A saga
dos Irmãos Botelho no Brasil – I
Ao padre Edmundo Pacheco, meu mestre e amigo.
Passados
dezasseis anos da sua primeira edição, o que me faz regressar às Andanças dos Irmãos Botelho? Respostas
espontâneas? Aqui vão elas. Como em História raramente ou nunca existem
assuntos encerrados, como aprendiz do ofício nunca dou por encerrado um assunto
de História. Se se acrescentar ao tempo da História o tempo que o Historiador
possa dispor, o que não lhe falta agora é tempo nestes tempos de pandemia. Olhando-me
ao espelho, vejo-me como um dos desaparecidos pescadores do porto de Santa Iria
a remendar redes enquanto as ondas engolem de espuma brava a baixa a meio daquele
infeliz porto. A propósito: já se faz algo pelo porto de Santa Iria? Prometeram!
Promessa de políticos? Provavelmente. Ao contrário da crónica cegueira pública,
pelo menos no que toca à Ribeira Grande, os privados não têm cataratas. Ontem,
na imprensa local, a empresa ‘Picos de
Aventura,’ ao confessar ir apostar no Norte sem deixar o Sul, dá-nos razão.[1]
Não é nada, nem precisam agradecer. Venham mais.
Voltando
às Andanças. Concluí a sua escrita em
2006, então com o título ‘Morte e vida do
Capitão João Caetano e de seu irmão José Teodoro’[2]
e enviei-a sem demoras ao editor. Um título evocativo dos do russo Alexander Soljenítsin?
Não sei se foi ou não nome
soprado pelo Alexander, o que sei é que afinal José Teodoro e João Caetano
Botelho Arruda não viajaram juntos para o Brasil. Na realidade, João foi em
1766 direito ao Rio de Janeiro integrado num contingente militar recrutado na
ilha de S. Miguel. Aliás, como muitos mais da Ribeira Grande. Encontrei
respostas no IV volume da 2.ª Série do Arquivo dos Açores, de 2007. Apesar de o
Volume IV do referido Arquivo ter a data de edição de 2007, só tomei
conhecimento dele muito mais tarde. Vai para doze anos, mais coisa menos coisa,
num bonito gesto de ‘camaradagem,’ o
Mário Viana brindou os seus alunos do Doutoramento de História do Atlântico,
entre os quais me encontrava, com os quatro primeiros volumes da 2.ª Série do
Arquivo dos Açores. O V volume, que também me viria a interessar, apenas sairia
em 2012. Havendo a primeira edição das Andanças
esgotado (a edição fora reduzida), o editor viu conveniência em avançarmos sem
demora para um segunda edição. Seria apenas uma cópia da primeira. E assim foi.
Nem
podia ser diferente. De 2006 a 2010, estive ocupado com a pesquisa, escrita e
publicação de diversos trabalhos. O ano de 2009, foi bastante preenchido,
publiquei ‘O Nascimento de uma Paróquia
na Ribeira Grande,’ redigi o Diário
de Acompanhamento do Restauro do Arcano, redigi e defendi a Memória
apresentada à Comissão da Assembleia Legislativa Regional para a Classificação
do Arcano, a Casa do Arcano (inaugurada em 7 de Setembro de 2009) e o Arcano
(Classificado como Tesouro Regional em Maio de 2009) absorveram o resto do
tempo que pudesse ter restado. A partir de Setembro de 2010, iniciei o
absorvente trabalho do doutoramento (trabalhos curriculares, escrita da tese,
defesa e publicação). Confesso não ter ideia de ter olhado com atenção os
volumes IV e V daquela importante série documental. Se o fiz, não lhe dei a
importância que merecia. Livre da defesa da tese, não sei bem a propósito de
quê, talvez há uns dois anos, fui à prateleira e peguei num dos volumes. Quando
o percorri a pente fino, fui ao Índice Analítico. Disso já me lembro. Não sei
bem se fui vendo um a um os nomes do índice ou se fui logo procurar em João
Caetano Botelho, o facto é que o encontrei na entrada 96. Ali tinha a resposta
a algumas das várias interrogações que deixara sem resposta no capítulo ‘A Primeira Viagem’ das Andanças dos Irmãos Botelho.’ Tenho de
actualizar o meu trabalho! Quanto antes. Todavia, só em 2022, é que meti nisso
‘com fé.’ Porquê? Como já referi e
volto a repetir: Andei com outros projectos. Claro, e há quase dois anos que estamos
a tentar fugir ao ‘bicho.’ Certo?
