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Irmãos Botelho Arruda - IV

  Quanto tempo terá durado a viagem de São Miguel ao Rio de Janeiro? - IV

 

Três meses? Quatro meses? Mais? Menos? É possível que a viagem tenha sido feita em 100 dias. Foi este o cálculo feito por D. Antão de Almada, capitão-general, governador dos Açores, para a leva de 21 de Julho de 1767. É de todo possível que esse cálculo de tempo de viagem para a charrua São José tivesse sido obtido do tempo que levara a charrua Nossa Senhora da Conceição de São Miguel ao Rio de Janeiro? Sem prova directa, é uma hipótese a considerar. Afinal os navios eram do mesmo tipo.[1] Para o século XVIII,  a investigadora Maria da Conceição Vilhena, diz-nos que poderia durar entre dois a três meses. [2] Em 1808, a nau Príncipe Real, que levou D. João ao Brasil precisou de ‘três meses e meio para chegar ao Rio de Janeiro com escala de cinco semanas em Salvador.’[3] Em 1816, ‘o primeiro navio a vapor a cruzar o Atlântico, o Savannah, viaja dos Estados Unidos à Inglaterra em 26 dias.’[4] Em 1821, no regresso de D. João VI, o brigue Reino Unido levou 67 dias do Rio de Janeiro a Lisboa, ou seja entre o dia 26 de Abril e 3 de Julho.[5] O tempo da viagem, pelos vistos, dependia da altura do ano em que se realizava a viagem, das condições da embarcação e do estado do tempo e do mar. E se era a viagem da ida para o Brasil ou da volta para o Reino.

A charrua Nossa Senhora da Conceição, onde seguia João Caetano, levava de provisões para um número desconhecido de tripulantes e 200 recrutas: 57 alqueires de favas, 2 quintais de carnes; 3 quintais de bacalhau; 3 quintais de carne de vaca inglesa em barricas; 8 quintais de biscoito; e barris de água doce. O quintal equivale a 100 quilos.[6] O alqueire, por seu turno, andará à volta de 14 a 15 quilos.[7] Fazendo as contas a duzentos passageiros acrescidos de uma tripulação de 10 homens, dará para a viagem inteira (2-3), cabe a cada 2, 38 quilos de carne de vaca; 1,428 quilos de bacalhau;3,808 quilos de biscoito e 4, 071 quilos de favas. Seria o suficiente para a viagem? Não, em absoluto.

Em ‘Andanças,’ em 2008, lancei hipóteses sobre a alimentação a bordo dos irmãos Botelho (agora sei que só foi João Caetano). Parte do que escrevi, mantém-se, creio, outra talvez não se mantenha. Para além da ração destinada a cada soldado pelos cofres reais, nada impediria que cada um, conforme as suas posses, levasse provisões. Fruto de diversas leituras, a propósito da alimentação e ocupação dos tempos durante a viagem escrevi em ‘As Andanças:’ ‘Terão esgotado as provisões, que Josefa lhes preparara, por sua iniciativa ou a mando da mãe, em dois ais, alguns dias, quanto muito uma ou duas semanas depois de o barco se meter a caminho. Mas o estômago dava horas duas ou mais vezes por dia, havia que matar a fome e a sede durante o restante trajecto. No convés, além das barricas de água e de tonéis vários de vinho, seguiam animais vivos: galinhas, vacas, cabras e outras espécies comestíveis. Também seguiriam conservas de conduto de porco e biscoitos. É provável, como já dissemos, que tenham levado algo de seu. Caso contrário, teriam de comprar os alimentos já preparados ou prepará-los eles próprios nas enormes panelas de ferro colocadas no convés. Era muito pouco provável que as refeições fossem tão lautas e saborosas como as que tomavam em casa de D. Guiomar. Se calhar, ainda nas primeiras semanas, enquanto não lhes faltou de comer e de beber de seu, comeram razoavelmente bem, mas, à medida que o tempo passava, entra dia, sai dia, como as provisões se fossem esgotando, ou estragando, as refeições iam, cada vez mais, se tornando parcas e frugais. Não haveria uma sala de refeições propriamente dita, nem nada que se parecesse, a tripulação e os passageiros comeriam espalhados pelo convés, sentados em tudo que servisse de assento, por cima de fardos, ou no chão. Ou levariam a sua gamela para o interior do barco. Se calhar, só o capitão do barco teria direito a ter um espaço próprio, que servisse, ao mesmo tempo, de quarto de dormir, de jantar e de cabine onde guardaria as cartas de marear, instrumentos de navegação e o diário de bordo. Enfim, toda a papelada. Aliás, como seria costume na época.’[8] Andarei por perto ou não do que sucedia? Quem melhor souber, por favor, partilhe-o connosco.

