fandom.com/wiki/Base_A%C3%A9rea_das_Lajes
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