Renasce o sonho da Ribeira Grande
ser Cidade
(Porto de Santa Iria – IX)
Não foi com a sua nomeação para guarda
do porto de Santa Iria que João Albino se começou a interessar por aquele
porto, em Maio de 1856, logo no primeiro número do jornal que ideara, vem uma
nota sua sobre aquele porto. Em Agosto de 1856, agradece em artigo naquele
jornal a verba votada pelo governo central seis contos de rei para o porto de
Santa Iria. [1] E no
mesmo número do jornal, chega a desafiar personagens ilustres da sua terra a
enaltecerem e a pugnarem pela conclusão dos melhoramentos no porto de Santa Iria.
Aquele porto, acrescenta, atrairia barcos e comércio para engrandecimento da
terra. Lança, a concluir, uma interrogação a que responde com outras interrogações:
‘A Ribeira Grande será então mais do que
foi? Não se poderá ela chamar uma nova Cidade? E por que não?’[2]
Seis anos depois, volta à carga: ‘Que me falta? … É o título de Cidade.’[3]
Chamo
a atenção do leitor para o sonho expresso nestas duas passagens: a de Ribeira
Grande vir a ser cidade. E mais: numa
altura em que a hegemonia de Ponta Delgada sobre a ilha andava ainda longe de ser
incontestada. Não era fantasia, ainda que haja prova de que fora
objecto de troça por gente de fora da Ribeira Grande, pois em 1852, o deputado
da Ilha levara uma proposta naquele sentido, que, por motivos de instabilidade
política, não chegou a ser votada.[4]
Permanecia a ambição que só seria concretizada (esvaziada de qualquer poder) em
1981.
Mas
pensa-se na ilha além da Ribeira Grande. Em Novembro daquele ano de 1856, num
editorial do mesmo jornal não assinado, que poderá ser de João Albino ou até de
Supico, mas que pelo tema, pelo estilo e pelo tom apaixonado pela terra, poderá
ser mais seguro atribuir-se a João Albino, o autor, aproveitando a campanha
eleitoral em curso para levar quatro representantes da Ilha ao Parlamento
Nacional, agora que os ânimos haviam serenado após muita desunião, apela à
união pela defesa dos interesses da Ilha. Que pede? O jornal da Ribeira Grande, pugnando pela defesa do Porto
de Santa Iria, pensando no todo da ilha, defende igualmente a doca e a Relação
em Ponta Delgada: ‘(…) necessidade e utilidade da pronta construção
da Doca grande; (…) conservação da
Relação, mas com o quadro efectivo de Juízes, e não como ultimamente tem
existido que só pelo nome se há conhecido. De quem pugne pela pronta construção
do porto de Santa Iria desta Vila.’[5]
Será que o porto de Santa Iria teve defesa análoga em jornais de Ponta Delgada?
Que conheça, além da notícia nua e crua, apenas o ataque à ideia e mais tarde,
ao dinheiro mal gasto. A respeito dos interesses da Ilha em Ponta Delgada,
encontrei vários pedidos de solidariedade para com a causa da doca e do
Tribunal dirigidos à Câmara da Ribeira Grande, vindos da Junta Geral, Governo
Civil, Câmara de Ponta Delgada, Câmara de Comércio, em relação ao Porto de
Santa Iria, até hoje, não encontrei nenhum.
Em
1857, a meio de uma crise social e económica, comentando uma Portaria do
Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, Peixoto volta a defender a
terra e o Porto de Santa Iria. Como então se propunha para remediar a falta de
trabalhos, Peixoto pedia obras para ocupar os que não tinham trabalho. Obras
tais como as obras em estradas. Acerca do Porto de Santa Iria, discorda das
obras ali realizadas, insurge-se contra o desvio da verba para a construção da
pequena doca, mais, advoga a votação de mais verba para as obras daquele porto.
Sugere a construção de uma estrada principal da Vila da Ribeira Grande a Vila
Franca, já tentada sem sucesso, que se impunha com as obras sofridas no porto
de Santa Iria. Dentro deste seu plano, enquadrava-se a reparação da estrada do
cimo da Mediana a Água de Pau, que de inverno se tornava intransitável, a
construção de uma pequena estrada desde aquele alto da Mediana até à rua dos
Foros, na Conceição, já dentro da Vila da Ribeira Grande, havendo de desembocar
na canada das Galinhas, hoje rua do Berquó, uma ponte na ribeira, onde termina
a mesma canada.[6]
Portanto, no Porto de Santa Iria e em outras questões de interesse para a
Ribeira Grande, o poeta Albino tinha os pés bem assentes na terra, estava em
perfeita sintonia com José Maria da Câmara de Vasconcelos, com António Júlio de
Melo e a edilidade municipal.
