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Fortaleza - 14
D.
João III decidira. Uma fortaleza, um porto, uma cidade: Ponta Delgada. São
Miguel era ali. Fazia todo o sentido que assim fosse, a Alfândega e o
Almoxarifado da ilha estavam em Ponta Delgada. Tudo havia começado no tempo do
falecido pai: o saudoso D. Manuel I. A cereja no topo do bolo, por assim dizer,
ficara a dever-se ‘(…) aos muitos serviços que dos
moradores da dita vila tenho recebidos, assim nos socorros e provimentos que
dão a minhas armadas e naus da Índia quando à dita vila vão ter, como em outras
coisas que servem quando cumpre meu serviço, como bons e leais vassalos.’[1] Por tudo isso, os leais vassalos da
Ribeira Grande (ou quaisquer outros das demais Vilas da Ilha) teriam de esperar
pela sua vez. Quando e se, porventura, chegasse. Aqui vão dois palpites meus: entretanto,
quanto à Ribeira Grane, a magnanimidade Real facultar-lhe-ia o porto dos
Carneiros, na Vila da Lagoa, um. E, já mais para lá, já no tempo do Rei Filipe,
a ponte de pedra e cal que a anterior a água levara em 1563/64, outro. Não haja
dúvidas: mesmo que a elite da Ribeira Grande quisesse algo logo e já, por
exemplo, as obras para Santa Iria, nunca poderia ir contra a vontade soberana
do Rei. Veja-se o destino das repetidas súplicas de Vila Franca.
Como
se explica a construção de uma fortaleza em Ponta Delgada no tempo de D. João
III? Para o explicar de forma que faça algum sentido, dei trabalho às células
cinzentas, como nos aconselha Hércule
Poirot. Numa das caminhadas no areal de Santa Bárbara, logo ao romper do
dia para fintar os malévolos UV, lembrei-me de um estupendo trabalho de Rui
Carita apresentado no Congresso dos 450 Anos de elevação a Cidade de Ponta
Delgada. Nosso amigo e colega de ofício e grande oficial destas coisas. Chegado
a casa, ‘teclei-lhe.’ Não passara bem uma hora, envia-me em PDF o trabalho que
responde às minhas perguntas.
O que levou o Rei a pôr em prática de imediato uma
estratégia de defesa? Rui Carita: ‘O arquipélago dos Açores’ tornou-se ‘ponto obrigatório de passagem na derrota das Índias: primeiro do
caminho marítimo das Índias Portuguesas e depois do das Índias de Castela (…).’ Atenção, mas
não só: ‘(…) a apetência do espaço do arquipélago açoriano
para acções corsárias, para a qual contribuíam, igualmente, as próprias
produções insulares.’
De que produções se tratariam? Resposta do Rui: ‘A abundância de cereal, pastel e vinho, aliada, ainda, à riqueza de
muitas das igrejas e casas particulares, assegurava, por vezes, a alternativa a
um assalto marítimo pouco proveitoso.’ Assim, para defender tais rotas e a riqueza da
terra, aconselhava-se o Rei (que aceitaria em parte o conselho) ‘(…) que as principais povoações deveriam ser
defendidas por fossos com parapeitos e “baluartes
de madeira e terra,” especificando que, nas vilas, se deveriam construir ‘castelos de pedra e cal,’ bastante
espaçosos e de espessura e altura tais que se pudessem defender de “lança e escudos.”
Que povoações, vilas e cidades deveriam ser
protegidas com edificações de pedra e cal? Em São
Miguel, a maior ilha dos Açores, ainda maior do que a Ilha da Madeira: Ponta
Delgada. Razão: a posição estratégica de Ponta Delgada no
eixo das rotas europeias do Atlântico. Além de Ponta Delgada, nos Açores: ‘a ilha das Flores, o porto de Angra, na ilha Terceira, ou de Nosso
Senhor Jesus Cristo.’ Pode acrescentar-se ainda, no caso de Ponta
Delgada, creio, o trigo, o pastel e a riqueza das suas igrejas. Aliás, os
piratas que saquearam ‘no século XVI, à vila da Praia, na ilha
Terceira; de Ponta Delgada, em São Miguel; da Horta, no Faial e de Santa Cruz
das Flores,’ haviam sido
atraídos ‘pelos cereais, pastel, vinho e
pela riqueza das igrejas.’
