‘O ex-aeroporto de
Santana: futuro comprometido da Ribeira Grande?’
I
‘A esperança é como um caminho rural.
Primeiro, não há caminho, mas se um número suficiente de pessoas caminhar na
mesma direcção, o caminho aparece.’
Lu Xan, in Wood, Michael, A História da China: um retrato de uma civilização e do seu Povo,
Temas e Debates, Bertrand Editora, Lisboa, 2021, p. 477.
No meio de ‘n’ sugestões para o
Museu de Comunidade da Ribeira Grande, propus este título para o polo de
Santana daquele Museu, assim exactamente: ‘8.1
- O ex-aeroporto de Santana: futuro comprometido da Ribeira Grande?’[1]
Vendo bem, acho que se adapta bem a esta nova abordagem que agora dou início.
Em uma casa à frente da minha
vivia o meu amigo João Manuel Brum. Porque vou buscar esta recordação? O pai,
Bruno do Couto Brum, era controlador aéreo em Santana. Só por isso? Não. Íamos,
eu e o João Manuel, de vez em quando apanhar boleia dos aviões de Santana. Ao
lado do mecânico, sentados na mesma cadeira, o avião seguia da pista para o
hangar. Era uma delícia. Mais abaixo da minha casa, na Ribeira Grande,
esclareça-se, morava o Mário Jorge Carvalho, o pai (se não me erra a memória)
era piloto. Costumava ir brincar com ele na sua casa e ele na minha. Um pouco
mais abaixo, o sr. Calisto. Outro. Fiquemos por aqui que são muitos o que a
minha memória recorda.
Ah, aos quatro anos viajei de
Santana para as Lajes a caminho de Lisboa, onde fui submetido a uma operação
cirúrgica. Levara uma pedrada no meu olho esquerdo. E regressei pelo mesmo
caminho. Os meus pais foram comigo. Fiquei em Lisboa uma data de meses (no
Hospital) e as minhas duas irmãs mais novas, a Rosalina de um ano e a Luísa de
poucos meses (já não me lembro com quem ficaram, provavelmente com a minha tia
Fernanda), ao colo de alguém, à nossa espera em Santana. Lembro-me do avião que
passou baixo no dia em que estava com meu pai na praça e ele me disse: vamos
depressa que o bebé já chegou. Era a Luísa. Lembro-me dos dois cafés e do
‘Balão’ cheio de gente que diziam ser do aeroporto. Um dia, quando regressava
da cidade da Horta de casa dos meus avós maternos, onde estudava no Liceu, já
não encontrei o João Manuel nem o Mário Jorge Carvalho. Foram todos para Ponta
Delgada. Ficou apenas o ‘sargento Nicolau.’ Também o mecânico Hélio Cabral. O
que aconteceu ao nosso aeroporto? Tinha onze anos feitos em Abril e ouvi aqui e
ali: levaram o nosso aeroporto para a cidade (leia-se Ponta Delgada); o
Bensaúde levou o aeroporto; o Dr. Jorge deixou sair o aeroporto. Ah, ouvi
também que uma senhora idosa que escrevera uma carta ao Salazar a reclamar o
preço que lhe iam dar (e deram) pelo terreno de Santana recebera a visita de
dois PIDES. Alguns dos mais de quarenta proprietários dos terrenos, numa
ocasião em que se mobilizaram para apresentar proposta conjunta, uns desistiram
por medo. Porque tinham filhos que precisavam de emprego. E outras mais razões.
Ficou tudo por ali. Isso soube-o melhor muito mais tarde. Por que razão não
ampliaram as pistas em Santana? Ouvi o meu pai dizer que era por causa de um
pico. Pico? Teriam de arrasar e custava muito dinheiro. Pai, estão a fazer uma
cova enorme lá me baixo, não custa mais? Não te metas nisso que ainda me
chateiam.
Passados menos de dez anos o
aeroporto lá em baixo já não servia e havia quem defendesse o seu regresso a
Santana. Será porque os ventos do Sul é que são bons e os do Norte não prestam
por isso o aeroporto foi para o Sul? O porto de Santa Iria nunca passou de cepa
torta porque os mares do Norte da ilha não são bons e os do Sul são uma
maravilha. Li num jornal (Correio dos Açores) do então candidato a deputado
Nacional Jaime Gama algo que me espantou: ninguém sabe as razões porque o
aeroporto saiu de Santana. E interrogava-se: que interesses estarão por trás
disso?