É possível que não ande muito longe da verdade se disser que, recolhendo a lição do que sucedera na viagem de 1766, no ano seguinte, para a viagem de novos 200 recrutas, a charrua São José levava a bordo outro tipo de mantimentos. O comandante da charrua São José, José Bernardino, que muito provavelmente conversara com Félix Oliveira, comandante da charrua Nossa Senhora da Conceição, alerta o conde de Almada para a insuficiência de provisões para 100 dias de viagem e para 200 recrutas e quarenta e quatro tripulantes.[9] Ao que parece, dando toda a razão ao capitão da charrua São José, cuja intenção seria a de prevenir apertos nos mantimentos da viagem para o Brasil, o Conde de Almada escreve ao Secretário do Reino, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do futuro Marquês de Pombal a justificar um acréscimo nas despesas: ‘mantimentos recebidos nesta cidade de Ponta Delgada por ordem do ilustríssimo e excelentíssimo capitão-general para os duzentos homens que desta vão para o o Rio de Janeiro os quais representei ao mesmo Senhor que revendo os mantimentos achei serem diminutos para a conta de 100 dias de viagem para as duzentas e quarenta e quatro praças.’[10]

As fracas condições a bordo das embarcações a cargo da coroa, haviam sido alvo de denúncias oficiais anos antes. Em finais de 1750, o físico-mor, Dr. Baltasar de Chaves no Relatório que envia ao vice-Rei da Índia, Marques de Távora, aponta o dedo acusador à ‘tirania dos Ministros de Sua Majestade.’[11] Conceição Vilhena, a partir daquele relatório, resume-lhe a opinião: ‘Tudo era feito em função do proveito a colher.[12] Ainda no ano de 1750 ou já no seguinte, na carta-relatório que o vice-rei Marquês de Távora escreve ao secretário de Estado, Távora é contundente: ‘impiedade e falta de caridade da gente do mar é indizível (…).’ Rotulando-os de forma bastante dura: ‘esta casta de gente sente mais a morte de uma das suas galinhas do que de 5 ou 6 homens dos que vem na nau.’[13]

Quem foi aquele vice-rei da Índia? Francisco de Assis Baltazar José António Bernardo Tomás Gonçalo de Távora (Lisboa, 7 de outubro de 1703 - Lisboa13 de janeiro de 1759). Permitam-me que abra um longo parêntesis para explicar a desdita de um homem capaz e honesto vítima de intrigas e de muita inveja: Foi vice-rei da Índia, entre 1750 e 1754. Vítima da conspiração conhecida como o ‘Processo dos Távoras,’ acabou por ser executado, junto com a Casa dos Távoras. O seu retorno à Corte veio junto com sua fama pelas vitórias e pela administração de sucesso na Índia. D. Leonor, mulher política e bastante envolvida nas coisas do reino, não compartilhava das ideias do novo homem dos negócios do reino, Sebastião José de Carvalho e Melo, tido por ela como um novo-rico. Com estes aspectos, o futuro Conde de Oeiras conseguiu adiar um julgamento contra toda a Família Távora, sob a acusação de tentativa de regicídio contra Dom José I. Assim acabou por ser executado, junto com a mulher, D. Leonor, dois de seus filhos, D. Luís Bernardo e D. José Maria, um cunhado, D. José Mascarenhas da Silva e Lencastre, 8.º Duque de Aveiro, e um genro, D. Jerónimo de Ataíde, em 13 de janeiro de 1759, numa cruel e sangrenta execução que se deu num cadafalso público em Belém. Os restos mortais foram posteriormente queimados e as cinzas lançadas ao Rio Tejo.’[14] Arrepiante o destino dos Távoras!!

