Nem
deu para aquecer o lugar! – VII
Loureiro não andou mais do que
três meses por São Bento.[1] O
Domingo de Páscoa foi a 11 de Abril. A Câmara dos Deputados fechou a 31 de
Março, reabrindo apenas a 20 de Maio. Mesmo assim, com dezoito propostas
(iniciativas incluídas) e participação na ‘7.ª secção,’ não se pode dizer que Loureiro
tenha ido passar ‘férias’ a São
Bento. Se a grande maioria do que lá fez, não lhe terá exigido grandes esforços,
os projectos de lei da abolição de ‘todos os
morgados e capelas nas ilhas de São Miguel e Santa Maria,[2]
o da ‘qualificação
e habilitação para o emprego de tabelião de notas,’ e o ‘para que a vila da
Ribeira Grande da ilha de S. Miguel seja elevada a cidade,’[3] ter-lhe-ão exigido trabalho de pesquisa
e alguma cooperação. Apesar disso, era ainda o único deputado do Distrito. Só
em Julho, Pedro Jácome Correia tomaria posse. Chegou tarde e pouca diferença
fez. Caloiro naquela Câmara, antes de rumar a Lisboa, para melhor se orientar, terá
(muito) possivelmente pedido contactos que lhe pudessem abrir algumas portas. A
aparente rapidez com que se familiarizou com o funcionamento da ‘casa,’ leva-me a suspeitar de que tenha
vindo da Ilha recomendado a alguém ‘de
influência.’ Isso para além da sua ‘craca’ institucional, afinal era
advogado há mais de duas décadas, terá facilitado a adaptação. Resultado de contactos
maçónicos entre a loja São Miguel e uma loja irmã de Lisboa? Contactos ainda do
tempo em que andara ‘à cacetada’ pela
capital? Apesar da ‘presumível’ continuada suspeita de antigas ligações
absolutistas? Não sei. Mas é possível.
Para (tentar) compreender (de forma
razoável) o que Loureiro apresentou na Câmara dos Deputados, vou ler e reler as
actas da Câmara dos Deputados e as do Governo de 15 de Março de 1852 a finais
de Julho de 1852. Enquanto o faço, vou ter presente o (mais do que) provável ‘diálogo’ (directo ou indirecto) que manteve
com as redes (institucionais ou informais) de poder no Distrito: o Governador
Civil, a Junta Geral, a Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, as
Câmaras de Ponta Delgada e da Ribeira Grande, o Bispo, os jornais, a loja
maçónica, as assembleias e clubes. O governador Félix Borges de Medeiros (governador de 1851 a 1868) era justamente
‘o epicentro’ do poder administrativo e político no Distrito. E ponto de
equilíbrio entre facções. Era um produto da Universidade de Coimbra, onde se
formara em Direito em ‘1841.’
Havendo aderido em 1851 ao Partido Regenerador, foi nesse mesmo ano
nomeado governador
civil do Distrito
de Ponta Delgada. Iria permanecer dezassete
anos no cargo. Natural e criado em Ponta Delgada, mas leal aos governos que o
nomearam e foram mantendo no lugar, terá sido um político de sorte e prudente. ‘Navegaria entre os pingos da chuva,’
como é comum dizer-se? Parece. De outro modo não ‘aguentaria’ tanto tempo no
poder. Não acham? A loja
Maçónica, outro centro. Loureiro pertencia (ou pertencera), tal como José do Canto,
José Jácome Correia, Nicolau António Borges de Bettencourt, José Pereira
Botelho, André António Avelino, João José do Amaral, José Maria da Câmara de
Vasconcelos, a uma poderosa loja maçónica de Ponta Delgada. E o Bispo D. Frei Estêvão de Jesus
Maria (Mafra, 26 de Dezembro de 1786 - Angra
do Heroísmo, 28 de Julho de 1871)? Havendo outrora ‘aderido’ ao miguelismo, talvez para evitar
confrontos em Angra ‘conotada com o
liberalismo,’ ‘exilou-se’ 19 anos em São Miguel (Ponta Delgada). Ali ficou até 1859. E o Bispo tinha algum poder? Tinha. Não esquecer que a
lei dos Morgadios e capelas mexia com direitos da Igreja. Talvez por isso e não
só, o (hábil e prudente) Governador fazia-se amiúde acompanhar pelo Bispo. As
Sociedades e Clubes. Já vimos que eram centros de convívio que reuniam elites.
