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Irmãos Botelho Arruda - II

 

                                      Foram as cartas escritas ou ditadas pelos dois irmãos? II

 

Há sempre margem para nos enganarmos, é bom admiti-lo, porém, pelas provas de que dispomos, inclinamo-nos a admitir que tenham sido escritas pelo próprio punho dos dois irmãos. Apesar de John Webster (em livro publicado em 1821, mas escrito entre 1816 e 1817) afirmar, ao referir-se à elite micaelense, que a maioria de jovens e de velhos não sabiam ler nem escrever, José e João sabiam escrever e ler fluentemente a sua língua materna. João estudava em 1764, na Conceição, Ribeira Grande; em 1772, já no Brasil, pretendera tomar ordens. No que ao João diz respeito, estes dois factos em si avalizam a nossa afirmação.

Por seu turno, José na carta de 1772, 1.C, afirma-o de forma concludente. Vamos transcrever da maneiro que foram escritas, assim vão perceber o que mais abaixo concluo: ‘junto com meu irmam lhe fazemos estas por nos anbos.’ Em missiva de 1776, carta 2, José confessa-o sem margem para dúvidas: ‘Mana e Senhora, recebi as de vossa mercê de cuijas li toda a estimasão devida (...).’ Ainda em missiva de 1776, 2. C, José demonstra até escrúpulos e brio com a sua escrita: ‘mana não repare nalguns erros que nestas vam de algumas repetisoms que com a minha lida assim me susede e vossa mercê como he de caza as hade desfarsar.’ Ou a de 1779, 3.A: ‘e tambem ao amigo Francisco Manoel a quem tambem escrevo (...).’ João, em carta de 1780, 4.A, no início desabafa: ‘estimei por uer letras de vossa mercê (...).’ Carta de 1780, 4.d, José: ‘Não sou mais extemso pois tambem não me falta que escreuer para as Minas a uarios amigos que me escreueram e dar de sulsão a uarios negosios (...).’ A carta de 1775 de José, 7. A, é bastante esclarecedora e curiosa, poder-se-á ainda acrescentar. Descobre-se que a mãe saberia ao menos ler e que o filho necessita de óculos: ‘ora pois minha maj e Senhora, heu auera ser mais extemso, porem a breuidade do portador hé a cauza, e demais hiso já escreuo estas com ocullos e estranho muito o fazellas. Se vossa mercê lhe custar a lellas tenha pasiemsia.’ E as irmãs e o irmão frade também escrevem: ‘[irmão frade] Veja a carta da jrman D.Clara (...)’ (Carta de 1784, 6.F); ‘[irmãs D. Inês e D. Clara] Estimarei á sua saúde de anbas e que anbas leam estas letras (...).’(Carta de 1784, 6.E ) Até mesmo a última carta conhecida de José é feita por ele: ‘Aseitem estas repetisoms de pallavras como qizerem pois a presa com que he feita assim o permite.’ (Carta de 1788, carta 9)

 

Estamos, contudo, como se pode concluir da transcrição das cartas, perante uma escrita sem critério de uniformização ortográfica, de parca e muito errática pontuação e de acentuação esporádica. José ou João na mesma carta ou em cartas diferentes grafam por vezes a mesma palavra de modos diversos. Ao que parece, escreveriam as palavras da maneira como estas lhes soavam ao ouvido. Literalmente, escrevem como pronunciam. Lêem e escrevem porque tal era necessário à sua vida do dia-a-dia: assinar testamentos, recibos, receber cobranças, etc..

 

Foram os documentos em apreço de facto escritos nas datas aí referidas? Excluindo a hipótese de confusão involuntária de datas, por mera distracção, não vemos motivo para terem procedido de outro modo. Além do mais, a cópia de pormenores que nos dão acerca das suas vidas e da dos seus próximos, a coincidência das idas e vindas dos transportes e portadores, não deixam margens para dúvidas. Tanto mais que não existia motivo plausível, que se conheça, para falsificar datas. Quais os motivos plausíveis para alguém mais tarde forjar datas? Tanto quanto nos parece, não haverá nenhum motivo.

 

Grau de sinceridade/autenticidade das vinte e uma cartas, dois róis e um recibo? A exactidão dos dados declarados nos vinte e quatro documentos em análise dependerá em larga medida da natureza de cada um deles e da intenção dos seus autores. Deste modo, nos dois róis e no recibo, em princípio, a correcção do que aí vem declarado, parece-nos, poderá ser garantida pelo facto de não interessar a nenhuma das partes proceder de outro modo: convém ao portador confirmar apenas o que recebeu do remetente, ao remetente não convém declarar algo inexistente ao portador. Seja como for, para descanso do remetente, salvaguarda do portador e alívio do destinatário da encomenda, foram emitidos e entregues a diversos portadores cópias do recibo e dos róis. O portador assinou o recibo após certamente ter conferido o que aí se declarava. Não descobrimos em nenhuma das missivas escritas quaisquer indícios de protestos que nos levassem a suspeitar do contrário. No fim de contas, o teor do rol e do recibo tinha que bater certo com o conteúdo das encomendas. A não ser que existisse uma qualquer intenção oculta, por exemplo, algo que se pretendesse subtrair a qualquer controle. O que, a ser verdade nos ultrapassaria.