Para aquecer os motores, pedi a um amigo um pouco mais
velho do que eu, que me dissesse algo a este respeito. Escreveu-me de pronto:
‘Caro Mário, boa
noite. Em relação ao aeroporto, a mim próprio, sempre me indignou, a forma
ignóbil como foi surripiado ao nosso concelho da Ribeira Grande, uma
infraestrutura fundamental, geradora de desenvolvimento, deslocalizado para as
"barbas" de Ponta Delgada, apenas por uma questão de pressão e de
influência de quem detinha o poder e tutelava o dossier em questão. Ainda por
cima, a mudança de local do aeroporto, envolvida num processo nebuloso,
anacrónico, em que tudo valeu, até mesmo, "comprar" o parecer técnico
de uma entidade estrangeira, que indicava, a pedido, digo eu, a rocha da Relva
como sendo o lugar ideal para se aterrar em S. Miguel. Tudo isto feito, de
forma desnecessariamente onerosa perante a passividade de toda a ilha, quando
se sabe hoje que é completamente contraproducente localizar um aeroporto em
cima de uma cidade, como se comprova com a actualíssima polémica no Aeroporto
de Lisboa. Foi, penso que, até hoje, a maior movimentação de terreno no
país, de modo a nivelar a pista, deslocando milhares de metros cúbicos de
inertes, de poente para nascente, formando aquele horroroso promontório sobre a
rotunda do Príncipe do Mónaco, enterrando a Mata da Doca e abrindo uma
cova medonha no lado contrário, a poente, onde se situa o terminal
do aeroporto. É o lugar mais feio da ilha de S. Miguel. Fica, contudo,
para a posteridade, um marco indelével, testemunho da estupidez e prepotência.’[2]
Mas o se passou ao certo?
Pergunto. Suponho que possa procurar respostas sem me vir a PIDE bater à porta.
É isto que, já mais crescidinho, vou tentar saber. Por mim algumas pessoas
muito especiais: Carita, Edmundo, Ezequiel Júnior, Sampaio Rodrigues, Laureano
Almeida. Explico melhor: Pouco antes de falecer, Carita, pai do Historiador Rui
Carita, pediu ao filho que entregasse o seu Álbum de fotografias ao Arquivo da
Ribeira Grande, a terra onde fora mais feliz na adolescência e juventude, terra
do seu amigo de peito Padre Edmundo Pacheco. Confesso quando Rui me entregou de
mão própria o Álbum, numa ocasião em que participamos juntos num colóquio ou o
que o valha aqui em São Miguel, senti um arrepio a percorrer-me a espinha.
O
Álbum Fotográfico foi-me entregue pelo filho Rui Carita, a pedido do pai antes
de falecer em Março de 1997, que queria que ficasse na terra em que passara
bons tempos na sua juventude: ‘Creio que fui o portador da oferta, ainda o
meu pai era vivo, creio.’[3]
Quem
era o fotógrafo Carita? Continuando a recorrer ao filho Rui, Historiador de Arte
de renome internacional, responde assim: ‘Tenente-coronel
piloto aviador António Carita Silvestre (Portalegre, 30 de Outubro de 1919;
Lisboa, 19 Março de 1997).’ Por onde andou ele: ‘Ele começou por estar nos Açores antes de eu nascer, como furriel piloto-aviador
e, regressando a Lisboa, casou e entrou para a Academia Militar. Alguns anos
depois foi colocado na Base das Lajes, onde esteve até 1954 ou
1955. Depois ainda esteve na montagem da base aérea de Henrique Carvalho, no
Leste de Angola, hoje Saurimbo, regressou ao continente e, entretanto, passou à
reserva. Foi então membro da Câmara Municipal de Sintra, como vice-presidente,
onde estava no 25 de Abril de 1974 e teve que sair (embora um pouco à força,
acrescente-se) é a vida./Rui Carita.’[4]
E mandou uma fotografia do pai.