Como tal, outros centros de poder.
O
que poderá ter ido desses centros de poder? E o que nos chegou disso? É
possível que parte (se calhar a maior parte) desses ‘recados a Garcia’ tenha ocorrido de uma forma ‘discreta.’ Resultaria,
pois, de troca de correspondência e de conversas informais. Tidas ainda na Ilha
ou já quando Loureiro se encontrava em Lisboa. Onde estão essas cartas? Só
encontrei uma no arquivo de José do Canto. Mas para um período posterior. E as
conversas? Não deixaram rasto. Restam-me trabalhar os jornais e as actas. E
pouco mais. Infelizmente. O que disseram os jornais de Ponta Delgada (únicos na
Ilha)? Deram-lhe apoio? Criticaram-no? Mostraram-se indiferentes? A meu ver, terá
acontecido um pouco de tudo isso. É muito natural que os serviços que Loureiro
podia prestar, como membro (e dos primeiros) da Sociedade Promotora da
Agricultura Micaelense (SPAM), àquele Sociedade, lhe fossem ‘solicitados.’ José
Jácome Correia (presidira ao Colégio Eleitoral) era o Presidente da SPAM, e José
do Canto, que desistira de ser Deputado, era o Tesoureiro. Eram todos os três
mações irmãos da mesma Loja. Pelo que, na sequência de uma representação da
SPAM aos Deputados (assim mesmo, não o nomeiam), Loureiro fez força junto do
governo para obter um espaço para sede e jardim da SPAM. André António Avelino
(outro homem da SPAM) assina também aquela ‘representação.’ Avelino e Loureiro
(mais uma coincidência) eram dois dos principais redactores do Correio Micaelense.[4] E
ainda mações da mesma loja. Para o Correio
Micaelense Loureiro enviava relatório detalhado da sua actividade na Câmara
dos Deputados. E o jornal, mal o recebia, dava-lhe honra de destaque. O semanário
Correio Micaelense (segundo Ernesto
do Canto) era afecto ao Partido Regenerador (ou a gente daquela área e à do
Partido Progressista). O responsável (à altura) era Manuel Cardoso de
Albergaria e Vale. Quanto ao Jornal semanário A Ilha, conservador, cujo 1.º número sai em 25 de Março de 1852? No
limite: ‘não lhe fazia festas nem se
atrevia a dar-lhe porrada.’ Quanto muito lhe não dava destaque. Ou
ignorava-o. O editor era Manuel José de Morais.[5] Fora
colaborador e editor activo da Revista
Micaelense, cuja publicação havia pouco antes terminado. O Açoriano Oriental, então desafecto aos
partidos, tanto quanto consigo perceber, noticiava e comentava de forma ‘mais’ independente. Era próximo de José
do Canto e da SPAM. Aliás, o Agricultor
Micaelense (órgão da SPAM) era então publicado na tipografia do Açoriano Oriental. Não
era hostil a Loureiro, acompanhava a sua actuação. De forma vigilante e
independente. A Tipografia
era de F. J. P. de Macedo. Sugeria-lhe
caminhos. E tratava de forma atenta (seria porque José Maria da Câmara
Vasconcelos andava por lá ainda?) a Ribeira Grande. Além destes, em 1852, há a referir
ainda A Revista dos Açores (1851-53)
e A Revista Micaelense (1851-52). Apesar
de privilegiarem temas literários, comerciais ou noticiosos, excepcionalmente
tratavam assuntos de outra natureza, como foi o caso da série de artigos de
José de Torres em que defendia a construção de uma doca em Ponta Delgada. Ou do
mesmo autor, sobre a emigração. E ainda havia O Baratíssimo (1849-1854), que se dedicava exclusivamente aos
anúncios comerciais. Além dos jornais, seria (do mesmo modo) importante apurar a
opinião dos Procuradores à Junta Geral (provenientes dos Concelhos da Ilha).