Por
onde começar? Vamos ver o que guardei. Ao reler as Andanças, ao confrontar o texto base com o que enviara à gráfica, sinceramente
fiquei aparvalhado. Já não me lembrava de nada disso. Em nome de uma maior
clareza do texto, optara por deixar de fora a aguardar nova ocasião uma parte
mais ‘chata’ do texto. Acho que foi também a conselho do editor. E agora? Julgo
estar na hora de dar a conhecer o que ficou então de fora, esperando que não a achem
‘maçuda’ como achamos em 2006, até porque, e isso é a mais pura das verdades, tornará
este texto mais acessível. É esta a minha honesta convicção. Por onde então, começar
esta actualização de 2022? Começo pela parte que deixei de lado. Antes de mais,
um conselho de amigo a quem possa ter interesse na sua leitura: deve acompanhar
a actualização de 2022 seguindo as Andanças de 2006/8. Onde se pode
encontra-las? Em biblioteca pública da nossa Ilha.
Descrição sumária do fundo: O fundo em análise é constituído por vinte e uma cartas, dois
róis de remessa de encomendas e um recibo. Estes vinte e quatro documentos
foram produzidos entre o ano de 1772 e o de 1788. Foram encontrados reunidos em
um maço atado por um cordel fino e cortante, não me recordo se organizado por
ordem cronológica, partilhando o espaço de uma arca contendo muitos outros
documentos, tais como testamentos, títulos de posse, carta autógrafa de Madre
Margarida, etc.., pertença de descendentes directos da irmã mais nova de José
Teodoro e de João Caetano. Para tirar melhor partido da informação das
missivas, róis e recibo, ordenámo-los cronologicamente, tendo-lhes sido
atribuído uma numeração de acordo com a data respectiva. Os documentos foram
escritos no Nordeste e Sudeste brasileiros: doze em Pernambuco, cinco
Destinatários e remetentes: A mãe, D. Guiomar, é quem recebe mais cartas dos filhos
José e João: quinze, das vinte e uma. Só seis do total das missivas não lhe
foram remetidas, o que corresponde a mais de três quartos do total destas.
Destas, nove, foram remetidas pelo filho mais velho, José Teodoro, e seis, pelo
filho do meio, João Caetano. Este último, escreve por três vezes ao irmão mais
novo, Frei Manuel dos Cravos,[3]
frade professo no convento de Nossa Senhora de Guadalupe, próximo da casa da
mãe e ainda mais próximo da casa da irmã D. Inês; D. Francisca, a irmã
solteira, e D. Inês,[4]
são as co-destinatárias de outra de João Caetano. Excepto uma carta de José
Teodoro ao irmão João Caetano, ainda a residir no Brasil, as restantes vinte
destinam-se à freguesia da Conceição, na então Vila de Ribeira Grande, muito
provavelmente à rua de São Sebastião. Sem sombra para dúvidas, para mim pelo
menos, terão existido outras cartas em sentido contrário, que, entretanto, se
terão perdido na voragem dos tempos. Aliás, as cartas sobreviventes dão-nos bem
conta da existência de outras provenientes da Ribeira Grande. A título de
exemplo, a missiva, datada de 30 de Maio de 1772, alude a duas anteriores: uma
de 24 de Março e outra de 9 de Setembro de 1771. Foram enviadas por D. Guiomar
aos filhos. As cartas de 2 de Março de 1776 e a de 10 de Janeiro de 1779 acusam
a recepção de cartas de D. Guiomar. As de 9 de Maio, 10 de Junho e 16 de Junho
de 1780: a primeira refere uma da mãe e outras dos irmãos, a segunda, uma da
mãe, e a terceira, uma outra ainda de outra irmã. A de 6 de Abril de 1783 dá
conta de uma nova da mãe, bem como a de 1785. São exemplos concludentes.