Quanto à sinceridade do que se diz nas vinte e uma missivas, dos factos aí relatados, ou dos desabafos ou das confissões que aí surgem, ‘as coisas piam mais fino.’ Tais factos relevam de uma natureza mais subtil e dependem de circunstâncias e de modos de ser estritamente pessoais. Poder-se-ia afirmar que, seguramente de um modo radical, as cartas, ainda que íntimas, exprimem tão-só o que convém: o grau de respeito, as convenções sociais da altura, o que nós queremos que os outros saibam, o que nos faz ficar ‘bem na fotografia,’ o que nós pensamos ter sucedido, o que nós queríamos que tivesse sucedido, tudo isso temperado pelo nosso estado de espírito do momento e pela nossa maneira de ser, pela nossa educação. Para já, não ficaria bem usar indiscriminadamente o mesmo tom com a mãe, com as irmãs solteiras mais novas, a mais velha casada e o irmão frade. Ou até tratar dos mesmos assuntos. João Caetano permitiu-se repreender num tom de ironia magoada D. Francisca e D. Inês, (carta 6.e), mas nunca se atreveu a usá-lo com a mãe. Seria considerado uma atroz falta de respeito e uma enorme falta de educação. Ainda que o pudesse ter pensado. Também só se diz, ou só se dá realce, àquilo que nos move ou sensibiliza no momento em que nos encontramos a escrever. Por que razão José e João terão escolhido, em determinada altura, mandar dizer à família que estavam bem, estando mal, ou pelo contrário, estando mal, em outra ocasião, dizer que estavam bem? Pretenderiam sossegar ou concitar a simpatia da mãe, conforme lhes conviria na ocasião? João, pelos vistos, não terá contado à família, pelo menos a julgar pelas cartas que conhecemos, as desavenças conjugais. Não seria seguro fazê-lo por carta, pode tê-lo feito através ‘da viva voz’ de um dos seus portadores, quase todos seus amigos e conhecidos. Seria mais discreto. Mas, se fosse avisado e prudente, haveria que dizer algo de sua própria voz, pois as vozes, mesmo as mais amigáveis, dificilmente escapariam à tentação de ‘quem conta um conto, acrescentar um ponto.’ Dificilmente, contariam à mãe as suas proezas sexuais. Ou os expedientes menos lisos usados nos negócios. Seria inoportuno. Ademais, não era próprio. Pela voz dos portadores ou de quem chegava da ilha, ‘as cartas vivas’, manda dizer João ao irmão frade, sabem-se outros pormenores: ‘como tambem gostei muito do seu adiantamento, pois os que della vem milhor mo sabem explicar como cartas viuas o que eu dezejo saber.’ (carta 6.f). Ou, ainda na mesma carta, de quem vai do Brasil à ilha: ‘Se quizer saber os motiuos destas aqui nesta terra veja a carta da jrman D. Clara que eu nam posso estar dando contas a todos cada hum per si da minha vida, pois nam falta em que cuidar, e emquanto ao mais os portadores desta sam cartas viuas, bem sabem do meu viuer.’(carta 6.f)

 

Ou no caso do irmão José Teodoro. Mesmo querendo explicar qualquer assunto com maior detalhe, o tempo disponível escasseava, motivo aliás referido por diversas vezes, ou faltaria mesmo algum talento ao narrador, ou até paciência, se calhar vontade: ‘Se vossa mercê quizer saber mais larguas notisias minhas se o Manoel Tauares que mora a Santa Luzia for a hesa jlha que hé o portador desta. Ca esteue comigo e uijo-me dezembarcar coamdo cheguei de Minas que na amteuespora da S: Joam.’ (carta 3.b)

 

Com gente da Ribeira Grande a ir e vir ao Brasil, veja-se os casos do amigo Duarte José Rebelo, ou do Mourato e do filho do compadre Lourenço, que regressam à Ribeira Grande, muita coisa mais se saberia, muitos mais pormenores se dariam, sobretudo, dados por gente amiga, gente que privava com eles. Gente que, esperavam eles, apresentaria versões simpáticas de coisas antipáticas. Mesmo que se quisesse dizer ‘tudo’, não convinha, pois, o tempo da resposta à carta era longo e incerto, se chegasse ao destino, e as missivas poderiam passar por muitas mãos até chegar ao seu último e derradeiro destino. Sabe Deus quem as leria, e o que faria com o seu conteúdo.

Mário Moura

Lugar das Areias – Rabo de Peixe

Março de 2022

 

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