Infelizmente, não sabemos. Há um hiato nas actas de finais de 1851 a Março de
1854. O que pode significar isso? Tentativa do Governador de arrefecer ânimos?
Não sei. Mas é tentador pensar que tenha sido. A última acta conhecida é da
reunião de 18 de Dezembro de 1851. A primeira acta conhecida depois de 1851 é a
de 1 de Março de 1854.[6]
O que se esperava de Loureiro? Para
começar, ‘as eleições nesta Ilha não
foram guerreadas pelos diversos partidos políticos.’ Ainda assim, o jornal
lançava a suspeita, era possível que nem todos estivessem de acordo: ‘se houve divergências foi entre os homens
do mesmo partido, que foi à urna.’ [7]
Quem o escreveu foi Mariano José Cabral, primeiro bibliotecário da Biblioteca
Pública de Ponta Delgada e redactor da Revista
Micaelense, três dias apos a eleição.[8]
No artigo anterior argumentei (de forma ‘razoavelmente’
convincente?) que tanto ou mais importante do que apurar a pertença de Loureiro
a uma força política, seria conhecer a sua posição face ao Distrito.
Recordam-se? Como ‘nunca’ ninguém vê tudo, muito menos de uma vez só, vejo agora
que talvez deva ser tanto ou mais importante identificar quem lhe terá (eventualmente)
‘encomendado’ alguns dos assuntos que
tratou. Comecemos pelo princípio? Inicialmente, Loureiro fora eleito pela
secção da freguesia de São Pedro, na cidade de Ponta Delgada. Onde terá
assumido compromissos. Porém, face à desistência de Nicolau António e de José
do Canto, ter-se-á visto na obrigação de ter de acrescentar aos seus os
compromissos (alguns ou todos) daqueles. Quais poderiam ter sido as promessas
daqueles? Não o sabemos, mas, no caso de José do Canto, pode ter algo a ver com
o que escreveu no folheto que distribuiu antes da eleição do Colégio Eleitoral
(e que o Açoriano Oriental decidiu transcrever
em vários números consecutivos) denominado ‘Aos Micaelenses que pretendiam
eleger-me como Deputado.’
José do Canto aí propôs, e resumo: um abrigo marítimo, vulgo doca, para
Ponta Delgada, um banco hipotecário, a instrução primária e uma nova lei
eleitoral.[9]
José do Canto ocupara-se já da questão de um banco (rural), em Fevereiro de
1848, no Agricultor Micaelense e no
mesmo periódico, em Fevereiro de 1852, tratara (não sei se em parceria com
outros) de um banco (hipotecário).[10]
Foi tema (também) transcrito pelo Açoriano
Oriental. A 12 de Fevereiro, três dias antes da reunião do Colégio
Eleitoral, Mariano José Cabral dava conta de ter recebido um artigo não
assinado ‘sobre as obras de Santa Iria.’[11]
No entanto, só sairia a 11 de Março, já Loureiro partira há mais de duas
semanas para Lisboa. Mas certamente iria a tempo. Iria receber lá um exemplar. Portanto,
destinar-se-ia a influenciar quem fosse eleito. Nele argumenta-se forte a favor
daquele porto.[12] Entretanto,
a 6 de Março, o Açoriano Oriental
iniciara a publicação (na íntegra) do conteúdo do folheto de José do Canto.[13]
Mais. Uma série de artigos da autoria de José de Torres (n. 17-06-1827 – PDL –
f. 1878 – Lisboa (?)) sobre uma doca, que haviam começado a sair em 24 de Março
na Revista dos Açores, em Maio, já
iam no número IX.[14]
Quanto à instrução primária e a uma nova lei eleitoral, Loureiro iria ainda a
tempo de apresentar uma proposta na Câmara dos Deputados. Nicolau António, o
outro desistente, ter-lhe-á incumbido a defesa da manutenção do Tribunal da
Relação? Muito provavelmente. Não esquecer as ligações e os interesses comuns.