Guilherme
Read Cabral, de seu nome original William Harding Read Junior, (Portsmouth, Inglaterra, 1821 — Ponta Delgada, 18 de Junho de 1897) era um
inglês que se fixara em Ponta Delgada. Veio ‘criança para S. Miguel por ser sobrinho e enteado de William Harding
Read, que aqui residia e era cônsul geral da nação britânica no arquipélago.’[7]
Ao naturalizar-se Português, escolheu o apelido do cunhado Costa Cabral, futuro
Marquês de Tomar, que casara igualmente com uma filha do Morgado Jacinto Leite
Bettencourt Pacheco,[8]
de quem falámos a propósito de uma das primeiras notícias de cultivo de chá nas
Calhetas da Ribeira Grande.[9]
Foi proeminente membro da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense e entre
1873 e 1875 Director e Editor de O
Cultivador.[10] Foi um político e alto funcionário das alfândegas de
Ponta Delgada e do Funchal. Enquanto guarda-mor da
Alfândega de Ponta Delgada, levara a cabo com sucesso operações de apreensão de
produtos de contrabando: na década de quarenta.[11] Foi governador civil do Distrito da Horta, pouco menos de três
meses, de 14 de
Setembro de 1893 a 4 de Janeiro de 1894. [12]
Retomando-se o fio à meada. Portanto, antes e
enquanto se constrói o porto artificial de Ponta Delgada, Santa Iria é um porto
comercial e alberga uma das duas delegações na Ilha da Alfândega de Ponta
Delgada. A outra delegação foi a de Vila Franca do Campo. Infelizmente,
em finais de 1865 ou inícios de 1866, extinguira-se a Sociedade Exportadora
sediada em Santa Iria.[13]
Para ficarmos a par da
realidade comercial do Porto de Santa Iria, conhecem-se dois livros oficiais. O
que trata das ‘Cargas e descargas da
Delegação da Ribeira Grande,’ cuja primeira entrada data de 10 de Novembro
de 1863 e a última de 25 de Julho de 1868. [14]
As folhas de entrada
e de encerramento são rubricadas pelo Director da Alfândega de Ponta Delgada,
Guilherme Read Cabral. A de abertura reza assim: ‘Destino este Livro para nele se lançar a quantidade e quantidade de
cargas carregadas e descarregadas efectuadas pelo Porto de Santa Iria da Vila
da Ribeira Grande. Vai por mim numerado e rubricado com o meu cognome ‘Read
Cabral’ e no fim levará o competente termo de encerramento. Alfândega de
Ponta Delgada, 7 de Novembro de 1863. O Director Guilherme Read Cabral.’ E a de
encerramento: ‘Encerro este Livro com
cincoenta folhas todas por mim numeradas e rubricadas. Alfândega de Ponta
Delgada, 7 [Sábado] de Novembro de 1863. O Director/ Read Cabral.’
Mário Moura
Lugar
das Areias – Rabo de Peixe
[1] Peixoto, João
Albino, A Estrela. Ribeira Grande, 19 de Agosto, n.º 13, 20 de Agosto de 1856,
fl. 1.
[2] A Estrela Oriental, Ribeira Grande, 19
de Agosto, n.º 13, 20 de Agosto de 1856, fls. 1, 2-3.
[3] Peixoto, João Albino, À
Ribeira Grande, A Estrela Oriental, Ribeira Grande, 5 de Setembro de 1863
[4] Supico, Francisco
Maria, A Ribeira Grande, Cosmorama,
Ponta Delgada, n.º 12, Outubro de 1863, p. 15: ‘(…) Não faltou quem [Quem? Alguém da própria Ribeira Grande? De
fora? Das freguesias da Ribeira Grande? Da Ilha? Onde? Ponta Delgada? Vila
Franca?] mofasse [escarnecer] de semelhante iniciativa; mas se era
injustificável aquela pretensão.’
[5] A Estrela Oriental, Ribeira Grande, 19
de Novembro de 1856, fl. 1
[6] A Estrela
Oriental, Ribeira Grande, n.º 48, 3 de Maio de 1857, fls.. 1-2.
[7] Supico, Francisco Maria, Informações
Biográficas, Persuasão, 16 de Setembro de 1908, Cf. Escavações, Volume III,
ICPD, 1995, p. 1281: ‘(…) Tinha poderosos
padrinhos nos dois fortes partidos liberais. A primeira colocação que pediu e
lhe deram foi a de escrivão de direito na comarca de Ponta Delgada. Depois a seu pedido passou a guarda-mor da
alfândega desta cidade e algum tempo depois a seu director. (…) Dirigiu também
a Alfândega do Funchal e foi governador Civil da Horta. Foi reformado, a seu
pedido, como alto funcionário aduaneiro, durando-lhe pouco a vida no sereno
remanso do lar.’
[8]Supico, Francisco Maria, Notas: João Albino Peixoto,
Persuasão, 7 de Julho de 1897, in Escavações, Volume I, ICPD, 1998, pp.
253-254.
[9] Moura, Mário, História do Chá em São Miguel (século XIX),
2019, pp. 183-184.
[10] Moura, Mário, História do Chá em São Miguel (século XIX),
2019, pp. 134-136.
[11] Supico,
Francisco Maria, A Persuasão,
Ponta Delgada, 3 de Março de 1897, in As
Escavações, Instituto Cultural de Ponta Delgada, vol. I, 1995, p. 207, Cf. O Cartista dos Açores, Ponta Delgada, 25 de Setembro de 1845: ‘No dia 22 do corrente partiu
desta cidade [Ponta Delgada], no escaler da Alfândega, o Guarda-Mor da mesma [Guilherme
Read Cabral], com direcção à praia de
Rosto de Cão onde recebeu cinco guardas e dali fazendo viagem aportou no areal
de Vila Franca do Campo, onde desembarcou com a sua comitiva, e depois se
disfarçaram em camponeses marcharam a pé para a Vila na qual em sítios
escondidos fez postar a sua gente, tomando ele para si só o mais perigoso; não
era passado grande espaço de tempo eis que se vê demandado por três indivíduos
armados (…) consta-nos que os volumes apreendidos contêm vidros, genebra, chá e
mais alguns objectos, que ainda não se verificaram por não se ter procedido à
abertura dos volumes (…).’
[12] Guilherme Read Cabral, in Álbum Açoreano,
1903, p. 129; https://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_Read_Cabral
[13] Supico, Francisco Maria, Escavações,
Volume II, ICPD, 1995, p. 703, Cf. A Persuasão, Ponta Delgada, 6 de Janeiro de
1866.
[14] BPARPD/ACD/ALFPDL-DSIR,
Cargas e descargas da Delegação da Ribeira Grande, 1863-1868.
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