Foram as cartas escritas ou ditadas
pelos dois irmãos? II
Há sempre margem para nos enganarmos,
é bom admiti-lo, porém, pelas provas de que dispomos, inclinamo-nos a admitir que
tenham sido escritas pelo próprio punho dos dois irmãos. Apesar de John Webster
(em livro publicado em 1821, mas escrito entre 1816 e 1817) afirmar, ao
referir-se à elite micaelense, que a maioria de jovens e de velhos não sabiam
ler nem escrever, José e João sabiam escrever e ler fluentemente a sua língua
materna. João estudava em 1764, na Conceição, Ribeira Grande; em 1772, já no
Brasil, pretendera tomar ordens. No que ao João diz respeito, estes dois factos
em si avalizam a nossa afirmação.
Por seu turno, José na carta de 1772,
Estamos, contudo, como se pode
concluir da transcrição das cartas, perante uma escrita sem critério de
uniformização ortográfica, de parca e muito errática pontuação e de acentuação
esporádica. José ou João na mesma carta ou em cartas diferentes grafam por
vezes a mesma palavra de modos diversos. Ao que parece, escreveriam as palavras
da maneira como estas lhes soavam ao ouvido. Literalmente, escrevem como
pronunciam. Lêem e escrevem porque tal era necessário à sua vida do dia-a-dia:
assinar testamentos, recibos, receber cobranças, etc..
Foram os documentos em apreço de
facto escritos nas datas aí referidas? Excluindo a hipótese de confusão
involuntária de datas, por mera distracção, não vemos motivo para terem
procedido de outro modo. Além do mais, a cópia de pormenores que nos dão acerca
das suas vidas e da dos seus próximos, a coincidência das idas e vindas dos
transportes e portadores, não deixam margens para dúvidas. Tanto mais que não
existia motivo plausível, que se conheça, para falsificar datas. Quais os
motivos plausíveis para alguém mais tarde forjar datas? Tanto quanto nos
parece, não haverá nenhum motivo.
Grau de sinceridade/autenticidade das vinte e uma cartas, dois róis e um
recibo? A exactidão
dos dados declarados nos vinte e quatro documentos em análise dependerá em
larga medida da natureza de cada um deles e da intenção dos seus autores. Deste
modo, nos dois róis e no recibo, em princípio, a correcção do que aí vem
declarado, parece-nos, poderá ser garantida pelo facto de não interessar a
nenhuma das partes proceder de outro modo: convém ao portador confirmar apenas
o que recebeu do remetente, ao remetente não convém declarar algo inexistente
ao portador. Seja como for, para descanso do remetente, salvaguarda do portador
e alívio do destinatário da encomenda, foram emitidos e entregues a diversos
portadores cópias do recibo e dos róis. O portador assinou o recibo após
certamente ter conferido o que aí se declarava. Não descobrimos em nenhuma das
missivas escritas quaisquer indícios de protestos que nos levassem a suspeitar
do contrário. No fim de contas, o teor do rol e do recibo tinha que bater certo
com o conteúdo das encomendas. A não ser que existisse uma qualquer intenção
oculta, por exemplo, algo que se pretendesse subtrair a qualquer controle. O
que, a ser verdade nos ultrapassaria.
Quanto à sinceridade do que se diz
nas vinte e uma missivas, dos factos aí relatados, ou dos desabafos ou das
confissões que aí surgem, ‘as coisas piam mais fino.’ Tais factos
relevam de uma natureza mais subtil e dependem de circunstâncias e de modos de
ser estritamente pessoais. Poder-se-ia afirmar que, seguramente de um modo
radical, as cartas, ainda que íntimas, exprimem tão-só o que convém: o grau de
respeito, as convenções sociais da altura, o que nós queremos que os outros
saibam, o que nos faz ficar ‘bem na fotografia,’ o que nós pensamos ter
sucedido, o que nós queríamos que tivesse sucedido, tudo isso temperado pelo
nosso estado de espírito do momento e pela nossa maneira de ser, pela nossa
educação. Para já, não ficaria bem usar indiscriminadamente o mesmo tom com a mãe,
com as irmãs solteiras mais novas, a mais velha casada e o irmão frade. Ou até
tratar dos mesmos assuntos. João Caetano permitiu-se repreender num tom de
ironia magoada D. Francisca e D. Inês, (carta 6.e), mas nunca se atreveu a
usá-lo com a mãe. Seria considerado uma atroz falta de respeito e uma enorme
falta de educação. Ainda que o pudesse ter pensado. Também só se diz, ou só se
dá realce, àquilo que nos move ou sensibiliza no momento em que nos encontramos
a escrever. Por que razão José e João terão escolhido, em determinada altura,
mandar dizer à família que estavam bem, estando mal, ou pelo contrário, estando
mal, em outra ocasião, dizer que estavam bem? Pretenderiam sossegar ou concitar
a simpatia da mãe, conforme lhes conviria na ocasião? João, pelos vistos, não
terá contado à família, pelo menos a julgar pelas cartas que conhecemos, as
desavenças conjugais. Não seria seguro fazê-lo por carta, pode tê-lo feito
através ‘da viva voz’ de um dos seus portadores, quase todos seus amigos e
conhecidos. Seria mais discreto. Mas, se fosse avisado e prudente, haveria que
dizer algo de sua própria voz, pois as vozes, mesmo as mais amigáveis,
dificilmente escapariam à tentação de ‘quem conta um conto, acrescentar um
ponto.’ Dificilmente, contariam à mãe as suas proezas sexuais. Ou os
expedientes menos lisos usados nos negócios. Seria inoportuno. Ademais, não era
próprio. Pela voz dos portadores ou de quem chegava da ilha, ‘as cartas vivas’,
manda dizer João ao irmão frade, sabem-se outros pormenores: ‘como tambem gostei muito do seu
adiantamento, pois os que della vem milhor mo sabem explicar como cartas viuas
o que eu dezejo saber.’ (carta
Ou no caso do irmão José Teodoro. Mesmo
querendo explicar qualquer assunto com maior detalhe, o tempo disponível
escasseava, motivo aliás referido por diversas vezes, ou faltaria mesmo algum
talento ao narrador, ou até paciência, se calhar vontade: ‘Se vossa mercê quizer saber mais larguas notisias minhas se o Manoel
Tauares que mora a Santa Luzia for a hesa jlha que hé o portador desta. Ca
esteue comigo e uijo-me dezembarcar coamdo cheguei de Minas que na amteuespora
da S: Joam.’ (carta 3.b)
Com gente da Ribeira Grande a ir e
vir ao Brasil, veja-se os casos do amigo Duarte José Rebelo, ou do Mourato e do
filho do compadre Lourenço, que regressam à Ribeira Grande, muita coisa mais se
saberia, muitos mais pormenores se dariam, sobretudo, dados por gente amiga,
gente que privava com eles. Gente que, esperavam eles, apresentaria versões
simpáticas de coisas antipáticas. Mesmo que se quisesse dizer ‘tudo’, não
convinha, pois, o tempo da resposta à carta era longo e incerto, se chegasse ao
destino, e as missivas poderiam passar por muitas mãos até chegar ao seu último
e derradeiro destino. Sabe Deus quem as leria, e o que faria com o seu
conteúdo.
Mário Moura
Lugar das Areias – Rabo de Peixe
Março de 2022
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