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Ribeira Grande: Limites - XV

A Ribeira Grande procura um ‘porto’ - XV

Porto? Esperem aí, temos vindo a falar de portos, no entanto, ainda não explicamos o que à altura se considerava ser um porto. Ou se havia portos na Ilha. Chegou a altura de o fazermos. Certo? Para Frutuoso (1522? – 1591) no século XVI, não restavam dúvidas, sim senhor, havia portos: o de Santa Iria, o dos Carneiros, o de Vila Franca, o do Porto Formoso, o dos Mosteiros e, acima de todos, o porto de Ponta Delgada. Não sendo ele conhecedor do assunto, será que nos transmite o que os conhecedores da época diziam? Não sabemos. Mas é provável. Num salto de quase três séculos, no primeiro quartel do século XIX, Mouzinho de Albuquerque (Lisboa - 1792- Torres Novas- 1846) é taxativo a este respeito, não senhor, não havia portos, quanto muito existiam ancoradouros. Albuquerque foi ‘militar, engenheiro, poeta, cientista e político.’[1] Ao contrário de Frutuoso, percebia de portos e de ancoradouros. Diz-nos ele, referindo-se à Ilha em geral e a Ponta Delgada em particular: ‘não tem porto, pois tal se não pode chamar o fundeadouro em frente de Ponta Delgada, que desabrigado para todos os ventos dos quadrantes do S.O, e S.E., e mal protegido contra os do N.O., apenas contra os ventos de N. até E. oferece um asilo tolerável.’[2] Tanto assim era que, continuando na sua narrativa, ‘os navios, que fundeiam naquele ponto [Não é gralha: reparem, ponto e não porto], vêem-se obrigados a levantar ferro continuamente, e frequentes vezes no meio das carregações, e descargas, para virem, passados dias de laboriosa bordejação, e às vezes com grande risco, completar essas operações (…).’[3]

Doze anos antes de Albuquerque estudar a Ilha, Briant Barrett, um enigmático cidadão britânico, acerca do qual pouco ou nada se sabe e muito se especula, dizendo-se até que viera incumbido de uma missão de reconhecimento da Ilha a favor da Grã-Bretanha, desconhecendo-se se era conhecedor de portos, esclarece-nos o que se fazia quando ocorriam estes apertos a Sul: ‘Os navios que arribam à costa Norte de S. Miguel ficam, frequentemente, por lá durante uma semana, dez ou mesmo quinze dias, antes de darem a volta até Ponta Delgada que fica a Sul.’[4] Mais um salto no tempo, ainda na década de quarenta do século XX, conforme nos testemunhou Sarmento Rodrigues, com o porto (doca) artificial de Ponta Delgada construída, continuava a ser prática corrente os navios irem abrigar-se na costa Norte. Fazendo mesmo lá cargas e descargas, sobretudo nas Capelas.

Em que se baseia Albuquerque para negar a existência de portos em São Miguel no primeiro quartel do século XIX? Vão-me permitir uma longa transcrição? Eis o que deixou escrito como prova do quer afirma: ‘(…) é esta costa [Sul. Por qualquer razão, sem a descrever, limita-se a apresentar ancoradouros na costa Norte] cortada pelas ribeiras, em cujas aberturas o mar reponta um pouco pelas terras. Estas ribeiras, geralmente mui caudalosas na presença de grossas chuvas, amontoam nas suas bocas pedaços de lava rolada de diferentes grandezas.’ E o que em São Miguel se chamava de porto, segundo Albuquerque apurou? Eis o que nos diz: ‘um espaço, de que a braços se tem arredado os maiores penedos, em largura semelhante suficiente para receber um barco, constitui o que em S. Miguel se chama um porto.’ E atira exemplos: ‘os portos do Faial, Povoação, Ribeira Quente, os diversos portos de Vila Franca do Campo, etc., etc.’ Já se referira, como vimos, ao de Ponta Delgada. Para confirmarmos de forma científica (e actual) o que os autores anteriores afirmaram, aconselho a leitura do trabalho do meteorologista Anthiminio de Azevedo sobre o anticlicone dos Açores.[5] Ou ainda de um recente estudo, conforme noticiou este nosso jornal.[6]