Por que será que a Ribeira Grande, a Norte da
Ilha, ‘uma das duas mais principais vilas
da Ilha,’ como diz Frutuoso de Vila Franca e da Ribeira Grande, tão rica em
trigo e em pastel quanto Ponta Delgada, não foi contemplada com um castelo ‘de pedra e cal?’
Por que razão a Ribeira Grande não fez parte
desta estratégia de defesa Joanina? Não seria necessário uma fortaleza na Ribeira Grande, pois, distando a
dois passos de Ponta Delgada, em caso de perigo, os senhores da Ribeira Grande
poderiam proteger-se ‘à sombra’ da fortaleza
de Ponta Delgada? E quanto à maioria da população? Aí, como no resto da Ilha, os
matos eram o lugar indicado. Terá sido antes defendida por ‘
fossos com parapeitos e “baluartes de madeira e terra?” Se foi
esse o caso, onde encontrar vestígios disso? Os piratas não vinham à costa Norte da Ribeira Grande? Ou vinham
mas não nos chegou notícia disso? E o barco de castelhanos que naufragou
defronte da Ribeira Grande por volta de 1555? Eram piratas ou pacíficos
comerciantes? Atraindo ou não piratas, aparentemente, só se construiria na
Ribeira Grande uma fortaleza talvez ainda no século XVII ou já no século XVIII.
Terá tido outra forma de se proteger além das
companhias móveis de milícias e os matos ali perto? Não sei. Na estratégia de
D. João III, a construção da
fortaleza em Ponta Delgada seria apenas a primeira a ser construída na ilha,
seguindo-se-lhe outras mais no Sul e no Norte da Ilha? Se assim foi, porque não
avançaram para as seguintes? Derrapagem de verbas?
O que se sabe é que, talvez consequência de
mudanças na arte da guerra ou talvez ainda mercê da nova geografia do poder no
Atlântico, dois séculos depois, uma memória militar
setecentista, de autor desconhecido, ao enumerar os ancoradouros da Ilha de São
Miguel que carecem de maior vigilância, menciona, entre outros, os ‘(...) portinhos da Maia, Porto Formoso, Santa Iria
e Capelas, que a impetuosidade do mar e o acidentado da costa tornam quase
impraticáveis. Os três areais da Ribeira Grande comungam destas contrariedades.’[2]
Devem datar desta altura, ou de pouco antes desta altura, as fortificações a
Norte da Ilha. Então, a estratégia Joanina foi (con)centrar a defesa
em Ponta Delgada? Ao que parece, a resposta só pode ser afirmativa. Como termo
de comparação, ressalvando as distâncias, poder-se-ia pensar que se tratou de uma
solução na linha da que viria a ser adoptada em plena II Guerra Mundial? Segundo
estudo do meu colega e amigo Sérgio Rezendes. A defesa do eixo Ponta
Delgada-Ribeira Grande, a parte mais vulnerável da Ilha, mas então, enquanto
não se punham de pé mais fortalezas na Ilha, recorrendo a uma fortaleza em
Ponta Delgada e a milícias móveis na Ribeira Grande e lugares por ali perto?
Não sei, todavia, é provável que não andemos muito longe deste cenário. Ou
andaremos?