E
no caso dos jornais? O que pretendiam que Loureiro fizesse em Lisboa? Antes de
tentar uma resposta ‘aceitável,’ relembro que os jornais chegavam ao destino com
bastante atraso e que, graças às altas taxas de analfabetismo, eram lidos e
comentados por poucos, ainda assim, exerceriam (não tenho dados para afirmar se
muita ou pouca) influência junto das elites.[15]
Os jornais (periódicos) que trabalhamos, além de informarem os leitores,
defendem ideias e até participam em campanhas (como vimos). Ou ignoram-nas
simplesmente. Como iremos vendo (neste e em outros artigos). O Açoriano Oriental, de 21 de Fevereiro, (que
nunca deixará de seguir a actuação de Loureiro), seis dias depois da eleição, pede-lhe que se mantenha de olhos bem
abertos. Sem ‘dourar a pílula,’ indo
direito ao que lhe interessa, diz-lhe: ‘examine
minuciosamente o orçamento – que
compare as verbas concedidas para outros Distritos com a importância e
necessidades deste nosso.’ Que não se esquecesse de que havia crise e que era
necessário tomar as medidas de sempre: criar ocupações. Escreve o jornal, tendo em vista ‘as vantagens que hão-de
resultar de se promoverem as obras públicas de que carecemos, trabalhe para que se levem a efeito.’ Loureiro
assim faria, afiançava o jornal, simplesmente porque ‘temos confiança de que assim o fará.’[16]
Segundo Mariano José
Cabral, o deputado desejável era assim: ‘(…) não queremos deputados políticos, mas que sejam procuradores e
advogados dos nossos interesses é quanto desejamos.’ Reconhecendo a
dificuldade, Mariano ainda acrescentou: ‘Não
invejamos a posição do sr. Loureiro.’ Isso era o que Mariano desejava. Posto isto, o que é que Loureiro levou mesmo
à Câmara? Vamos tentar ver no próximo trabalho.
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
[1] O Diário do Governo, n.º 70, de 31 de Março de 1852
salta para o N.º 71 de 20 de Maio de 1852; O Correio Micaelense, Ponta Delgada,
19 de Junho de 1852, p.1: ‘No dia 20
[de Maio], segundo fora decretado,
abriram-se de novo as Câmaras Legislativas. As primeiras duas sessões foram
pouco concorridas dando o sr. Presidente como causal o terem ido os srs. Deputados ao funeral do conde das
Antas [Francisco
Xavier da Silva Pereira f. 20-05-1852 - Lisboa].’
[2] Diário da Câmara
dos Deputados, sessão de 27 de Maio de 1852, N.º 7, pp. 34-36; Diário do
Governo, Março, N.º 127 [31 de Maio], p. 4.
[3] Diário da Câmara
dos Deputados, sessão de 17 de Junho de 1852, pp. 225 - 226; Diário do Governo, n.º 141, de 17 de Junho
de 1852, p. 3.
[4]Canto, Ernesto,
Biblioteca Açoriana: Notícia bibliográfica das obras impressas e manuscritas
nacionais e estrangeiras concernentes às Ilhas dos Açores, Tipografia Arquivo
dos Açores, Ponta Delgada, 1890, p.218
[5] Canto, Ernesto,
Biblioteca Açoriana: Notícia bibliográfica das obras impressas e manuscritas
nacionais e estrangeiras concernentes às
Ilhas dos Açores, Tipografia Arquivo dos Açores, Ponta Delgada, 1890, p.224.
[6] Acta da sessão
ordinária da Junta Geral do Distrito de Ponta Delgada de 18 de Dezembro de
1851, fls. 126 v. – 127 v.
[7] Revista
Micaelense, Ponta Delgada, 19 de Fevereiro de 1852, fl. 1.
[8] Nota de 21 de Dezembro de 2022. Correcção: o primeiro bibliotecário foi Tomás Brown Soares. Cf. Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, Exposição de 29 de Setembro de 2016 a Abril de 2017, p. 12.
[9] José do Canto, Aos Micaelenses que
pretendiam eleger-me como Deputado IV, Açoriano Oriental, Ponta Delgada, 13 de
Março de 1852, pp.2-3.
[10] Agricultor
Micaelense, N.º 2, Fevereiro de 1848, p. 36; 1852, n.º 50, pp. 822-836.
[11] Revista
Micaelense, Ponta Delgada, 12 de Fevereiro de 1852, p. 3: ‘Recebeu-se uma correspondência da Vila da Ribeira Grande sobre as obras
precisas no porto de santa Iria, que será convenientemente publicada.’
[12] A Revista Micaelense, Ponta Delgada, 11 de Março de
1852, fls. 3-4
[13] Açoriano Oriental, 6 de Março de 1852, p. 3 Começa a
publicar Aos Micaelenses que pretendiam eleger-me Deputado – José do Canto
[14] Torres, José de,
Doca nos Açores IX, Revista dos
Açores, 19 de Maio de 1852, pp. 289-290.
[15] A Ilha, Ponta Delgada, 17 de Junho de
1852, p. 3: ‘Temos folhas de Lisboa até 29 de Maio último (…).’
[16] Açoriano
Oriental, Ponta Delgada, N.º 890, 21 de Fevereiro de 1852, fl. 4.
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