Voltando à charrua. Pelos vistos, o comandante da charrua São José, José Bernardino destoava dos comandantes que o Conde de Távora denunciara uma década antes. O Conde de Almada também. Seriam excepções? Pelo facto de serem viagens para o Brasil e não para a Índia? Não sei. Destinado aos saudáveis ou a quem recuperasse de quaisquer das doenças que atacavam durante a viagem, vinham já a bordo da charrua São José trazidas de Lisboa, o que segue: ‘130 quintais de biscoito; 7 moios de legume; noventa e duas arrobas de aros (alhos?); quarenta arrobas de bacalhau; duzentas e sessenta arrobas de carne de vaca com osso; cento e cinquenta e três almude se meio de vinho; cinco almudes e quatro canadas de azeite; setenta almudes e meio de vinagre.’ Não eram esquecidas as ‘dietas para os doentes:’ ‘três quintais de biscoito branco; quatro alqueires de grão-de-bico; doze alqueires de farinha coada; uma arroba de manteiga; dezoito arráteis de cevada pilada; arroba e meia de açúcar; trinta e seis alqueires de milho para as galinhas; quatro alqueires de ameixas e dez galinhas.’ Além dos mantimentos para os 200 recrutas, saudáveis ou doentes, distinguem-se os mantimentos destinados a ‘44 praças da equipagem:’ onze quintais e uma arroba e doze arráteis de biscoito ordinário; trinta e seis alqueires e uma quarta e duas praças de legumes; vinte e oito arrobas e vinte e oito arráteis de carne de vaca com osso; quatro arrobas e quatro arráteis de bacalhau; cinquenta e seis almudes e quatro canadas e meio de vinho e quatro almudes e nove canadas e doze praças de azeite.’[15]  Em Ponta Delgada, o Conde acrescentou a estas provisões: ‘duzentas e setenta e uma arrobas de biscoito ordinário; duzentas e trinta e seis arrobas e vinte e quatro arráteis de carne de vaca com osso e sessenta e para salgar aquela carne, quatro alqueires e meio de sal; três moios e trinta alqueires de favas; onze arrobas e vinte e seis arráteis de toucinho; duas arrobas de manteiga inglesa; doze canadas de manteiga de porco; uma arroba de açúcar.’[16] Como foi considerado insuficiente para a viagem, acrescentou-se ‘vinte e três arrobas e oito arráteis de biscoito ordinário; catorze alqueires de feijão e quatro vacas com suas crias.’ A charrua São José, comandada pelo piloto José Bernardino, que também fazia de escrivão, partindo de Lisboa a 16 de Junho de 1767 arribara à Ilha de São Miguel a 3 de Julho. Com provisões e 200 recrutas a bordo mais a tripulação da charrua, a embarcação levantou âncora rumo ao Rio de Janeiro a 21 de Julho de 1767, uma terça-feira, quinze meses depois da charrua Nossa Senhora da Conceição ter feito o mesmo.

Que se pode retirar da comparação entre estas duas viagens? As provisões para a viagem de 1766 terão sido insuficientes, pelo que foi prudente levar mais diversidade e quantidade na viagem de 1767. Nota-se na de 1767, uma preocupação de alimentos para prevenir doenças comuns (como o escorbuto), a fazer fé nas quatro vacas com crias, legumes, e para tratar doenças. Como foi a viagem de João a do irmão José Teodoro? Com aperto ou não de víveres? Adoeceram pelo caminho?

Mário Moura

Lugar das Areias – Rabo de Peixe

 



[1] Carta de D. Antão de Almada, Capitão-General dos Açores, Ponta Delgada, a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado, Lisboa, AHU, Açores, caixa 6, n.º 7, 5 folhas, in Arquivo dos Açores, Volume V, 2.ª Série, Ponta Delgada, 2012, 25 de Agosto de 1767, p. 28.

[2]Vilhena, Maria da Conceição, Viagens no século XVIII. Dos Açores ao Brasil, Studia, Lisboa, n.º 51, 1992, p. 7.

[3] Gomes, Laurentino, 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2008, pp. 80-81.

[4] Gomes, Laurentino, 1822: Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para não resultar, Porto Editora, Porto, 2010, p.8.

[5] Ferreira, Armando Seixas, 1821: O regresso do Rei. A Viagem de D. João VI e a chegada da Corte a Portugal, Planeta, Lisboa, 2021, p. 201.

[6] https://www.converter-unidades.info/Converter+Quintal+de+Quilograma.php

[7] Cf. https://sites.google.com/site/climacoferreira/diversidades/medidas-antigas-e-presentesAlqueire: 14,64 kg, tendo sido também arredondado para 15 kg, tendo várias medidas consoante a região. Deriva do peso da carga que se carregava nas bestas de cada lado do dorso, era utilizado para medir sementes.

[8] Moura, Mário, Andanças dos Irmãos Botelho, Macaronésia, 2008, pp. 57-58.

[9] Carta de D. Antão de Almada, Capitão-General dos Açores, Ponta Delgada, a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado, Lisboa, AHU, Açores, caixa 6, n.º 7, 5 folhas, in Arquivo dos Açores, Volume V, 2.ª Série, Ponta Delgada, 2012, 25 de Agosto de 1767, p. 28

[10] Idem.

[11] [Vilhena, Maria da Conceição, Viagens no século XVIII. Dos Açores ao Brasil, Studia, Lisboa, n.º 51, 1992, p. 9, Cf. Relatório do físico-mor do Estado da Índia, Dr. Baltasar de Chaves ao vice-Rei da Índia Marques de Távora, 1 de Dezembro de 1750.]

[12] Idem

[13]  Idem, p. 10, Cf. Carta Relatório do Vice-Rei Marquês de Távora ao Secretário de Estado Marco António de Azevedo Coutinho (1750-1751)]

[14] https://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_de_Assis_de_T%C3%A1vora

[15] Carta de D. Antão de Almada, Capitão-General dos Açores, Ponta Delgada, a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado, Lisboa, AHU, Açores, caixa 6, n.º 7, 5 folhas, in Arquivo dos Açores, Volume V, 2.ª Série, Ponta Delgada, 2012, 25 de Agosto de 1767, pp. 27-29.

[16] Idem, pp. 28-29.

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