O que terá
levado o Rei a pôr de pé esta estratégia defensiva? Que episódios conhecidos terão
levado sem perda de tempo o Rei a implementar a estratégia? O ponto de viragem decisivo resultou ‘(…) do evoluir da
situação em Marrocos, com a queda da praça de Santa Cruz de Cabo de Guer, em
1541 (…).’ Ponta Delgada havia sido atacada por
corsários logo no início dos anos de 1550. A construção da fortaleza de Ponta
Delgada - de São Brás -, ordenada pelo Rei D. João III, começou ‘com trabalhos de terraplanagem,’ sob
orientação do ‘mestre das obras das capelas das ilhas dos
Açores,’ Manuel Machado em 1551. O mesmo mestre
Manuel Machado das obras da igreja de São Sebastião em Ponta Delgada e da do
Mosteiro do Santo Nome de Jesus na Ribeira Grande. Eram constantes as
necessidades da Fortaleza: ‘(…) As dificuldades de S. Brás foram expostas
pelo corregedor das Ilhas, Cristóvão Soares de Albergaria, em carta datada de 5
de Outubro de 1585, dirigida ao cardeal arquiduque Alberto de Áustria, então
vice-rei de Portugal. Nesse ano de 1585 a fortaleza de São Brás tinha entrado
pela primeira vez em combate directo.’ Em 1595,
novo ataque de ingleses à ilha. Enquanto Ponta Delgada aguenta firme dentro dos
muros da fortaleza e rechaça os piratas, Vila Franca, desprotegida é saqueada.
Na década de sessenta, a estratégia passa a acrescentar ao forte de São Brás em
Ponta Delgada por todo o arquipélago (onde se inclui São Miguel?): ‘(…) uma intensa campanha de fortificação,
aumentada, depois, com a aclamação de D. António, Prior do Crato.’ O que sei é da criação anterior
de companhias de milícias. E o resto da Ilha?
E mais artilharia para a fortaleza. Mas
não foi só a fortaleza que exigiu dinheiro, foi também ‘um molhe para
o porto e de uma estância para a sua protecção foi determinada por D. João III,
como se deduz de uma carta enviada pelo ouvidor de S. Miguel, Manuel Nunes
Ribeiro, após o assalto de naus francesas a alguns navios no porto da cidade.’
Quais obras parentes chegadas de Santa
Engrácia, as obras da fortaleza de São Brás prolongar-se-iam por todo o século
XVI e XVII, com remendos e acrescentos a pedido da Câmara e de outras
instâncias de poder.[3]
Quem pagou a factura? A ilha
inteira: através de uma finta e de 2% sobre o pastel produzido.[4]
O Ouvidor
Real insistia e voltava a insistir, mas ‘(…) A cativação das verbas de toda a Ilha para a
fortaleza de Ponta Delgada levantou inúmeros protestos.’ O que ganhou a
Ilha com os protestos? O Rei (já D. Sebastião), repare-se na data, quando o
Norte sofrera gravíssimas destruições, enviou ‘a 3 de Junho de 1565, um novo provedor da fazenda, o fidalgo da casa
real Fernão Cabral, aumentando-se as fontes de financiamento com um novo “derrame”
de mais vinte mil cruzados para acabar a fortaleza.’[5]
Mais impostos sobre a Ilha para as obras da Cidade.
Onde ir buscar fundos para pagar
a factura se a economia da Ilha atravessava dias bem sombrios? Além do desastre
resultante de uma aposta errada no açúcar, a economia da Ilha ressentia-se de outra desgraça. Após a
destruição de 1563/64, abatera-se sobre a ilha logo a seguir a 1563/64 (o
segundo terramoto), ‘uma praga que
comummente se chama alforra nas searas e novidades do trigo e nas hortas, que
tudo dana e deita a perder onde dá ou cai.’[6] Os recursos da Ilha iam desde há
muito para a construção da fortaleza e do porto de Ponta Delgada. Nada ou pouco
chegava ao resto da Ilha.
Como
é que a ilha reagiu? Pagou e calou? Não totalmente. Há ecos de alguma reacção.
Por exemplo, em 1582 Vila Franca foi escolhida por D. António Prior do Crato
como cabeça da Ilha, ou seja capital, talvez por haver quem nela quisesse dessa
forma acabar com a hegemonia de Ponta Delgada, que muitos aí consideravam ter
sido fruto de usurpação ilegal: ‘pôs D. António, como em cabeça,
por governador de toda a ilha, a um Diogo Botelho.’[7]
Ponta Delgada, segundo Frutuoso, manteve-se fiel ao pretendente Espanhol. Tanto
quanto nos permite a leitura da versão (podada?) de Frutuoso (os livros de
actas das Câmaras envolvidas desapareceram), após um fugaz desalinhamento
estratégico inicial,[8]
a Ribeira Grande mudou de campo,
alinhando, como de costume alinhava, com Ponta Delgada. Interesses económicos,
familiares, culturais e socias assim a predispunham. A elite que não desertou
depois de 1563/4, não tardaria a mostrar o que queria para a sua terra. Em
meados do século XVII, Frei
Diogo das Chagas já faz eco do sonho da Ribeira Grande vir a ser um dia a cidade.[9]
Com tudo o que isso traria à terra, tal como se via acontecer em Ponta Delgada.