Portadores dos documentos: Em quinze missivas, num universo de vinte e quatro, cujos
portadores foram identificados, Francisco Manuel, irmão de Duarte José Rebelo,
amigo confesso dos irmãos José e João, levou de mão própria uma missiva escrita
em 1776; o irmão Duarte José Rebelo, por seu lado, responsabilizou-se pela
entrega de três missivas em 1780, uma quarta em 1783, e uma quinta em 1788. É
interessante notar que este Duarte José Rebelo vai e vem ao Brasil com bastante
regularidade, facto que nos leva a admitir que pudesse fazer parte ou estaria
ligado à tripulação de qualquer barco, ou até que fosse comerciante, fosse a
título pessoal ou em representação de outrem. Conhecem-se casos semelhantes.
Fossem quais fossem os motivos pelos quais Duarte Rebelo ia e vinha ao Brasil,
ele e o irmão, como amigos de José e de João, seriam pessoas de sua confiança
pessoal. António Gamito, homem da Ribeira Grande, ligado a uma corveta,
provavelmente à de Nicolau Raposo do Amaral, é referido por três vezes em 1784.
O amigo Manuel Tavares, de Santa Luzia, desempenha este papel uma vez em 1779.
António Mourato, casado e natural de Ribeira Grande, de retorno à terra, não se
importou de levar uma missiva em 1784. Ainda neste mesmo ano, mas talvez em
outra viagem, António Novais, outro residente na Ribeira Grande, levaria ainda
outra. Seria entregue ao capitão João Pacheco a de Janeiro de 1787, e ao amigo
José da Ponte a escrita em Março de 1787. Pouco depois, Caetano já de volta à
ilha seria compadre de José da Ponte. O compadre Lourenço, também amigo, não
chegaria a levar a de 10 de Janeiro de 1779, por ter entretanto falecido.
Portanto, pode concluir-se que, na falta de um serviço postal, os irmãos
Botelho Arruda recorreram a pessoas da sua confiança, a amigos da sua terra-natal,
para o envio de cartas e encomendas. No caso do envio de encomendas, tentavam
dar conhecimento delas a diversas pessoas. Fala-se, por motivos ainda de
cautela, até do envio por duas ou mesmo três vias, ou seja directo à ilha e por
Lisboa. Com dois ou três portadores. Também nos surpreende a contingência dos
envios, a incerteza do seu recebimento em boas condições, o tempo que tudo isso
levava. Vigorava o regime da boa vontade. Uma vez aconteceu falecer o portador,
outra vez ainda, José Teodoro, queixava-se de que alguém se abotoara com parte
da encomenda. Era preferível não mandar grandes quantias, assim, para pagarem
os 30 000 réis, que se haviam comprometido a dar anualmente à mãe, arranjaram
um sistema de troca de pagamentos, o qual acabou, por incumprimento de uma das
partes, por ser descartado.
Mário Moura
Lugar das Areias – Rabo de Peixe
Março de 2022
[1] Moura, Mário, Não há laranja, há baleia! No norte há mais
baleias, 6 de Novembro de 2021, pp. 4-5; Há baleias, golfinhos, furnas, ondas! O Norte também! Diário dos
Açores, Ponta Delgada, 12 de Novembro de 2021, p. 6; N. C., Picos de aventura aposta na observação de cetáceos com partida de
Rabo de Peixe, Correio dos Açores, Ponta Delgada, 15 de Março de 2022, p.
12
[2] Nos meus papéis.
[3] BPARPD,
Baptismos Nossa Senhora da Conceição, Ribeira Grande, L.º 5, 1738-1749, fl. 98
v.: Manoel José nasceu a 19 de Janeiro de 1743. Por conseguinte, quase três
anos mais novo do que João Caetano.
[4] BPARPD, Baptimos
Nossa Senhora da Conceição, Ribeira Grande, 29 de Dezembro de 1749, L. 6 - fl.
14 v.: Nove anos mais nova do que João Caetano.
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