Se era difícil manobrar no ‘ancoradouro’ de Ponta Delgada, apesar de estar equipado com o melhor que à época existia, imagine-se como seria manobrar nos restantes ‘ancoradouros’ da ilha, tanto nos da costa Sul, como na do Norte, sem nada disso? Para fazermos uma ideia do que seriam as difíceis manobras de entrada naqueles ‘ancoradouros,’ nada como tentarmos visualizar as descrições de Albuquerque: ‘Quando um barco tem chegado em frente de um destes boquetes, volta a popa à terra, e espera o momento, em que o mar rebente com menos violência; então os remos são metidos dentro, e o barco impelido à vara contra o boquete; uma parte da gente salta na água, e vai a braços empurrando o batel, que os vaivéns das ondas fazem repetidas vezes bater sobre o fundo; finalmente o barco é tirado a braços sobre as lavas roladas, que cobrem a borda do mar.’  Ou as manobras de saída do barco do ancoradouro: ‘Igual operação é preciso para lançar o barco à água.’ [7] Ou no ancoradouro ‘sofrível’ da Ilha. Aí, leia-se o desembarque ‘com perigosa ressaca’ em Ponta Delgada a 6 de Dezembro de 1838 descrito pelos irmãos Bullar. Num instante, um ‘mar de lapas,’ poderia passar a um mar rijo, tanto numa como noutra costa da Ilha. Apesar disso acontecer um nada menos no Sul, é, porém, no Sul que ocorrem as grandes tempestades. Dizem-nos. Será?

Se isso acontecia no século XIX, como vimos em Mouzinho de Albuquerque, que esteve na Ilha de Agosto a Outubro de 1825, ou conforme a referida entrada no diário de 1838 dos Irmãos Bullar, o que não seria no século XVI? Pelo que se sabe, não terão ocorrido mudanças radicais entre os portos/ancoradouros dos séculos XVI e os do XIX, se assim for, ficamos com uma ideia do que poderia ter sido um porto/ancoradouro no seculo XVI. Esperem aí, pensei nisso agora mesmo, a troca de Santa Iria por um porto a Sul pode ter tido outra causa: e se o regime de ventos mudou do período em que Frutuoso fala ao tempo de Briant e de Albuquerque? Mas só para o Norte? Para instalar essa dúvida, aconselho a leitura de a ‘Pequena Idade do Gelo,’ na Europa, entre 1300 e 1850 de Brian Fagan.[8]  

Já estamos prontos a tentar ver o que poderia ter sido o Porto de Santa Iria no século XVI? Que haverá a dizer das obras que aquele porto exigiria depois das de 1525? Resposta simples: enquanto durassem as obras da Fortaleza e do porto de Ponta Delgada, nem pensar nisso era bom. E era urgente. Apesar de na década de quarenta e na seguinte, a produção de açúcar ter levado à ruina muitos,[9] felizmente, a produção cerealífera (trigo) não cessara de crescer, assim como a do pastel, uma planta tintureira altamente valorizada no mercado internacional. Havendo aumentado a produção cerealífera na Ilha, particularmente na riquíssima cintura agrícola formada pela Ribeira Grande (seu termo e áreas do Norte a ele ligadas) e Ponta Delgada, para isso valho-me dos estudos de Alberto Vieira, o ‘porto’ de Ponta Delgada, com obras a decorrer, não conseguiria dar conta do recado. Nem tão pouco o de Santa Iria nas condições em que se encontrava. Que alternativas restavam aos Senhores da Ribeira Grande (residentes ou não)?

Um mal nunca vem só, diziam os antigos, e é bem verdade, no nosso caso, mesmo na época das ceifas, abatem-se com violência sobre a Ilha, com forte incidência na costa Norte, e pior ainda sobre a Ribeira Grande, dois terríveis desastres naturais: a crise sísmico-vulcânica de 1563 e as enxurradas do Inverno de 63/64. A costa do Norte da Ribeira Grande para Nascente sofreu danos materiais incalculáveis (para nós hoje). A Vila da Ribeira Grande foi tremendamente fustigada. A ribeira destruiu ‘quase meia vila, e levou mais de duzentas casas, as mais delas sobradadas e das melhores que havia, por estarem ao longo da ribeira, onde os mais dos homens folgavam de edificar e morar.’[10]  Desapareceram duas das principais ruas e uma rua secundária da Vila, o curso da ribeira mudou, a foz e as cercanias da foz alteraram-se. Não se sabe exactamente o que mudou, mas é certo que houve mudanças na paisagem urbana da Vila. Diz-nos Frutuoso. Outra incógnita: não se conhece ao certo o impacto que a catástrofe teve na costa. Nem se conhece os prováveis danos no porto de Santa Iria. Além dos danos físicos, os sociais: temendo a ribeira, os senhores afastam-se do centro da Vila ou abandonam a Vila e seu termo. Solução: concentrar recursos na reconstrução da Vila da Ribeira Grande. E dos haveres das gentes da terra. Além da Ribeira Grande, na costa Norte, o Porto Formoso, a Maia, os Fenais e as Achadas foram bastante castigados. Aí, a exemplo do que sucedera na Ribeira Grande, muitos ‘deixaram seus assentos e terras, fugindo para a cidade da Ponta Delgada.’ O porto do Porto Formoso, que Frutuoso considerara ser o melhor porto da Costa Norte e da Ilha até 1563, segundo ele, refere-o no presente em que escreve: ‘está atupido de terra, que correu e tomou posse do mar, onde já pasta gado.[11] A Maia não tivera destino melhor. As coisas estavam neste pé: se não houve ‘verba’ em 1525-1550’s para obras no porto de Santa Iria, tanto pior depois de 1563/64. Que porto/ancoradouro da Ilha estaria disponível para satisfazer as necessidades da Ribeira Grande? Os do Norte não estariam em boas condições. Só os do Sul. Quais? Face à situação, os Senhores da Ribeira Grande terão certamente pensado em opções. Quais? Tiraríamos as dúvidas caso tivéssemos as actas da Câmara do período. Infelizmente, não temos. Vamos lançar palpites? Ponto importante: O uso do porto dos Carneiros era anterior a 1563/64, a catástrofe só terá feito adiar o sonho de regresso a Santa Iria. Para alguns.