Gostaria de aprofundar esta
parte da nossa história, se possível, em outra altura.
Recuemos
de novo. Terá sido pelo apoio da Ribeira Grande (certa elite) que em 1587 o Rei
Filipe I lhe concede o direito de lançar uma finta para construir a ponte
destruída vinte e quatro anos antes, ainda no tempo do Rei D. Sebastião?[10]
A finta era paga pela Ilha – como a fortaleza – ou pela Ribeira Grande? Pela
Ribeira Grande. E recompensa a lealdade de Ponta Delgada com mais obras na
Fortaleza e no porto, além de confirmar o privilégio concedido em 1546 por D.
João III aos seus cidadãos: de andarem a negociar a cavalo?’[11]
Vila Franca, por ter sido a cabeça (capital) de ilha de D. António, como punição
exemplar desta rebeldia, para que não voltasse a acontecer, o Marquês de Santa
Cruz obrigou-a a assistir à degolação e decapitação dos franceses derrotados na
batalha naval ao largo de Vila Franca. Gaspar Gonçalves, fidalgo e vereador de
Vila Franca, foi poupado a ser degolado na sua terra, foi degolado em Ponta
Delgada.[12]
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
[1] Carta Régia de
D. João III, de 2 de Abril de 1546, elevando à categoria de Cidade, a Vila de
Ponta Delgada, na Ilha de São Miguel, Retirado do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, Chancelaria de D. João III, Livro 43 de, folha 34, publicado em o
Arquivo dos Açores, Vol. I, 2.ª edição, 1980, pp. 323-324.
[2] Meneses, Avelino
de Freitas, Os Açores nas encruzilhadas de setecentos (1740-1770), I – Poderes
e Instituições, Universidade dos Açores, 1993, p. 424 Cf. (BN (Lisboa), Códice
472, fls. 95-98, descrição costeira da ilha de S. Miguel, s/l, (século XVIII).
[3] Carita, Rui, Ponta Delgada e os problemas de defesa nos séculos XVI e XVII: os militares e
os Jesuítas, in Actas do Colóquio dos 450 anos da Cidade de Ponta Delgada,
1999, pp. 67-88
[4] Monte Alverne,
Frei Agostinho de, Crónicas da Província
de São João Evangelista das Ilhas dos Açores, Volume II, ICPD, 1961, p.
439: ‘O castelo de Ponta Delgada custou
91.681 cruzados e 140 reis, à custa do povo da Ilha, a saber 61.588 cruzados,
que deu o povo por finta, e 12
contos e 93 cruzados e 140 réis dos dois por cento do pastel.’
[5] ABPPD, Livro Velho cit.,
fl. 25 v.º. Cit. AA, vol. IX, pp. 167
e 168.
[6] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, ICPD,
Livro IV, Volume III, 1987, p. 83.
[7] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, ICPD,
Livro IV, Volume III, 1987, pp. 163, 167, 168.
[8] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, ICPD, Livro IV, Volume III, 1987, p. 165.
[9] Chagas, Frei
Diogo das, Espelho Cristalino em Campo de Várias Flores, 1989, pp.163-64.
[10] Chancelaria de D. Filipe II, Privilégios, Livro 45 dos Índices, Livro 2.º fl. 143; Cf. AMARAL, Maria Regina A. de Carvalho; FREITAS, Maria Antónia P. Coelho de. Índice das Variedades Açorianas (Série Manuscrita). Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura; Direção Regional dos Assuntos Culturais. 1992.
[11] Frutuoso,
Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV,
1998, p. 172.
[12] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, 1998, pp. 423-427.
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