Ribeira Grande: Nascimento de uma
Vila
(Biografia)
E
os limites a Sul? – V
A cadeia montanhosa da serra de
Água de Pau, no meio da qual está a Lagoa do Fogo, marca o limite físico entre
o centro Norte/Sul da Ilha. A questão central é saber se, em 1507, era aí que
terminava a Sul o novo Concelho da Ribeira Grande. As fontes de que dispomos
não são claras. Admito que a nossa identificação dos limites a sul não passe de
uma conjectura. Conhecem-se
apenas ligeiros indícios. No entanto, se conhecêssemos a descrição dos limites
com nomes de ruas, canadas, acidentes topográficos, poderíamos ir além das
meras conjecturas. Vamos tentar? No espaço concelhio da légua de 1507, existem
hoje seis freguesias. De poente para nascente: Rabo de Peixe, Ribeira Seca,
Santa Bárbara, Conceição, Matriz e Ribeirinha. Destas, encontrei três delimitações:
São Pedro (1576), Santa Bárbara (1971) e da Ribeirinha (1948).[1]
E uma quarta incompleta: Conceição (1699-1704). Existem delimitações modernas? ‘Sim, garantiu-me um colega desta área, é
coisa de antes do 25 de Abril.’ Bati em muitas portas, fiz telefonemas,
escrevi à Direcção Geral e Regional do Cadastro e a autarquias. Queria obter a
descrição dos limites de cada uma daquelas freguesias, em que figurassem ruas,
canadas, ribeiras, estradas. Com paciência e auxílio dos colegas André Franco,
Catarina Vieira e Manuel António Ferreira, usando o SIG, recuando no tempo,
fomos tendo uma ideia do que poderiam ter sido os limites. Sempre que possível,
fui aos locais confirmar o mapa, ‘ler’ o terreno.
O
ponto de partida foi a planta de Cadastro de 1974. Tendo-o como base, partindo
dos limites actuais das freguesias, pedi aos colegas que me implantassem no
ortofotomapa a légua de 6 200. Que conclusões podemos retirar, se compararmos o
traçado da circunferência da légua em redor do pelourinho com os limites
actuais? Começando pelo lado Poente do Concelho da Ribeira Grande: parte considerável
de Rabo de Peixe de 2022 ficava de fora em 1507 (numa estimativa por alto, mais
de metade). Na parte do Concelho da Ribeira Grande que agora (2022) encosta à
Lagoa, as freguesias de Santa Bárbara e da Ribeira Seca (juntas até 1971) parecem
estar em 1507 ‘quase’ tal qual como em 2022. Quanto às freguesias da Conceição
e da Matriz, em 1507 (juntas a té 1699-1704), parecem não avançar para o espaço
acima da Caldeira Velha, ou seja para a Lagoa do Fogo e matos/serra.
Finalmente, a Ribeirinha (em 1507), (que se separou da Matriz em 1948) não dispunha
da área da Grota do Sombreiro para Sul (então pertencente ao Porto Formoso).
Isso
é o que nos parece indicar a carta actual. E o que nos diz Frutuoso? Frutuoso,
escrevendo provavelmente a partir da década de oitenta do século XVI, identifica-nos
o Telhal,
situando-o a sul, na base Norte do maciço da Lagoa do Fogo, separando os matos/serra
e as pastagens das terras de cultivo. O Telhal era habitado antes mesmo da
elevação a Vila. Simão
Lopes d’Almeida, um dos primeiros homens da já Vila da Ribeira Grande, Juiz dos
Órfãos da Ribeira Grande a partir de 1515, morava no Telhal. Por ocasião da peste que grassou na
Ilha entre 1523-1531, durante a ocorrência de uma amotinação de mouros, é
mencionada a Mediana. Outra fonte, datada de
1576, ligeiramente anterior à escrita das Saudades da Terra, é bastante clara
acerca da localização do Telhal. Trata-se dos limites da paróquia do Apóstolo
São Pedro: ‘(…) começando da casa de Mateus Fernandes que
mora no dito lugar da Ribeira Seca junto ao mar cortando direito à casa de Ana
Lopes, viúva que vive no Telhal ao pé da serra correndo daí à Mediana até à
casa de João Rodrigues e daí outra vez ao mar até às casas de Manuel Teixeira onde
se acaba o dito limite.’[2]
A
Mediana ligava a Vila da Ribeira Grande (e ainda liga) ao Cabouco, à Lagoa, e a
Ponta Delgada. [3]
Neste
ponto, a carta actual, a circunferência da légua, Frutuoso e o documento que
cria a paróquia de São Pedro, parecem coincidir.