Uns, deixem-nos pensar, defenderiam obras no porto de Santa Iria. Traduzir-se-ia em investimentos no varadouro, na bacia e talvez ainda em casas de apoio. Isso seria bom para quem exportasse ou importasse e (claro está) para a Ribeira Grande. Encurtaria a distância entre as suas eiras de trigo (bem como pisões de pastel e teares) e o porto de embarque dos produtos das suas ‘fazendas.’ E pouparia despesas em transportes por terra. Isso seria desejável para os que tinham searas na área do Lameiro e nas vizinhanças da Ribeirinha e da Matriz. Ou seja, até às margens da ribeira da Ribeira Grande. Outros, porventura, continuamos a supor, com ‘assentos’ na Ribeira Seca e ubérrimas terras de cultivo nos Morros da Ribeira Grande ou na planície a poente de Rabo de Peixe, poderiam um ‘porto’ na costa Sul. Ainda assim, não se abriria mãos em definitivo ao porto de Santa Iria? Seria a alternativa ao Sul, como haviam pensado em 1525, sobretudo, quando o mar daquele lado do Norte estivesse demasiado agitado para permitir a circulação de embarcações. Ou houvesse necessidade de escoar rapidamente os produtos e o porto dos Carneiros não conseguisse dar vazão. Mantendo-se operacional o ‘porto’ de Santa Iria, a Ribeira Grande ganhava e os proprietários das redondezas lucrariam. Traria óptimas vantagens: atrairia moradores e mercadores. E estruturas. Isso seria o ideal. Mas havia um problema: o financiamento para as obras (que supomos terem sido pensadas) para Santa Iria. Enquanto não chegassem recursos para as obras de Santa Iria, temporariamente, este é apenas outro palpite, havia duas opções a considerar: o ‘porto’ de Ponta Delgada ou o dos Carneiros, na Lagoa. O de Ponta Delgada (presumivelmente) esgotara a sua capacidade, mais próximo restava o ‘porto’ dos Carneiros. Seria, repete-se o palpite, um a opção temporária. Terá sido esta a intenção inicial? Opção temporária ou não, não havendo alternativa melhor, a solução fora aceite até mesmo pelos que (hipoteticamente) defenderiam prioritariamente obras no ‘porto’ de Santa Iria? Ao contrário da calamidade que atingiu aquela parte do Norte da Ilha, a Lagoa e Ponta Delgada haviam sido poupadas. E assim, uma opção provavelmente provisória de um porto alternativo a Santa Iria prolongar-se-ia no tempo, com graves consequências para o futuro da terra, digo eu. Foi isso que aconteceu? Não sei. Que acham?

Lugar das Areias – Rabo de Peixe



[2] Albuquerque, Luís da Silva Mouzinho da e Inácio Pita de Castro Menezes, Observações sobre a Ilha de S. Miguel recolhidas pela Comissão enviada à mesma Ilha em Agosto de 1825 e regressada em Outubro do mesmo ano, Lisboa, Imprensa Régia, 1826, p. 31.

[3] Idem.

[4] Barrett, Briant, Relato da minha viagem aos Açores 1812-1814, Letras Lavadas, 2017, p. 160.

[5] Azevedo, Anthimio de, O anticiclone dos Açores, 2006, p. 33

[6] Joana Medeiros, Estudo internacional mostra alterações na “intensidade e expansão” do anticiclone dos Açores nos últimos 1.200 anos, Pedro Sousa, meteorologista do IMPA em Lisboa foi revisor do estudo, Correio dos Açores, Ponta Delgada, 13 de Agosto de 2022, pp. 2-3.

[7] Albuquerque, Luís da Silva Mouzinho da e Inácio Pita de Castro Menezes, Observações sobre a Ilha de S. Miguel recolhidas pela Comissão enviada à mesma Ilha em Agosto de 1825 e regressada em Outubro do mesmo ano, Lisboa, Imprensa Régia, 1826, p. 33.

[8] Fagan, Brian, A pequena Idade do Gelo. Como o clima fez a História: 1300-1850, Alma dos Livros, 2020, pp. 52-53.

[9] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro Quarto, IV Volume, 1998, p. 190.

[10] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, 1998, p. 356.

[11] Frutuoso, Gaspar, Saudades da Terra, Livro IV, Capítulo XC.

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