(Sintra – 1945)
Este
álbum sem nome, a que dei justamente o nome de Álbum Furriel Carita (António Carita Silvestre), (Portalegre, 30 de Outubro de 1919; Lisboa, 19 de
Março de 1997) fazendo fé às fotografias
datadas, a maioria não está datada, irá de Junho de 1941, data da partida de
Lisboa para São Miguel, a Maio de 1943, data de uma excursão com camaradas à
procissão dos enfermos das Furnas a 5 de Maio.
Fiquei sem sono na noite daquele
dia em que recebi das mãos do Rui o Álbum. Dirigi-me, de madrugada com o Álbum
no banco ao lado do condutor, a percorrer Santana, ruas da Ribeira Grande, Rabo
de Peixe. Os espaços da juventude de Carita. Minha mãe, quando lhe contei o que
fizera, assustada, levantou-me o dedo: nunca mais faças isso! Porquê? É
perigoso. Edmundo? Levei-lhe a ver o Álbum de Carita no mesmo dia. Estava
sentado junto ao balcão da loja de retrosaria, que fora antes do pai: aguentou
a emoção. Falámos durante mais de uma hora. Edmundo (n. 28 de Outubro de 1926 –
f. Hospital de PDL Março de 2015) dedica no livro biográfico de Alexandre
Gaudêncio um capítulo inteiro às suas memórias de Santana.[5] A
sua querida Santana. Foram coisas dos Bensaúde! E o Dr. Jorge deixou ir. A
Ribeira Grande nunca mais foi a mesma desde então. Mas a gente encontra
solução, sempre encontrou! O Dr. Sampaio, Joaquim Sampaio Forte Rodrigues (n.
10 de Junho de 1916 – f. 24 de Março de 2008), nasceu em Vale de la Mula, na raia fronteiriça com
Espanha, veio em 1942-43 como oficial miliciano para a Ribeira Grande. Aqui
casou. Aqui chegou a ser Presidente de Câmara. Em 1993, com 75 anos publica o
seu primeiro livro de memórias, em 1996, o segundo. Morre a 24 de Março de
2008.[6]
Nas memórias, mas sobretudo nas conversas no Café Central, chegamos ao ambiente
na Ribeira Grande com os soldados ‘de Lisboa’ e os aviadores de Santana. Ezequiel
Moreira da Silva (n. 14-09-1936 – f. 03-03-2017) nas suas coisas da Ribeira Grande
a que chamou ‘Ares de Guerra,’ em
seis artigos, também fala de Santana.[7]
Lugar das Areias – Rabo de Peixe
Mário Moura
[1] Moura,
Mário, Museu da Ribeira Grande, Universidade Nova, 2000, p. 32.
[2]
Correio
electrónico de Hermano Cordeiro a Mário Moura, 25 de outubro de 2021
[3] Testemunho de Rui Carita (filho), 5 de Março de 2021.
[4] Testemunho de
Rui Carita (filho), 5 de Março de 2021.
[5] Gaudêncio,
Alexandre, Padre Edmundo Pacheco:
Histórias de um ribeiragrandense, Câmara Municipal da Ribeira Grande, 2012,
pp. 57-65.
[6] Rodrigues,
Joaquim Forte Sampaio, O insólito na vida
de um Médico, 1993; Face Prosaica da
Prática Clínica, 1996; Joaquim Forte Sampaio
Rodrigues, Açorianíssima, Ponta Delgada Fevereiro,
2001, pp. 22-23; Teodoro, Hermano, Sampaio Rodrigues:
Médico, autarca e contador de estórias, Estrela Oriental, Ribeira Grande,
III Série, Outubro de 2002, pp. 6,7.
[7] Silva, Ezequiel
Moreira da, Ares da Guerra, Coisas da Ribeira Grande, (I), Correio dos Açores,
5 de Junho de 2011, p. 15; Ares da Guerra, Coisas da Ribeira Grande, (II),
Correio dos Açores,12 de Junho de 2011, p. 17; Ares da Guerra, Coisas da
Ribeira Grande, (III), Correio dos Açores,19 de Junho de 2011, p. 15; Ares da
Guerra, Coisas da Ribeira Grande, (IV), Correio dos Açores, 26 de Junho de
2011, p. 15; Ares da Guerra, Coisas da Ribeira Grande, (V), Correio dos Açores,
3 de Julho de 2011, p. 17; Ares da Guerra, Coisas da Ribeira Grande, (VI),
Correio dos Açores, 17 de Julho de 2011, p. 15.
Comentários