Quanto aos matos/serra? Interpretando uma queixa particular da Câmara de Vila
Franca do Campo, dirigida ao Rei/donatário, datável à volta do ano de 1515,
fica-se com a impressão de que tudo o que ficava além da légua, no limite das
terras de cultivo com os matos, onde se criavam gados, fosse terra comum, de
todos e de ninguém, sob a alçada da donataria/coroa: ‘(…) senhor nesta ilha se queixam muitas pessoas
que criações tem por ela que lhe furtam dos matos na serra onde os trazem vacas
bois porcos cabras / e por ser feito na serra lugares despovoados (…).’[4] Interpretei
bem? Fico com dúvidas.
Seria assim? Há um documento de
constituição de um morgadio que nos pode lançar alguma luz. Em 1508, ao serem
descritas as propriedades de António Rodrigues da Câmara, que se situavam na
Ribeirinha, ficamos a conhecer os seus limites a Sul (do lado Nascente do
Concelho): ‘(…) e da parte do Sur (sul)
com as cumeeiras da Serra do Bulcão [Lagoa do Fogo em 1508 antes da erupção
de 1563].’ [5] Significa isso que os limites
Sul da propriedade de António Rodrigues da Câmara em 1508 coincidiam com os
limites Sul do Concelho da Ribeira Grande em 1507? Não necessariamente, não há
provas de que assim fosse.
Do lado
Poente do Concelho, um outro documento, sem data, mas seguramente desta altura,
identifica-nos uma propriedade que começava junto ao mar e terminava junto à Lagoa
do Fogo. Faz parte do ‘vínculo que administrou o Conde de Redondo,
herdeiro dos Condes de Soure, em S. Miguel.’ A origem deste morgadio recua ao período que nos
interessa. Resultou do dote dado por João do Outeiro, segundo marido de
Catarina Gomes Raposo (viúva de Rui Vaz Gago, do Trato) a D. Gileanes da Costa
para casar com a filha deles chamada D. Maria do Outeiro ou Raposo. Segundo
Frutuoso, o dote constou de terrenos na Ribeira Grande, Vila Franca e em outras
partes da ilha. Destaco destas propriedades porque interessa a esta narrativa,
são anotações de Ernesto do Canto, ‘um
grande corpo na Ribeira Seca, da Ribeira Grande de terras e matos até à lagoa
do Fogo, a meu irmão José do Canto. Uma outra parte deste corpo até ao mar a
meu primo José Jácome Correia, uma outra porção menor ao Dr. Eusébio Poças
Falcão em Rabo de Peixe, etc. etc.’[6] A serra/matos, para cima do
Telhal, fazia ou não parte da área inicial do Concelho da Ribeira Grande? Se
considerarmos a légua inicial, não. Se considerarmos que a serra era pertença informal
de todos, também não. Seria mais uma terra de fronteira? Uma outra suspeita,
reforça esta tese. Em 1515, os limites do novo concelho de Água
de Pau foram acordados entre Vila Franca e esta nova vila:
‘(…) E por esta mandamos ao Corregedor que por ora anda na dita Ilha que vá
fazer a demarcação antre as ditas vilas e lhe dê o dito termo da dita meia
légua e mandem tanchar os marcos pera o diante se saber por onde parte o termo
da dita vila.’[7]
Não refere a Ribeira Grande, porém, o limite a Norte de Água do Pau era o
limite a Sul da Ribeira Grande: a lagoa do Fogo. Um limite óbvio? Sim, mas que,
á altura, ficaria fora dos limites de um e de outro Concelho. No entanto, pelo facto de as propriedades dos
descendentes de António Rodrigues da Câmara e de João do Outeiro (dos que
conhecemos), tocarem na Lagoa do Fogo, e de aquela área ser mais acessível do
lado da Ribeira Grande, mais tarde (em data que se desconhece) foi integrada no
Concelho da Ribeira Grande. Teria sido assim?
E os limites da Ribeira Grande
com a Lagoa? As áreas limítrofes entre a Ribeira Grande e a Lagoa, terão vindo a
pertencer à Ribeira Grande não em 1507, mas em data entre 1507 e 1522.
Possivelmente, em 1522 quando D. João III criou o Concelho da Lagoa? É
provável. Vamos ver o que nos diz o alvará de 1522 que elevou o Lugar da Lagoa
a Vila. Este novo concelho, de acordo aquele documento, encosta ‘da banda do Norte [Sul para quem esteja
no lado da Ribeira Grande] o seu limite
assim como parte com o termo da Ribeira Grande (…).’[8] Onde
ao certo? Os homens de 1522, sabê-lo-iam, tinham forçosamente que o saber,
porém, infelizmente, não nos chegou nada escrito sobre isso. Além do alvará,
conhece-se outro documento. Ainda neste ano de 1522, num codicilo a um testamento,
ficamos a conhecer outro ponto de contacto entre a Lagoa e a Ribeira Grande:
‘(…) casas térreas e torre em que ela
testadora vive, que estão em Santa Maria dos Remédios, no dito limite da Lagoa
(…).’[9]
Mas onde terminam os Remédios e começa a Ribeira Grande?
E os limites entre Ponta Delgada
e a Ribeira Grande no canto Sul/Poente do Concelho? Frutuoso, para finais do
século XVI, num trecho já por nós citado, quanto às ligações da Ribeira Grande
com Ponta Delgada, no canto Poente-Sul do Concelho da Ribeira Grande, diz-nos: ‘(…) Além,
o pico de João Ramos, tomando o nome do seu dono assim chamado, que ali morou
antigamente no meio de uma estrada que vai de Ponta Delgada para a Vila da
Ribeira Grande; ao pé do qual estão dois marcos e balizas, que dividem os
termos da dita vila e da cidade.’[10]
Em
1507, o limite não chegava até aí. Terá sido definido antes da década de
oitenta (quando Frutuoso está a escrever as Saudades da Terra). Quando ao certo?
Uma hipótese: em 1522, com a criação do Concelho da Lagoa, tornou-se necessário
estabelecer os limites entre aqueles três Concelhos. No
meio de lacunas e de dúvidas, o que há de mais certo? As fronteiras eram
imprecisas. Foram sendo negociadas.
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
Mário
Moura
[1] Diário do
Governo, I Série, N.º 179, Decreto-Lei n.º 36: 997, que cria no Concelho da
Ribeira Grande, Distrito de Ponta Delgada, a freguesia da Ribeirinha, com sede
na povoação do mesmo nome, a3 de Agosto de 1948; Diário
do Governo n.º 142/1971, Série I de 1971-06-18, Elevação de Santa Bárbara a
Freguesia Ministério do Interior, Direcção Geral da Administração
Política e Civil, Decreto-Lei n.º 264/71, de 18 de Junho de 1971.
[2] Arquivo da igreja
de S. Pedro, Ribeira Seca, Cópia do
Primeiro e Segundo Livro do Tombo da Freguesia de S. Pedro da Ribeira Seca da
Vila da Ribeira Grande, Sobre o Alvará Régio da criação da Freguesia,
datado de Abril de 1576, o bispado através de carta cria a paróquia de S.
Pedro, datado de 12 de Dezembro de 1576, fls. 2-3:
[3] Frutuoso, Gaspar, Saudades Terra, Livro IV, ICPD, Ponta Delgada, 1998, pp. 300.
[4] Cf. ANTT, Gaveta
20, Maço 2, Documento 46, Apontamentos e queixas enviadas ao Rei D. Manuel I em
nome do Concelho de Vila Franca do Campo, 1515 (?), Citado por Lalanda, Margarida
de Sá Nogueira, A Sociedade Micaelense do
século XVII: Estruturas e Comportamentos, Dissertação de Doutoramento,
Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1995, pp.84-85,
fl. 2 v. Acho que entre 1515 e 1518.
[5] BPARPDL,
Provedoria dos Resíduos de Ponta Delgada. Auto de prestação de contas de
vínculos e legados pios, Instituição do Morgado de Antão Rodrigues da Câmara,
Santarém, 17 de Abril de 1508, N.º 0095.
[6] Câmara, Morgado
João da Arruda Botelho da, Instituições
Vinculares e Notas Genealógicas (1790), Extractos de testamentos dos que
instituíram vínculos em S. Miguel e seus instituidores e administradores
copiados dos cadernos de João de Arruda Botelho com aditamentos por Ernesto do
Canto, (1875), Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1995, p. 210. Em 2018, na
minha tese de Doutoramento sobre a Introdução da Cultura do Chá na Ilha de S.
Miguel (subsídios históricos), confirmei-o.
[7] Carta
de Vila de Água do Pau, 28 de Junho de 1515, Costa, José Pereira da, Prefácio, (Direcção, leitura, prefácio e
notas), Livro das Ilhas, Região Autónoma da Madeira, Região Autónoma dos
Açores, 1987, fl. 320
[8] (Extracto do Livro 1.º do Tombo da
Câmara Municipal da Vila da Lagoa, folhas 4 e seguintes).’ Provisão da
mercê de Vila da lagoa, 11 de Abril de 1522, Tavares, Padre João José, A Vila da Lagoa e o seu Concelho. Subsídios
para a sua História, 1979pp. 6-7.
[9] Codicilo do Testamento de Catarina Afonso,
viúva de Pedro Velho, 19 de Março de 1522, Santa Maria dos Remédios, in Dias,
Urbano Mendonça, Instituições Vinculares:
Os morgados das Ilhas, Tipografia A Crença, Vila Franca do Campo, 1941, pp.
379-380
[10] Frutuoso, Gaspar, Saudades Terra, Livro IV,
ICPD, Ponta Delgada, 1998, p. 208.
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